"Não se deve improvisar ou fazer gambiarras com dispositivos estatais de controle social que cortam, ferem, deixam danos permanentes", alerta Jacqueline Muniz (Antropóloga e Cientista Política)
30 de janeiro de 2025
Viatura da Guarda Municipal do Rio de
Janeiro (Foto: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL)
Recentemente, em uma entrevista a um jornal de
grande circulação no Rio de Janeiro, eu disse que não se pode jogar na rua um
GM nu, sozinho, com uma pistola no coldre, diante da vaga proposta do prefeito
de criar uma “força de segurança municipal”. Mas por quê? Trago aqui uma lição
básica aprendida, a duras penas, com a história de golpismos, violências e
violações nas democracias ocidentais e, ainda, essencial para a sustentação do
Estado Democrático de Direito.
A ilusão do
improviso nas burocracias armadas - Não se deve improvisar ou fazer gambiarras com dispositivos estatais de
controle social que cortam, ferem, deixam danos permanentes e podem, no limite,
matar em nome de alguma interpretação particularizada da lei e da ordem. Bem,
faz tempo que nossas mães já diziam isso com outras palavras quando nos
ensinavam a não brincar com as facas de cozinha, as tesouras e o ‘trezoitão’
mal guardado do parente valentão.
É da natureza de qualquer meio de força dispor de
autonomia discricionária para dobrar vontades, decidir e agir no momento
presente dos riscos e perigos reais vividos por nós em nosso dia a dia. Porém,
esta autonomia armada para intervir em tempo real, muito rapidamente, pode se
perverter em uma autonomização do poder de polícia que se volta contra a sociedade,
proprietária deste poder delegado, e contra o Estado, responsável por
administrá-lo em seu nome.
É esta emancipação predatória que dá vida a uma
autarquia armada sem tutela, faz surgir um governo policial autônomo ou uma
“milícia”, segundo a fala popular, que transforma governantes eleitos em seus
ventríloquos, converte parlamentares em seus moleques de recado, chantageia e
rivaliza com a justiça, acua a cidadania e promove o ‘crime organizado’ à
condição de padrinho político e parceiro empresarial.
O perigo de uma decisão política vaga sobre meios de força - A degeneração da autonomia do agente público armado para atuar em nosso nome em uma carta branca para ele fazer o que bem entende, segundo a sua própria razão, tem um ponto político de partida. A avenida para a corrupção política do mandato da GM começa a ser aberta quando se apregoa aos 4 ventos, mas de forma genérica, quase um teste de opinião, que vai “armar a Guarda”, ou melhor, ampliar a sua capacidade coercitiva.
E, mais, sem sequer
oferecer à sociedade uma ideia-chave que aponte para algum rumo de reengenharia
organizacional ou um projeto de força que delimite o âmbito de atuação, o
alcance da ação e os contornos do poder coercitivo da GM armada em relação aos
outros meios de força atuantes no mesmo território (PMERJ, PCERJ, CBERJ,
POLÍCIA PENAL, DPF, DPRF, Força Nacional, Forças Armadas).
É como dizer que se vai autorizar que a espada, por
sua própria conta, amplie a extensão e a profundidade do seu corte para furar e
sangrar o que julgar conveniente. Ah, como este tipo de coisa agrada bastante
os senhores da guerra, os mercadores da proteção e os profetas do caos que
adquirem poder, prestígio, dinheiro e votos com a política de insegurança
pública no Rio!
Isto é um ‘faz-me rir’ para os alisadores de
maçaneta de gabinete e os seguradores de pastas de autoridade que se
transvestem de babás de políticos para transformarem a intimidade com o
governante em favorecimentos pessoais. Isto é um faz-nos assustar porque
espadas, uma vez autonomizadas, costumam cortar a língua da política à direita,
ao centro e à esquerda e rasgar a letra da lei, tão logo ela tem seu poder
coercitivo ampliado de forma populista e eleitoreira. Espadas autonomizadas
costumam governar no lugar do governante e negociar mercadorias políticas com o
crime organizado, como já se vê no Rio de Janeiro, nestas décadas de abandono
intencional pelos políticos das éticas da responsabilidade e dos resultados
produzidos.
Promessa de
campanha descartável ou política pública real? - Cumprir uma promessa de campanha com apenas um
anúncio preliminar e uma canetada normativa, não corresponde a se comprometer
com uma política municipal de segurança e uma política para a GM que até mesmo
inclua arma de fogo em sua já existente gramática de armamentos. É possível se
livrar de uma promessa de campanha apenas com a publicidade de uma intenção
anunciada, mas “impedida” pelo álibi modinha do momento, a “disputa de
narrativa”. Mas, faz-se política pública para GM que se quer armada, seja ela conservadora,
liberal ou progressista com debate público, formulação, planejamento e gestão
participativas a partir da construção de um projeto.
Armar uma organização ostensiva de controle e
regulação sociais vai muito mais além do que ir às compras no shopping center
da segurança e adquirir uma remessa de pistolas 8 mm ou .40 já autorizadas pelo
Estatuto das Guardas Municipais de 2014. E, como aqui se explicita, a
prefeitura ainda não tem um projeto pronto sobre “armar a guarda” para
apresentar para a sociedade carioca insegura e amedrontada que responda a
questões centrais:
·
Por que armar a GM?
·
Para fazer o quê?
·
Onde e quando
atuará?
·
Com que meios e
táticas operacionais?
·
Como será
controlado o uso da força?
·
Quais serão os
custos envolvidos?
Até agora, o que se tem para a gente avaliar é uma
confusa e vaga ideia apresentada de armar a maior GM do Brasil, com 7.312
funcionários, que já é armada com armamentos menos letais. Não se tem, ainda,
como saber se uma notícia normativa do poder municipal vai virar uma proposta profissional,
responsável, viável e adequada à realidade da segurança pública no Rio de
Janeiro ou se vai ser mais um remendo eleitoreiro para a sociedade se
posicionar na condição política vulnerável de refém do medo.
Hoje, o contra e o a favor “armar a GM” estão tão
impressionistas e especulativos quanto o anúncio feito pelo prefeito. Não basta
ir à loja e comprar umas pistolas e dar para o GM na praça e na porta da
escola. Não se improvisa com burocracias coercitivas armadas porque a maior
parte de suas ações são irreversíveis. Não se ressuscita quem foi morto. Não se
elimina as dores da perda. Não se apagam os danos físicos e os traumas da
violência armada, do tiroteio. Não se tem como pagar uma reparação total para
as trajetórias destruídas pelo uso excessivo da força e a sua ingovernabilidade
transformada em padrão operacional.
Muito serviço antes de armar a GM - Para que o GM não seja mais um agente da lei no Rio, com cabeça quente e dedo nervoso, que atira muito e atira mal, mais uma isca de tiroteios, mais um promotor de balas perdidas, mais um ímã de ocorrências violentas, mais um chamariz de carteiradas, será inadiável reestruturar toda guarda e não somente uma parte ou fração destacada de integrantes. E isso demora 4 anos, se começar hoje. E, claro, os efeitos só serão efetivos e sentidos para toda a cidade após 36 meses, em razão da necessidade de fluxo contínuo de preparo para o pronto-emprego do GM armado com segurança ocupacional e superioridade de método.
O custo para capacitação em arma de fogo dos 7.312 GMs, apenas para o
uso da pistola em cenário urbano, com tiro policial estático e dinâmico,
seguindo o padrão internacional com o mínimo de 80 horas ou 3 meses de treino
inicial e 10 horas de recapacitação anual, custará, por baixo, cerca de 15% do
último orçamento da ordem pública. A este gasto se agrega o custeio do aumento
de efetivo para um pouco mais de 12 mil GMs ao longo de 48 meses.
Para começar um projeto sério e consistente que
permita à sociedade decidir se deve ou não “armar a GM-Rio” é preciso ter um
pouco mais de trabalho. Mostra-se necessário dar conta de alguns pontos
essenciais:
1. Reestruturar o desenho organizacional da GM (C3IC);
2. Redefinir e compatibilizar as atividades de policiamento ordinárias e especiais e suas coberturas ostensivas;
3. Especializar e ampliar a logística de apoio operacional (atividade-meio);
4. Criar uma estrutura de pronta-resposta na emergência (chegar em menos de 10 minutos nas ocorrências);
5.
Provisionar o
aumento gradual de efetivo.
6.
Combinar uma
gramática de meios (armamentos letais e menos letais, EPIs, rádios, bodycam
etc.).
7. Implantar a
doutrina de uso comedido da força em conformidade com as normas nacionais e
internacionais (com procedimentos operacionais públicos e publicados).
8. Criar um programa
de capacitação continuada que contemple capacidade instalada de treinamento de
tiro estático em stand e tiro dinâmico em cenários simulados, recertificação
anual com o mínimo de 90% de acertos em tiros defensivos, treinamento contínuo,
avaliação psicológica e relatório de conduta do uso da força.
9.
Implantar um
sistema de supervisão entre pares e controles interno e externo com monitoramento individual do uso da arma e do gasto de munição.
10.Desenvolver um
sistema de prestação pública e regular de contas, com responsabilização e
accountability individuais.
11. Desenvolver um
sistema de produção de informação e gestão do conhecimento.
Como se vê, diante desta pequena lista feita só com itens essenciais, há
muito trabalho sério pela frente. Se o papo político de “armar a GM” é mesmo
para valer, é bom começar a “caçar serviço” já. E já está tarde!
EM TEMPO: A GM pode ser utilizada para fins repressivo dos movimentos populares.