CULTURA

Future-se 2.0: os retrocessos na Educação

O que muda com o PL que segue para o Congresso

Por Fábio Bezerra*

No último dia 02/06, o Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional, para tramitação, o PL 3076/2020, que institui o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores- Future-se. Desde que assumiu o Governo, Bolsonaro tem destacado sua cruzada ideológica e política contra a educação pública, em especial as Universidades e Institutos Federais. Nos primeiros meses nomeou para a condução do Ministério da Educação o senhor Ricardo Vellez, pupilo do astrólogo e pseudoprojeto caricatural de um Rasputin à brasileira, o senhor Olavo de Carvalho, relíquia viva dos tempos do macartismo da Guerra Fria e baluarte do conservadorismo mais tacanho e reacionário por essas bandas do hemisfério sul.

Pouco hábil e sem rumo certo, Vellez não durou mais do que três meses, sendo substituído por um cavaleiro errante, ou melhor, um cavaleiro do apocalipse, o senhor Abraham Weintraub, que assumiu o Ministério com o compromisso de travar uma verdadeira cruzada reacionária contra a educação, buscando desenvolver aceleradamente os desígnios e os programas de privatização das Instituições Federais de Ensino (IFEs), que há anos vem sendo destilados por governos subalternos às políticas neoliberais.

O Projeto que traça um modelo empresarial para as IFEs, lançado em julho de 2019, o intitulado Projeto “Future-se”, não é novidade no campo das batalhas de resistência em defesa da educação pública. Esse projeto corresponde a uma sequência lógica de um conjunto de medidas e reformas que, ao longo dos últimos anos, foram sedimentando o caminho para a redução de recursos públicos para a educação superior e técnica-tecnológica, afetando a qualidade do ensino, a pesquisa e o desenvolvimento da extensão, até chegar à completa precarização desses espaços e desmonte das respectivas potencialidades.

Mas, de fato, o “Future-se” foi um passo mais ousado e à frente nessa campanha privatista que há anos vem sendo implementada por governos de todas as matizes, ao sabor das exigências dos organismos financeiros que prescrevem medidas de contenção de gastos públicos associadas à promoção da privatização de bens e serviços estatais, inclusive aqueles tidos como inalienáveis constitucionalmente, como o direito à saúde e à educação. Esse processo segue o percurso da expansão destrutiva do capital sobre a educação como política neoliberal através do avanço das tecnologias da informação e comunicação, pelas formas não presenciais de ensino que rendem volumosos recursos em contratos com empresas do ramo, a formatação da organização universitária em agências prestadoras de serviços e mão-de-obra para instituições nacionais e internacionais -como é a orientação da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Em nome da propalada “sociedade do conhecimento”, a mesma OMC e o Banco Mundial estipulam o controle privado do mercado sobre as instituições públicas de ensino, em um claro processo de mercantilização da educação e do conhecimento científico e técnico produzido pelas IFEs. Esse projeto possui uma vertente pedagógica que estimula uma falsa consciência nos estudantes de que, no processo de ensino e aprendizado, mediado pela ideologia do empreendedorismo, o educando deve se tornar uma espécie de empresário de si mesmo, assumindo competências e habilidades direcionadas para lidar com as oscilações do mercado, de modo a empenhar esses postulados ideológicos nos processos de aprendizagem teórica e prática.

A valorização da produtividade e da mercantilização são consideradas as únicas referências possíveis e necessárias ao exercício laboral e ao sentido do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. As pesquisas desenvolvidas, os modelos de educação e os projetos de extensão seguem a perspectiva do “Capital Humano”, ideologia produtivista que foca o investimento na capacitação do trabalhador para se adaptar aos efeitos diversos das crises econômicas, entre elas a redução de postos de trabalhos e a flexibilização de direitos e relações trabalhistas. Nesse último aspecto, não há extensão no sentido social e cooperativo, mas prestação de serviços determinados por valores de mercado e com finalidades mercantis e financeiras.

Esse postulado ideológico faz a interface com as necessidades objetivas que o capitalismo, em crise, estabelece como recurso em seu metabolismo crônico, a partir de processos de privatização sobre a formação científica e tecnológica das futuras gerações e o conhecimento produzido pelas instituições públicas, pois corresponde à nova fase de apropriação acelerada do desenvolvimento da ciência e da tecnologia e seus significados econômicos e sociais, constituindo-se em uma “nova” modalidade privada da produção do capital, enquanto fonte de lucro, por meio da inovação de produtos e serviços. Dessa forma é possível garantir uma sobrevida às grandes empresas nacionais e transnacionais em um contexto de crises econômicas constantes e abalos sísmicos frequentes no equilíbrio de forças no mercado capitalista.

Não raro, ao longo dos últimos anos, diversos gestores têm sido seduzidos por esse mecanismo ideológico, promovendo e adaptando alterações organizacionais no âmbito das IFEs. Esse processo facilita mudanças estruturais que se ajustam à participação de empresas privadas, como cogestoras e investidoras via Fundações de Apoio, a projetos diversos que condicionam um determinado modelo empresarial e utilitarista sobre as dependências universitárias e dos institutos federais, assim como sobre a própria autonomia dos órgãos administrativos. Em Minas Gerais, por exemplo, a influência política e econômica de mineradoras nas IFEs, tais como a Vale e da Samarco, envolvidas em crimes humanitários com o rompimento de barragens, é um caso emblemático!

O fiasco da adesão ao “Future-se”, rejeitado pela maior parte da comunidade acadêmica, rechaçado nas ruas por servidores e estudantes, criticado por especialistas em educação e denunciado e combatido por entidades de classe, não fez retroceder o intento privatista de Bolsonaro e seu real cavaleiro do apocalipse. Ao contrário, em tempos de “passar um boi, passar uma boiada”, com as atenções da opinião pública voltadas para o avanço progressivo do COVID-19 entre nós, Bolsonaro encaminhou, meio escondidinho entre tantos projetos de lei, a priori sem muita importância, o PL 3076/2020, que institui à fórceps o Programa “Future-se” (em seu formato 2.0), a oportunidade tão desejada de selar de vez o futuro das IFEs, jogando a criança com a água e a bacia no colo do setor produtivo.

O Projeto de Lei encaminhado ao Congresso e reformulado pelo MEC, subdivide-se em três grandes eixos:

a) Contrato de Resultados
b) Empreendedorismo
c) Internacionalização

Em uma leitura mais cirúrgica do PL, podemos destacar os seguintes pontos que não nos deixam nenhuma sombra de dúvidas sobre as ameaças e o sentido desse descalabro à educação pública e ao povo brasileiro!

No Capítulo I, artigo 1º inciso III, a proposta visa “fomentar a cultura empreendedora em projetos e programas destinados ao ensino superior”, ou seja, subordinar os projetos de pesquisa, ensino e extensão e toda a potencialidade do conhecimento acadêmico à dinâmica e aos valores da lógica do mercado. A questão aqui não é deixar de dialogar com o mercado, como alguns arautos da moralidade liberal bradam aos quatro cantos quando esse tipo de ação é contestada, até porque hoje em dia, a maioria das IFEs já promovem parcerias pontuais com instituições privadas e o setor produtivo.

A questão fundamental é tecer uma necessária reflexão crítica ao processo de privatização acelerado e a subordinação dos programas e projetos de ensino, pesquisa e extensão à dinâmica do capital, confluindo com um projeto de sociedade que aumenta as disparidades sociais, a subjugação política e econômica do país e a restrição e apropriação do patrimônio público pelo consórcio do mercado privado em detrimento da função social das Universidades Públicas, Institutos Federais e Cefets.

O artigo 3º, inciso I, do Capítulo I estabelece a figura do contrato de resultados. Mas o que seria isso? Esse contrato é um instrumento jurídico celebrado entre as IFEs e a União através do MEC, que estabelece, entre outros procedimentos, “indicadores de resultados” para a contratada, ou seja, as IFEs, em relação à contratante (União), para a “contrapartida da concessão de benefícios por resultado”!!!! O referido artigo estabelece uma relação direta de contrato entre as IFEs e a União para que haja o repasse de adicionais por resultados de desempenho advindos dos recursos do Fundo Público à educação! O mesmo Fundo Público que há anos tem sido assaltado por uma lógica perversa de sustentação do sistema financeiro internacional.

A lógica aqui é a mesma já utilizada na indústria há décadas. Através de Programas de Metas de Produtividade, estipulam-se determinadas níveis e objetivos de produção, que aumentam a exploração de mais-valia sobre as(os) trabalhadoras(os) no processo produtivo, sem levar em conta outros condicionantes que podem interferir no cumprimento das metas e assim justificar o não cumprimento do acordo contratado. Por si só, tratar o funcionamento acadêmico em um plano de metas e resultados já é um absurdo funcional e, além de inverter todo o sentido do funcionamento científico e educacional, cria uma relação de chantagem e subordinação cretina entre o Poder Público e as IFEs, com recursos que por lei deveriam ser destinados ao bom funcionamento dessas instituições. Os “indicadores de resultados” funcionarão como um torniquete financeiro e político sobre toda a vida institucional.

Ainda no mesmo sentido da cretinice desse governo, o inciso II do PL estabelece o “benefício por resultados”, que possui a função de facilitar a obtenção de resultados previstos no “Future-se”, ou seja, uma espécie de bonificação à medida que as IFEs forem progredindo no seu martírio, em relação aos subordináveis ajustes necessários para o cumprimento dos objetivos do “Future-se”.

Os incisos seguintes prescrevem as condicionantes básicas para o empenho de recursos entre a contratante e a contratada. São eles: 1 – Pesquisa e Desenvolvimento para a composição de um estoque de conhecimento para aplicações futuras; 2 – Incentivo à inovação em produtos e serviços e ao empreendedorismo; 3 – Internacionalização através de convênios firmados com instituições internacionais.

No ponto referente à concessão de recursos por produtividade caberá ao Ministério da Educação e ao Ministério da Ciência e Tecnologia, Inovação e Comunicações estabelecer “(…) os indicadores para a mensuração do desempenho”, conforme exposto no artigo 7º, com os propósitos de incrementos de eficiência e economicidade. Isso evidencia que um dos principais objetivos desse PL não é apenas o condicionamento produtivista e mercadológico das Instituições Federais de Ensino, mas também e sobretudo, a redução dos recursos do Fundo Público para a educação de acordo com os parâmetros dos organismos financeiros internacionais: OMC, Banco Mundial e FMI.

Dessa forma, esse processo reduz as potencialidades e as possibilidades de pesquisas e projetos de extensão como políticas públicas de combate às desigualdades diversas presentes na sociedade brasileira. Esses indicadores criam uma camisa de forças que direcionará departamentos e toda a estrutura acadêmica aos objetivos prescritos acima. Entre esses indicadores do contrato de resultados destacam-se:

a) Prazos para execução;
b) obrigações em relação aos indicadores;
c) avaliação de resultados;
d) prazo de vigência que não poderá ser inferior a um ano.

No Comitê Gestor tripartite, previsto no artigo 9º, que deverá acompanhar e avaliar o cumprimento das metas acordadas, o Governo terá sempre maioria, pois contará com representantes do MEC e do Ministério de Ciência e Tecnologia, enquanto as IFEs terão apenas uma representação. Se já não bastasse o torniquete financeiro, a feitoria administrativa e fiscalizadora se garantirá pela maioria governamental, nesse modelo “petité comitê”.

O papel das Fundações fica estabelecido a partir do artigo 15. Nesse quesito, o PL resolveu uma das pendências iniciais do Programa “Future-se” quando anunciado em julho de 2019 e que estabelecia, para as Organizações Sociais externas, a função de intermediar os contratos entre as IFEs e empresas interessadas em contratar serviços. Isso causou intensa resistência nas universidades, mas não pelos princípios e finalidades do “Future-se”, mas sim pelo fato de as Fundações de Apoio já existentes estarem perdendo espaço e até mesmo serem anuladas com a concorrência de Organizações Sociais que poderiam ser criadas pelas empresas contratantes com total independência.

Nesses meses que se passaram – creio ser importante ressaltar isso – o Governo teve tempo de ajustar o Programa Privatista e, nesse PL encaminhado ao Congresso, as Fundações passam a ter destaque nessa intermediação entre as IFEs e a iniciativa privada, acalentando assim os mais nobres sentimentos monetaristas. Caberá às Fundações, segundo os artigos 15 e 16, “(…) a contratação de serviços, a execução de obras e a aquisição de materiais, equipamentos e outros insumos relacionados às atividades de ensino, inovação e pesquisa científica e tecnológica”, firmados através de instrumentos jurídicos específicos, abrangendo “(…) projetos de produção, fornecimento e comercialização de insumos, produtos e serviços, relacionados às universidades ou aos institutos federais”. Essa comercialização abrange inclusive o excedente da produção resultante das atividades executadas.

Dessa forma, as Fundações de Apoio, em curto espaço de tempo, terão mais influência e poder político do que os Conselhos Superiores, pois, além de serem as intermediadoras nas negociações entre as IFEs e a iniciativa privada, garantindo as condições para o cumprimento do plano de metas do “Future-se”, serão também as responsáveis diretas pela administração de todos os insumos e aquisição de materiais e serviços pertinentes ao funcionamento das instituições de ensino. Essas Fundações de Apoio também terão autonomia para comercializar excedentes e administrar uma espécie de “fundo de conhecimento” que poderá ter ativos em Bolsa de Valores. Tornar-se-ão o coração e o cérebro das universidades, institutos federais e Cefets.

Dos eixos básicos apresentados acima, o Capítulo IV, que trata da Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, é um exemplo do condicionamento das pesquisas acadêmicas e do desenvolvimento tecnológico à racionalidade instrumental. O condicionamento à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico será norteado pela política de inovação de cada IFE. Essa política de inovação deverá seguir os seguintes parâmetros:

I – Facilitar meios de creditação de infraestruturas de pesquisa para o estabelecimento de parcerias ou para a prestação de serviços técnicos especializados com empresas;
II – promover a cultura de estímulo à pesquisa tecnológica, à inovação, ao empreendedorismo e à proteção à propriedade intelectual;
III – promover a capacitação da comunidade acadêmica para atuar no núcleo de inovação tecnológica, na gestão de processos de inovação, na prospecção de projetos de pesquisa e inovação;
IV – estabelecer conteúdos de propriedade intelectual, empreendedorismo e inovação de forma transversal nas matrizes curriculares nos diferentes níveis de formação acadêmica;
V – proporcionar a criação e a gestão de redes e centros de laboratórios institucionais com o objetivo de atender a demandas de empresas, instituições científicas, tecnológicas e de inovação.

Esses parâmetros deixam claro que todo o desenvolvimento da pesquisa deve estar direcionado prioritariamente a atender as demandas do mercado produtivo e estimular uma lógica empresarial de prestação de serviços, em detrimento da função social que as pesquisas devem possuir em instituições públicas, ou seja, identificar e apresentar soluções para as mais variadas mazelas e contradições que atingem a população brasileira através das diversas áreas de conhecimento.

Sobre o empreendedorismo, tratado no Capítulo V, os pontos mais gritantes e contraditórios podem ser assim resumidos a partir do artigo 19:

Inciso I – “(…) consolidação de ambientes que promovam inovação, com foco no estabelecimento de parcerias com o setor empresarial, incluídos os parques e pólos tecnológicos, as incubadoras e as startups(…)”;
II – “(…) aprimorar o modelo de negócios”;
III – “(…) aperfeiçoar a gestão patrimonial de universidades e institutos federais, por meio de cessão de uso, concessão, comodato, fundos de investimentos imobiliários, entre outros mecanismos (…)”;
V – “(…) apoiar a criação e a organização das associações denominadas empresas juniores(…)”;
VI – “promover e disseminar a educação empreendedora por meio da inclusão de conteúdos e atividades de empreendedorismo nas matrizes curriculares dos cursos técnicos, de graduação e de pós-graduação (…)”;
VII – “fomentar startups que atendam às necessidades do mercado e da sociedade e
VIII – promover ações de empregabilidade e empreendedorismo para os discentes das universidades e dos institutos federais.

No ponto que trata da internacionalização, no Capítulo VI, artigo 22, chamam atenção os seguintes pontos:

VIII – estabelecimento de parcerias para oferta de programas de graduação ou de pós-graduação stricto sensu em regime de dupla titulação, cotutela ou orientação conjunta e de titulação conjunta com instituições estrangeiras de excelência acadêmica;
XXIII – facilitação de acreditação de disciplinas cursadas em plataformas ofertadas por instituições de excelência no exterior, conforme disposto em regulamento.

Art. 23. “As fundações de apoio poderão contratar, por prazo determinado, pesquisadores e professores estrangeiros para atuar em projetos e programas de ensino, pesquisa e extensão internacionais do Programa Future-se(…)”.

Isso significa que as IFEs terão, como uma das condicionantes para o aporte de recursos advindo do Future-se, convencionar necessariamente a celebração de acordos internacionais com outras instituições públicas ou privadas. Parte do currículo estudado poderá ser feito em plataformas de ensino à distância por essas instituições estrangeiras, sendo assim validadas as disciplinas cursadas e computadas para a validação do curso. Isso certamente irá implicar na redução de docentes e técnicos administrativos por Departamento de Ensino, podendo abrir um precedente para o custeio público dessas parcerias envolvendo o ensino à distância com instituições privadas!

O artigo 23 é ainda mais explícito nessa intervenção estrangeira sobre as IFEs, pois, a pretexto de acordos de pesquisa e extensão empreendedora com instituições privadas, docentes e pesquisadores estrangeiros, poderão ser contratados pelas Fundações para a promoção de projetos diversos, entre eles até mesmo o de ensino, terceirizando dessa forma , o quadro docente nos Departamentos de Ensino. A estrutura organizacional e curricular das IFEs devem priorizar a transformação do ambiente acadêmico em uma espécie de extensão para o mercado privado, através de empresas contratantes, que poderão, entre outras formas de intervenção privada, sublocar laboratórios, salas e outras dependências das IFEs, alugar espaços para a promoção de propagandas de produtos, alterar o currículo acadêmico para direcionar determinados cursos à formação de mão de obra específica para determinadas funções ou atender a demandas de empresas parceiras ou para o condicionamento da produção intelectual e técnica, a fim de atender a determinados projetos e serviços estipulados pelas empresas financiadoras via mercado de investimentos.

Essa interferência nos currículos enquanto objeto de contrato firmado com empresas fere a liberdade de cátedra, a autonomia departamental para definir os parâmetros curriculares mais adequados à formação docente e fere, sobretudo, a possibilidade da formação humanista, crítica e pautada por princípios epistemológicos e éticos que possibilitem uma abordagem mais ampla sobre a diversidade conjuntural brasileira. Nesse aspecto fica evidenciada não apenas a instrumentalização perigosa de todo o potencial acadêmico. Falo aqui em termos de razão instrumental e tecnociência, mas o direcionamento à privatização dos recursos que a ciência e a tecnologia podem desenvolver, restringindo grande parcela da população ao acesso desses recursos que as pesquisas com finalidades sociais e os projetos de extensão poderiam possibilitar.

O envio do PL 3076/2020 sela uma trajetória de investidas do Governo Bolsonaro e do mercado contra as IFEs. Os objetivos não são o de modernização das estruturas e das finalidades dessas instituições, mas sim o de reduzir a presença do Estado e de recursos públicos para o custeio das universidades e institutos federais. Além disso, concede à iniciativa privada a administração de laboratórios e departamentos de ensino que serão transformados, em curto espaço de tempo, em células produtivas e de prestação de serviços apropriadas pelo mercado.

Mesmo que os defensores do “Future-se” argumentem que os recursos orçamentários das universidades e institutos federais estejam garantidos pela Constituição Federal, sabemos que essa é uma argumentação falaciosa. Esses recursos, por sua vez, vêm sofrendo reduções sistemáticas para a promoção do superávit primário nas contas públicas, quando não são contingenciados criminosamente como ocorreu em maio de 2019, colocando em crise o funcionamento das instituições de ensino.

Além disso, após a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu o teto de gastos até 2036, a diminuição progressiva do orçamento das IFEs terá um efeito de asfixia financeira sobre o funcionamento dessas instituições, pois as demandas e necessidades não ficaram congeladas por esse período e dessa forma cria-se um cenário favorável ao avanço do discurso e de práticas administrativas que endossam o empreendedorismo acadêmico, a cessão de espaços à iniciativa privada, a constituição de startups empresariais e a formação de um “fundo do conhecimento” que terá papéis negociados em Bolsa de Valores, administrado pelas Fundações.

Enfim, se há cerca de um ano, quando foi apresentada a primeira proposta do “Future-se”, houve um intenso debate no ambiente acadêmico, envolvendo as entidades de classe, estudantes, técnicos-administrativos e professores, manifestações nos órgãos dirigentes e nas ruas, agora, em tempos de isolamento social causado pelo avanço da pandemia no Brasil, o projeto tramita no Congresso com o caráter de Projeto de Lei, o que significa que, sendo aprovado e sancionado, torna-se imediatamente o modelo vigente de relação entre o Ministério da Educação e as IFEs, não sendo mais necessário um longo processo de discussão nos órgãos superiores das instituições de ensino. Nesse aspecto, o pouco que ainda restava de autonomia universitária se escoa pelo ralo do neoliberalismo.

É importante compreendermos o grande desafio que se ergue perante todas(os) aquelas(es) que defendem a educação pública, democrática, laica e de qualidade e que possa ser um espaço para a justa e necessária disputa pela educação popular. Um desafio que nos coloca em estado de alerta e resistência dobrada para combater mais esse ataque ao patrimônio público, que agora está presente em um campo pantanoso e desfavorável pela sua formação social. Isso não significa que o Governo terá vida fácil com a tramitação do PL do “Future-se”, mesmo em um recinto permeado pela promiscuidade de interesses políticos e financeiros que se manifestam em lobbies e acordos institucionais com o mercado acima dos interesses públicos.

O Governo Bolsonaro passa por um grande desgaste devido à forma como vem desqualificando a questão da pandemia do Covid-19 no Brasil, que já assumiu o segundo lugar em infectados e mortes no mundo. Esse desgaste aumentou ainda mais, mesmo entre setores da burguesia e da classe média, com a guinada franca e progressiva de manifestações do Governo com forte chantagem intervencionista, o apoio aberto que vem dando aos grupos protofascistas e golpistas que estão buscando criar condições de instabilidade e, mais recentemente, o próprio Ministro da Educação protagonizou mais desgastes com o Congresso e o Supremo Tribunal após a publicação do áudio da reunião ministerial do dia 22 de abril.

Esse cenário nos traz alguns elementos importantes para compreender o contexto desafiador em que nos encontramos, contexto este que se agrava com o fato de grande parte do poder de articulação e organização estar, nesse momento, comprometido pelo isolamento social, medida sanitária necessária para o combate à expansão da pandemia do Covid-19. Mesmo assim, nossa estratégia de resistência e ação política não pode ficar limitada apenas a investidas nas caixas de mensagens dos gabinetes de parlamentares. As ruas ainda são o verdadeiro e necessário campo de disputa da opinião pública e pressão política sobre o Congresso.

A resistência em defesa da Educação Pública e das IFEs deve ser parte constitutiva da agenda de lutas antifascistas e pela democracia, que estão amadurecendo e sendo articuladas nas ruas de todas as capitais brasileiras, por diversos setores da sociedade em oposição ao Governo Bolsonaro. A luta antifascista, em defesa das liberdades democráticas, contra o genocídio institucional promovido pela valorização do lucro em detrimento da vida humana, deve incorporar a defesa do patrimônio público e seus serviços essenciais, como saúde e educação, por exemplo.

A defesa das universidades, institutos federais e Cefets deve ter como foco a rejeição ao PL do “Future-se”, pois o mesmo projeto conservador e autoritário em curso no Brasil, que alimenta o ódio e o preconceito de classe, instiga a violência institucional, flerta com o fascismo e difunde propagandas reacionárias, calúnias e mentiras em redes sociais e aspira a intervenção militar, é o mesmo projeto que aprofunda a espoliação da riqueza nacional, gera precarização, sucateamento, desmonte e privatização do patrimônio público, quebra o pouco que ainda resta de soberania nacional e nos leva para um abismo cada vez mais profundo em um misto de desigualdades, miséria e barbárie. É fundamental que se entenda que a precarização dos serviços públicos, a criminalização de sindicalistas e movimentos sociais e a mercantilização do ente público são as expressões contraditórias mais amalgamadas de uma dialética negativa do processo em curso. Processo este evidenciado pela investida do capital sobre a educação e em especial sobre as Instituições Federais de Ensino.

É necessário rejeitar o PL 3076/2020 e toda a mentalidade privatista contida nesse documento! Mas esse projeto não cairá de maduro! Tampouco deve-se acreditar que o Congresso o rejeitará, em algum momento, por força das disputas institucionais com o Palácio do Planalto. Isso seria um equívoco, pois os interesses do mercado e do sistema financeiro sabem separar muito bem as disputas políticas dos projetos estratégicos que norteiam a lógica de acúmulo de capitais. Reorganizar aquele movimento entre as IFEs e a sociedade, que antes da pandemia, apontava para uma luta ampla e unificada contra a cruzada privatista do MEC, agora em condições atípicas, é sem sombra de dúvidas o nosso maior desafio, mas por sua vez e sobretudo, deve ser o nosso principal objetivo.

*Professor de Filosofia da Tecnologia. Membro da Rede Tecnológica de Extensão Popular e membro do Comitê Central do PCB.

Bibliografia:

1- Apontamentos para uma crítica ao projeto FUTURE-SE (Unidade Classista- Fração do Andes e Sinasefe)

2- Cortes na Educação: arrocho e privatização. (Seção Sindical ANDES UFRGS)

3- PL -3076/2020- Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br

Lucélia Santos diz que Regina Duarte é mais comprometida com agronegócio que com as artes
Dia 01.02.2020
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Morando em Portugal por causa das gravações da novela para TVI, Lucélia Santos, 62, afirmou que tem muita admiração por Regina Duarte, mas que não será bom para a atriz participar da gestão de Jair Bolsonaro.  Ela disse ainda que Regina mudou seus valores de décadas passadas e que hoje a preocupação dela é voltada ao agronegócio e menos às artes. 
Regina Duarte vai assumir o comando da Secretaria Especial da Cultura, após a queda do dramaturgo Roberto Alvim, demitido por ter copiado frases do nazista Joseph Goebbels em um pronunciamento oficial.
"Regina assumiu uma pasta de Cultura que está completamente intoxicada pelos últimos acontecimentos que vieram pelo Roberto Alvim, que já surpreendeu a classe artística, porque tinha um histórico de ser um histórico de ser um intelectual importante. (...) Ele era respeitadíssimo pela classe artística e, de repente, apareceu esse monstro nazista parodiando Goebbels", disse Santos, em entrevista ao programa Conexão Lisboa, da TV 247, na noite desta sexta (31). 
Lucélia Santos afirmou que o governo Bolsonaro, desde a sua campanha, usa uma tônica neofascista, misógina e de ódio às mulheres. "Para esse governo dar porrada em mulher é razoável. As mulheres devem ser mesmo estupradas, só não as feias. É tudo assim em um nível tóxico que é extremamente importante de ser revisto aqui antes de chegar a Cultura. Vem aí a perseguição aos gays, as pessoas que são trans, aos negros e a todas as pessoas que são diferentes da sociedade branca, que ele não gosta muito. É muito semelhante ao que havia de ambiente durante o nazismo."
 A atriz afirmou ainda que Bolsonaro não poupa ninguém de dizer o que ele pensa. "Ele escreve no Twitter. Ele e os filhos deles dizem claramente no Twitter. (...) Essas são as ideias do nosso presidente. As pessoas que o seguem, eu parto do princípio de que concordam com ele. Votarem nele, porque tem empatia por esse ideário, com esse projeto. "
"O que acontece num contexto fascista e autoritário. A primeira coisa que eles querem exterminar é a Cultura, porque é a Cultura que tira as pessoas de uma situação de seres lesados para um certo despertar, porque a Cultura é livre e tem que ser livre. A Cultura tem que se expressar na sua potencialidade em todos os níveis. E a Cultura não se prende, não se pode aprisionar a Cultura, não se pode escravizar a Cultura", diz a atriz sobre a forma pela qual o governo federal trata a cultura brasileira. 
Santos diz que Regina Duarte é uma atriz importantíssima, que tem "uma história na televisão e no teatro brasileiro". "É uma pessoa importante para as artes e para a Cultura brasileira." Porém, diz a atriz, "Regina foi ficando cada vez mais comprometida com certos valores e o que ela defende agora é o agronegócio".
"Regina Duarte não é mais uma pessoa tão comprometida com as artes quanto ela é com o agronegócio, ela se juntou ao Bolsonaro na campanha, foi à avenida Paulista gritar que tinham mesmo que entrar na Amazônia e deixar o gado e deixar as máquinas entrarem para proliferação de monocultura. Ela é uma mulher que defende o agronegócio", diz a atriz.
"Ai se explica a aproximação dela dessa ideologia de Bolsonaro. Ela tem empatia por Bolsonaro e o Bolsonaro tem empatia por ela. Isso é uma associação nefasta, isso não vai ser bom para a Regina. Quem mais tem a perder, além do Brasil, é ela própria. Eu não sei o que ela vai conseguir fazer para virar esse jogo. Como Regina Duarte vai conseguir reverter esses valores? Ela está interessada em reverter esses valores? Bolsonaro vai permitir que ela o faça?", completa. 


Educação: o projeto autoritário e privatista

EDUCAÇÃO BRASILEIRA: DO ATRASO DA EMPRESA COLONIZADORA AO OBSCURANTISMO TERRAPLANISTA ATUAL
Alex Santos
Militante da Unidade Classista – Fração ANDES-SN
Ao olhar pelo retrovisor da história da educação escolar pública no Brasil não há muito do que se orgulhar. Da herança jesuítica no início do século XVI à fase da redemocratização nos meados dos anos 80 do século XX, esteve presente um “modelo dualista”[1] que, salvaguardando suas diferenças ao longo do tempo, representou a “cultura do atraso”, condenando filhos/as da classe trabalhadora à ignorância e sem acesso ao conhecimento produzido e acumulado historicamente pela humanidade. 
Durante o Brasil Colônia, a empresa educativa ficou sob a tutela da Igreja Católica e dos padres jesuítas. Com surgimento do Império, a elite e seus valores retrógrados, no intuito de priorizar os seus interesses egoístas, começou a construir o edifício educacional pelo teto, sem pensar nos alicerces e na base que lhe dariam sustentação. Dessa forma, as instituições de ensino mantidas pelo Estado ofereciam alguns cursos superiores isolados na capital e, como consequência, o Erário abandonou à própria sorte os ensinos primário e secundário, a ponto de o pensador liberal Anísio Teixeira[2], que influenciou fortemente o pensamento pedagógico nacional, criticar os índices alarmantes de analfabetismo e a total ausência da população pobre ao acesso à escolarização. 
Fato que não causava assombro, dadas as características sociais de uma nação que há pouco tinha abolido a escravatura, não por vontade própria, mas por pressões externas, principalmente da Inglaterra. Essa herança maldita continuou pesando sobre os ombros do povo brasileiro ao longo do tempo, tendo havido redução, mas jamais sua erradicação como demonstram os dados da tabela 1.
Outros exemplos da tragédia que se abateu sobre a história da educação brasileira dariam para encher páginas e páginas, mas serão citados apenas a tardia criação das universidades, que tem como marco o ano de 1925 (Universidade do Brasil), passando pela recente universalização do ensino fundamental e a oferta, ainda limitada, da educação infantil nos anos de 1990, o que, em comparação a países desenvolvidos da Europa e outros em desenvolvimento na América Latina, tornam evidente o atraso educacional do Brasil. 
Muito embora seja preciso reconhecer as iniciativas liberais, no âmbito da educação nacional, que começam nos anos 1930 com a intensificação das campanhas fundadas nos princípios iluministas, os quais tinham como base a valorização do conhecimento científico, as formas de democratização da escola e a modernização dos métodos pedagógicos.
No entanto, a situação atrasada de antes passa a ser diminuta se comparada ao obscurantismo que tomou conta do Ministério da Educação – MEC, no primeiro ano de (des)governo bolsonarista. Administrado por personagens esdrúxulas e grotescas, as quais se aproximam do que é caricatural, o MEC transformou-se em uma nau à deriva num mar revolto e tempestuoso. Dominado por “olavistas” associados ao terraplanismo, a principal política desse grupo de lunáticos para a educação básica é o combate a um inventado “kit gay” para as escolas públicas, somada à fantasiosa “ideologia de gênero” e ao monstruoso “marxismo cultural” (obra do “nosferatu” Paulo Freire e seu comparsa italiano Antonio Gramsci), que, de acordo com os/as terraplanistas, são práticas que representam uma grande ameaça para a manutenção do núcleo familiar tradicional. Esse núcleo nada mais é do que o modelo de família patriarcal, fundado na figura masculina como a referência a ser seguida e obedecida. 
Algo que não mais se sustenta dadas as condições da realidade contemporânea com uma diversidade na constituição familiar. Essa cominação que não passa de uma fantasia da paranoia anticomunista, desenvolvida pelo astrólogo Olavo de Carvalho, na visão de seus seguidores instalados no MEC, precisa ser banida do contexto escolar. Por isso, a equipe liderada, de janeiro a abril de 2019, por Ricardo Vélez (filósofo sem nenhuma filosofia, com exceção dos “ensinamentos de seu guru”) e de abril até então por Abraham Weintraub (economista de baixo escalão com atuação no mercado financeiro e com a pecha de professor universitário de caráter duvidoso), tem adotado sua “cruzada” contra o que um raciocínio sensato e racional considera inexistente no contexto da escola pública, pois suas três frentes de ataque não passam de ilusões elaboradas pela mente insana do “mestre guru”. Esse é o primeiro ato da cena obscurantista que envolve a educação com a névoa do absurdo.
No segundo ato, há a fatídica militarização de um conjunto de escolas como projeto piloto de envergadura nacional. Com essa filosofia recheada de autoritarismo, a gestão das escolas e os problemas educacionais referentes à disciplina, aos valores e comportamentos devem ser assumidos por militares, deixando à margem o trabalho de pedagogas/os e impedindo que psicólogas/os e assistentes sociais entrem em cena, profissionais com formação e conhecimento especializados para lidar com tais situações. Inclui-se aqui a interferência de policiais no trabalho pedagógico de professoras/es em sala de aula, as/os desautorizando diante das/os estudantes quando considerarem ser pertinente a intervenção. 
Um cenário insalubre para a transmissão dos conhecimentos acumulados e altamente danoso para a construção coletiva de novos conhecimentos. Caso esse projeto siga em frente, a escola pública brasileira e a formação da população infantojuvenil estarão em queda livre na direção de um abismo sem fim.
Como terceiro ato, surge no horizonte dos/as terraplanistas instalados/as no MEC, o “FUTURE-SE”, uma invencionice que, caso seja aprovada pelo Congresso Nacional, liquidará de uma vez por todas o que resta daquilo que foi um dia a estrutura da universidade pública do país e sua perspectiva humboldtiana – sustentada pelo tripé ensino, pesquisa e extensão. A primeira fratura resultante do “FUTURE-SE” será na produção da pesquisa científica, atividade que atualmente tem 95% de sua realização e desenvolvimento concentrada nas universidades públicas. 
Ao repassar a gestão universitária para Organizações Sociais (entidades com personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades são dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde) estas entidades negociarão com investidores do mercado de ações o futuro das IES públicas. Eis que tal modelo de gestão pode eliminar a autonomia administrativa, de gestão, didático-científica, patrimonial e de aplicação dos recursos, o que resultará na mercantilização das atividades acadêmicas. 
A pesquisa, o desenvolvimento tecnológico e a inovação estarão comprometidos, as atividades de extensão praticamente deixarão de existir, inclusive o ensino na oferta de cursos de graduação e pós-graduação, isso porque o que for avaliado como não rentável para os investidores, dentro do modelo proposto correrá o risco de ser cancelado ou não autorizado a entrar em funcionamento.
A segunda fratura será na autonomia patrimonial. Ao se tornar possível a efetivação do programa, o patrimônio que envolve todo o complexo parque universitário brasileiro deixará o controle da esfera federal pública e passará a fazer parte de fundos imobiliários de investimentos, o qual será lançado para a disputa das “hienas” na “selva” do mercado financeiro. Isto é, as IFES adotarão um “programa de integridade, mapeamento e gestão de riscos corporativos, controle interno e auditoria”, o que faz crer ser um modelo gerencial inspirado nos Fundos de Pensão. 

Como terceira fratura, pode-se adotar a desregulamentação da carreira docente com a descaracterização da dedicação exclusiva (Art. 18), a rigor, esvaziando o seu nexo com o conceito de universidade pública, estabelece o notório saber à revelia de toda discussão sobre a carreira docente (Art. 29) e cria condições para que docentes possam ser agentes em busca de lucros e benefícios pessoais, algo como um redirecionamento dos professores como empreendedores. (LEHER, 2019).[3]
A quarta fratura compreende a transferência de recursos públicos para a inciativa privada e a descaracterização do caráter público, gratuito e laico do ensino superior ofertado pelas universidades e demais instituições federais de ensino. De acordo com análise da assessoria jurídica do ANDES-SN, no anexo à circular n. 293/19[4]: a pretensão do FUTURE-SE de fortalecer a autonomia financeira das universidades e dos institutos federais é desassociada da intenção de se “criar formas de financiamento outras que não o repasse necessário regular” (Freire). 

A propagada autonomia financeira está atrelada ao fomento à captação de recursos próprios, o que, segundo a apresentação do Programa, gerará “maior autonomia de gestão das receitas próprias, flexibilização de despesas e maior interação com o setor empresarial para atividades de inovação”. Mas o que se percebe é que teremos, na verdade, a transferência de recursos e bens públicos para entidades privadas.
Dada a complexidade das mudanças sugeridas pelo PL que contém o programa FUTURE-SE, suas possíveis lacunas de ordem jurídica e o ataque frontal às instituições de ensino superior públicas e gratuitas, as fortes manifestações por todo o país após seu anúncio paralisaram temporariamente seu avanço no Congresso Nacional. No entanto, aquilo que o PL não tratou claramente em termos de autonomia universitária já se manifestou na Medida Provisória de n. 914/19, que dispõe sobre o processo de escolha dos/as dirigentes das universidades e institutos federais e do Colégio Pedro II. 
Com essa medida, às vésperas do fim de 2019, o presidente a partir de então irá nomear quem lhe aprouver para o cargo de reitor/a, mesmo que não seja o mais votado da lista tríplice, caso que já se repetiu em várias universidades federais do país; poderá, ainda, fazer nomeação pro tempore “em razão de irregularidades verificadas no processo de consulta” e os/as reitores/as escolhidos/as terão o poder de nomear diretores/as de centro ou campi.
Os excrementos do poder obscurantista têm se agigantado no contexto educacional brasileiro com o prenúncio do acirramento das lutas de classes já para o início do ano de 2020. Os desafios para as entidades vinculadas aos interesses da classe trabalhadora nos seus diferentes matizes alargam cada vez mais as suas margens. Diante de tal quadro de acirramento do autoritarismo e de medidas políticas com acentuado nível de negacionismo do que é racional e científico é necessário seguir na costura de alianças e buscar construir a unidade na ação entre as forças que não se renderam às artimanhas do capital imperialista e sua acomodação no “estado de exceção”, sem nenhuma pretensão democrática. É preciso coragem e disposição para os novos enfrentamentos que se avizinham, caso o desejo da classe trabalhadora não seja sucumbir, mas resistir e atacar na construção do socialismo. Mesmo diante das adversidades é preciso ânimo para reagir.
Avante camaradas!
[1] Instrumento de cimentação da divisão social de classes no âmbito de capitalismo dependente. As instituições de ensino adotam uma postura reprodutiva das condições estruturais de produção e do poder institucionalizado, em que a escolarização conduz os/as filhos/as da elite dominante aos postos de dominação, enquanto àqueles/as que pertencem à classe trabalhadora são condicionados/as a assumirem as funções de subserviência. Essa relação não é mecânica e direta, havendo um conjunto de mediações na sua efetivação, mas grosso modo, esse é o sentido do dualismo educacional.
[2] A crítica de Anísio Teixeira está contida na obra “Educação não é privilégio” publicada pela primeira vez no ano de 1957.
[3] Texto preliminar, escrito em virtude do anúncio do FUTURE-SE, analisando seus 45 artigos. Disponível em < https://esquerdaonline.com.br/2019/07/25/leia-a-analise-de-roberto-leher-da-ufrj-sobre-o-future-se/> Acesso 27 dez 2019.

[4] O parecer da assessoria jurídica do ANDES-SN com análise sobre o FUTURE-SE, encontra-se disponível em <https://www.andes.org.br/sites/circulares/circular-no-293-19-encaminha-nota-tecnica-acerca-do-programa-institutos-e-universidades-empreendedor> Acesso 27 dez 2019.
Teoria da conspiração no governo: por que o presidente nega dados científicos

Yahoo Notícias 


Bolsonaro ao lado de Abraham Weintraub, ministro da Educação (REUTERS/Adriano Machado)

Por Nathan Fernandes
Cheryl acredita que reptilianos controlam o mundo, e que toda nota de 100 dólares tem um microchip que grava o que a pessoa tem dentro da bolsa. Ao ser questionada sobre se é “aquela que acha que os bancos querem nos matar”, ela responde: “Não, eu sou aquela que sabe que os bancos querem nos matar”. Cheryl é personagem da série “Disjointed”, da Netflix — comédia em que Katy Bathes interpreta a dona de uma loja de maconha medicinal.
Em um dos episódios, Cheryl questiona por que a personagem de Bathes não procura um médico, já que está visivelmente doente. Ao responder que “a medicina ocidental é golpe e conspiração”, Bathes leva uma bronca da personagem que acredita nos Illuminati:
— Os EUA têm os melhores médicos do mundo. A medicina alternativa tem o seu lugar, mas ela deve ser integrada a uma abordagem científica responsável, incorporando tratamentos orientais e ocidentais, tá certo?
Para Bathes, surpreendentemente, está certo.
O que sobra em racionalidade no argumento da personagem mais paranoica da série parece faltar a grupos que vêm inflando as redes sociais com notícias falsas e teorias da conspiração, como o movimento antivacinação.
A preocupação é tanta que, em 2019, a Organização Mundial da Saúde incluiu o problema no relatório em que destaca os dez maiores riscos à saúde global. Segundo o documento, o movimento antivacinação “ameaça reverter o progresso feito no combate às doenças evitáveis por meio de vacinação. Ela atualmente evita de 2 a 3 milhões de mortes por ano, e outro 1,5 milhão poderia ser evitado se a cobertura vacinal fosse melhorada no mundo".
Mesmo assim, continuam circulando na internet ideias como a de que o vírus zika teria sido criado pela família Rockefeller e que Bill Gates teria lucrado com a vacina, enquanto ambos estariam mais próximos de seu objetivo máximo que é a redução da população mundial.
Todos os homens do presidente
É possível enxergar essa falta de crença na ciência refletida nos vidros do Palácio do Planalto. Em agosto, o diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Ricardo Galvão, foi exonerado do cargo depois que Bolsonaro e o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, rejeitaram dados do instituto que mostravam um aumento preocupante no desmatamento. Segundo o presidente, o diretor fazia “propaganda negativa” do Brasil e deveria estar a "serviço de alguma ONG".
“Ele fez acusações indevidas a pessoas do mais alto nível da ciência brasileira, não estou dizendo só eu, mas muitas outras pessoas", retrucou Galvão, antes de ser exonerado. "Isso é uma piada de um garoto de 14 anos que não cabe a um presidente da República fazer."
Bolsonaro e Salles não foram os primeiros a questionar dados de estudos que contrariavam suas crenças. Em maio, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, impediu a divulgação de uma pesquisa da Fiocruz, encomendada pelo próprio governo, que levou três anos e 7 milhões de reais para ser realizada. Isso porque o documento não confirmava a convicção do ministro de que há uma epidemia de drogas no Brasil — ideia que ele usa para embasar políticas questionadas pela comunidade científica, como a lei que permite a internação forçada de dependentes químicos.
“Eu andei nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a ver com as drogas, eu não entendo mais nada. Temos que nos basear em evidências”, justificou Osmar Terra.
Já o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em um arroubo “osmarterraplanista”, questionou o aquecimento global afirmando: “Fui a Roma em maio e havia uma onda de frio”. Segundo a revista Época, a afirmação constrangeu colegas do Itamaraty, que participavam de uma reunião com diplomatas da Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania.
Terra plana à vista
“O negacionismo de hoje se vale de uma retórica da conspiração e se volta contra a ciência em geral”, explica o historiador da Unicamp Luiz Marques, autor de “Capitalismo e Colapso Ambiental”. Segundo Marques, não se trata apenas de desqualificar os cientistas, mas a ciência em si. “O negacionismo climático é parte de uma tendência geral. Ele está na mesma trincheira do criacionismo, do terraplanismo, do movimento antivacinação, dos que afirmam que o homem nunca foi à Lua... Há uma desqualificação da autoridade da ciência em benefício das crenças mais absurdas possíveis.”
Não à toa um estudo da Escola de Sociologia e Política de São Paulo mostrou um paralelo entre eleitores radicais de Bolsonaro e pessoas que acreditam na teoria da Terra plana. Ao acompanhar militantes de direita, desde as eleições, através de entrevistas regulares, a doutora em antropologia social Isabela Kalil constatou que, assim como os terraplanistas, a parte do eleitorado que considera Bolsonaro “frouxo” (ou seja, que cobra mais radicalização em seu discurso) não confia na ciências, nem nas instituições. A maioria é formada por homens, entre 40 e 45 anos, que vive com a permanente sensação de estar sendo enganado.
Como afirmou Kalil ao jornal Valor Econômico, estes eleitores justificam suas opiniões com mentiras da internet. “Percebemos um imbricamento entre fake news e teorias conspiratórias. À medida que nos aprofundamos nessa escuta, identificamos um pano de fundo de ideias de conspiração não só na política”, disse. “Esse fenômeno que a gente tem nomeado de bolsonarismo transcende o próprio Bolsonaro. Está presente, por exemplo, no terraplanismo.”
Um exemplo pode ser observado no discurso de Olavo de Carvalho, o guru da família Bolsonaro, que, em maio, atiçou o Twitter ao afirmar: “Não estudei o assunto da terra plana. Só assisti a uns vídeos de experimentos que mostram a planicidade das superfícies aquáticas, e não consegui encontrar, até agora, nada que os refute”. É possível que ele não tenha considerado a presença do astronauta Marcos Pontes na base do governo.
“As conspirações se acasalam”, afirma o psicanalista Christian Dunker, da USP, “A pessoa que pensa conspiratoriamente imagina que todo o problema está no outro, que quando ele for eliminado tudo vai ficar em paz. A hora que você pronuncia isso acaba criando um campo de alianças quase que automático.”
Logo, o ódio inflamado à esquerda não é sem razão. Segundo Dunker, esse fenômeno já pôde ser analisado na obra “Psicologia das massas e análise do eu”, de Sigmund Freud, no qual o pai da psicanálise afirma que, em momentos de falta de esperança com o futuro e desencanto com as instituições, nosso sentimento de pertencimento se fragiliza. Por segurança, torna-se tentador reforçar os laços com grupos de pessoas que lutam contra o inimigo que estaria causando essa situação.
“Aquele sentimento de esperança, de que as coisas vão mudar, se transformou num ódio”, afirma o psicólogo Antonio Euzébios Filho, do Instituto de Psicologia da USP. “E aí temos figuras simbólicas, como o ministro Moro, que dá um sentido de unidade contra a corrupção, uma ideia de limpos contra sujos. Existem essas pessoas no governo que não são adeptas ao negacionismo e ao terraplanismo, que ajudam a formar essa unidade, mas com pautas totalmente abstratas, como essa da anticorrupção.”
Christian Dunker ressalta ainda duas questões psíquicas que o negacionismo se aproveita para se instalar: a primeira é o próprio mistério do mundo. “Isso se confunde com a indeterminação dos fatos históricos e as conspirações que habitam a todos nós, que é uma coisa fascinante, porque ela nos informa que nem toda lei está escrita, a ciência não sabe tudo, e você usa isso para ficar na subjetividade das pessoas, infiltrando uma negação da história”, afirma.
A segunda questão é a dificuldade das próprias pessoas lidarem com suas culpas. “Existem coisas, como a descoberta dos campos de concentração, que implicam em consequências dramáticas, aceitar requer um trabalho não só cognitivo, de concordar ou não, mas moral e ético”, explica o psicanalista. Para ele, seria mais fácil para alguém que apoiou o golpe militar, por exemplo, negar o fato a fazer um trabalho de reelaboração. “Assim, a gente se protege de entrar em contato com aquilo que nos causa conflito.”
O historiador Luiz Marques, da Unicamp, ressalta a influência que esse obscurantismo tem no sistema político. “A descrença na ciência caminha pari passu com uma descrença na democracia, uma descrença num saber compartilhado, uma descrença no valor da solidariedade com os mais vulneráveis, uma descrença na capacidade humana de priorizar uma agenda voltada para a diminuição da desigualdade”, afirma.
Para Marques alguns dos impactos dessa negação da ciência poderão ser sentidos em breve. “Estamos dançando à beira do abismo. Dentro de poucos anos, mantido o atual sonambulismo, será tarde demais para evitar um aquecimento médio global de 2ºC acima do período pré-industrial. E então teremos perdido completamente o controle sobre as mudanças climáticas.”
Uma saída apontada por Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, é o pensamento crítico. “Alguns gostam de impor a ideia de que não existe um conflito, de que, na verdade, você tem uma espécie de tendência à irracionalidade das pessoas, de que elas não aceitam fatos científicos, o que não acho uma análise correta”, diz. “Você tem um embate de interesses muito claro e as pessoas assumem seus lados. A questão que deve ser feita é: qual é o interesse em negar essas informações que embasam políticas públicas. Quem ganha com isso?”

EM TEMPO: O presidente Bolsonaro e alguns dos seus auxiliares, negam as informações da ciência segundo os seus interesses de preservarem o lucro dos capitalistas e a dominação da burguesia. Nada é dito á toa. Afinal, o avanço tecnológico serve para aumentar a produtividade,  reduzir a mão-de-obra, aumentar o lucro do capital e do poderio bélico, dentre outros, como também pode criar outros mecanismos de trabalho.  


“Future-se”: o Futuro como sinônimo de Retrocesso!

Por F. Bezerra

A sequência lógica e perversa da política do Governo Bolsonaro para a educação, após o anúncio de cortes para custeio de despesas das Universidades Públicas e Institutos Federais anunciados pelo MEC há cerca de dois meses, foi apresentada à imprensa nesta quarta, dia 17 de julho.
Batizando o projeto de “Future-se”, a cúpula do MEC anunciou o maior pacote de medidas que visam privatizar e restringir o potencial da pesquisa e extensão das universidades públicas no Brasil a prestadoras de serviços, a empresas e ao mercado. Sob o pretexto de manter investimentos sociais nas universidades e assegurar o seu “compromisso com a sociedade”, “mantendo o respeito à autonomia universitária”, o ministro da Educação Abraham Weintraub apresentou uma série de iniciativas que celebram a privatização das IFES, através de contratos de gestão privado, criação de fundos patrimoniais, promoção e concessão de créditos para startups e cessão de espaços públicos para a propaganda de empresas, como se aqueles espaços passassem a ser propriedade particular.
Com uma mão o Governo Bolsonaro e seus lacaios criminosamente retiraram recursos de custeio, sob o pretexto de contingenciamento de verbas em resposta à crise econômica, aprofundando mais ainda o sucateamento de todo o Ensino Superior Público. Com a outra mão, coloca as Instituições Federais de Ensino (IFEs) em estado de alerta, ao oferecer o modelo de parcerias público-privadas, impondo na prática a perda de autonomia política destas instituições, que deixarão de exercer o papel de avaliar e decidir quais devem ser e como se processarão pesquisas e políticas de extensão, promovendo uma drástica inversão do sentido e do compromisso que as IFEs, há cerca de 80 anos, vêm mantendo com o Brasil.
Essa proposta teve um precedente que, no passado, acabou por abrir a porteira para a privatização da ciência e do desenvolvimento tecnológico, quando, em janeiro de 2016, ainda no Governo Dilma, foi promulgado o Marco Regulatório da Ciência e Tecnologia, que em suma, flexibilizava e regularizava as condições para o estabelecimento de empresas privadas via fundações ou Organizações Sociais (OSs) nas instituições de ensino federal.
Ensino e pesquisa a serviço dos interesses capitalistas
Segundo o projeto “Future-se”, a partir da consolidação das chamadas “startups” (empresas recém-criadas, normalmente de base tecnológica, em fase de desenvolvimento), abre-se a possibilidade de uma escalada de projetos de pesquisas e extensão voltados para os interesses do capital e do “empreendedorismo” (com inovação técnica e tecnológica sob perspectiva produtivista, por exemplo). Além disso, o projeto potencializa a constituição de sociedades formadas por professores e/ou coautores dessas parecerias, os quais poderão receber – via Organização Social (OS) – recursos à parte, veiculando laboratórios, projetos e recursos humanos aos interesses empresariais.
As OSs deverão apoiar os planos de ensino nas IFEs, podendo inclusive ter ingerência pedagógica no currículo de cursos ligados às “startups”, de modo a garantir a melhor eficácia das parcerias estabelecidas com a iniciativa privada. Um Fundo de Direito Privado será criado, administrado inclusive por instituições financeiras e que poderá, no futuro, ter ações em bolsas de valores para investimentos que garantam recursos voltados a promover a terceirização de Departamentos ou até mesmo de toda a IFE.
Como se não bastasse, o MEC poderá doar bens imobiliários para as OSs, a fim de que estas possam integralizar tais bens em fundos de investimentos, como garantia, para a captação de recursos de longo prazo que preservem o Fundo de Investimentos. Ou seja, estabelece a doação do patrimônio público como garantia de investimento para o Sistema Financeiro.
É importante lembrar que, em paralelo a essa proposta, foi aprovado recentemente no Senado, um projeto de Lei que modifica a avaliação de desempenho dos servidores, possibilitando inclusive o desligamento funcional dos servidores que não conseguirem atender a determinadas exigências. Ou seja, docentes que não se enquadrarem ou não cumprirem as metas estabelecidas de parcerias para manter o custeio das IFEs, poderão ser, num futuro próximo, demitidos por insuficiência técnica, e alguns cursos poderão ser extintos.
Através de contrato de gestão, a OS poderá arcar com a remuneração de servidores cedidos pela União, pois a proposta deixa uma lacuna que possibilita ao servidor cedido prestar serviços exclusivamente à OS, quebrando o princípio da Dedicação Exclusiva.
Governo Bolsonaro e a educação pública: destruir para privatizar
O Governo neoliberal de Jair Bolsonaro justifica tal medida como uma das respostas à crise econômica, com o propósito claro de liquidar as Universidades Públicas e Institutos Federais e CEFETs. O que está ocorrendo é o desmonte das Instituições Federais de Ensino e a desvinculação do Estado do papel de mantenedor do custeio da educação pública, retirando dele suas responsabilidades constitucionais. Essas instituições hoje respondem por cerca de 90% da pesquisa científica em diversas áreas e possuem uma significativa gama de projetos de extensão que permitem, mesmo que ainda de forma insuficiente, condições de acesso às populações mais carentes ao potencial que a ciência e a tecnologia podem proporcionar.
Mesmo que alguns advoguem a tese de que o Governo não está autorizando a cobrança de mensalidades (ainda), a privatização das IFEs está em curso acelerado com esse projeto e certamente abrirá precedentes para no futuro próximo justificar a cobrança de mensalidades. Essa questão inclusive deve ser reforçada e devidamente contextualizada, pois na grande mídia a propagação da proposta busca criar uma falsa ilusão de que o caráter público das instituições estaria preservado.
Entre os critérios de manutenção dos cursos, o MEC estipula um percentual mínimo de permanência nos mesmos, e muito provavelmente diversos cursos receberão recursos provenientes desse Fundo Privado para o custeio de bolsas aos estudantes que se vincularem aos programas mantidos pela OS. Na prática, cursos que não conseguirem celebrar esses convênios terão maiores chances de não atingir as metas mínimas estipuladas, abrindo caminho dessa forma para o consequente fechamento em curto prazo.
Estamos diante de um dos maiores, se não o maior ataque, que as IFEs já sofreram nesses últimos anos e estamos convencidos de que a ampla e irrestrita unidade de todos os segmentos que compreendem as ameaças em curso deve ser um dos esteios de nossa resistência e mobilização contra o desmonte e o fim das IFEs. Esse projeto não traz futuro algum ao Ensino Superior Público, a não ser a capitulação total à lógica neoliberal, levando ao desmonte de um patrimônio que ainda é referência mundial em política públicas nas áreas do ensino, da pesquisa e da extensão.
É importante destacar que nem a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DE INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES), nem a UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES (UNE), o CONIF ou o ANDES, entre outras entidades nacionais que representam os segmentos que compõem as IFEs foram consultadas sobre projeto que trará imediato impacto na vida administrativa e no sentido social das instituições federais. Até o embuste da consulta pública aberto na página do MEC, não possibilita ao internauta se posicionar de forma claramente contrária ao projeto!
Nos últimos meses milhares de estudantes, pais e servidores saíram às ruas em defesa do real futuro das Instituições Federais de Ensino e demonstraram disposição na luta em defesa desse patrimônio histórico. Agora mais uma vez está colocado o desafio à nossa capacidade de mobilização, de convencimento e resistência a mais uma tentativa de golpear e aniquilar a Educação Pública no Brasil.
Educação, ciência e tecnologia para que projeto de nação?

Allefy Matheus, militante da UJC-PI

Anteriormente, discutimos os cortes na educação e outros ataques no contexto da austeridade fiscal imposta pelas classes proprietárias (leia-se, parasitárias) no Brasil [1]. 
Pretendemos, aqui, levar o debate um pouco adiante: trata-se de discutir não apenas a situação conjuntural da educação, da ciência e da tecnologia, mas sim sua tendência ao longo do padrão de acumulação capitalista que se reproduz em nosso país desde os anos 90.
Primeiramente, adiantamos que o leitor ou leitora pode achar materiais com problematizações similares já publicados; veja-se, por exemplo, o artigo disponível em: http://ujc.org.br/a-destruicao-da-ciencia-e-tecnologia-no-brasil-e-a-necessidade-de-um-projeto-de-educacao-popular-e-socialista/.
Cabe-nos, então, prosseguir com a discussão.
O que significa discutir a questão da educação, da ciência e da tecnologia em termos de um ‘’projeto de nação’’? Trata-se de debatê-las como elementos de um projeto amplo de relações e instituições sociais no país, e pondo à mesa questões fundamentais como que educação, ciência e tecnologia são essas, como são elas? Que finalidade têm elas? A quem, consequentemente, elas beneficiam? Etc.
Desde já, portanto, é preciso afirmar que a produção nacional de educação, ciência e tecnologia se dá sob profunda hegemonia burguesa, inclusive naqueles centros universitários aclamados como estando ‘’os melhores entre os de toda a América Latina’’ [2]. É produção de conhecimento a serviço do capital, dedicando-se à geração de mão de obra e entregando para a ‘’iniciativa privada’’ os frutos de pesquisas científicas que poderiam ser de extremo benefício social, mas se convertem em fonte de lucros de monopólio.
Pior, talvez, é que mesmo essa privatização dos benefícios tornados possíveis pela produção social de conhecimento não se dá aperfeiçoando a estrutura produtiva nacional de forma a aumentar a produtividade social do trabalho aqui, pelo contrário: os próprios economistas burgueses, de diversas ‘’escolas diferentes’’, alardeiam a estagnação da produtividade do trabalho no Brasil [3].
Por que isso acontece? Em concordância com os estudos marxistas que buscam compreender a condição de subdesenvolvimento e dependência que caracteriza o Brasil (e todos os outros países latino-americanos, com exceção de Cuba, bem como países periféricos de outros continentes), cremos em uma conexão fundamental entre a situação da ciência, da tecnologia e da educação e o padrão de reprodução do capital aqui nas últimas décadas. Mais claramente: a forma concreta de reprodução ampliada do capital (e acumulação de riqueza privada) em nosso território nacional não se preocupa em promover a educação que corresponda às necessidades da vasta maioria da população, bem como de uma produção nacional autônoma de conhecimento científico e tecnológico.
A prova disso é a crescente importância do agrobusiness — um nome cinicamente pomposo para a acumulação capitalista baseada na renda da terra, envolvendo profunda violência contra os trabalhadores e os povos do campo — e, por outro lado, a decrescente importância da indústria na atividade econômica (da qual o PIB é um indicador razoável), bem como os crescentes lucros do setor bancário, mesmo em meio a uma crise profunda — ou seria como uma das causas da permanência da crise? [5]
Aliás, para sermos justos, mesmo a ‘’produção industrial nacional’’ tem, conforme estudo recentemente publicado, enorme coeficiente de importação em seus insumos [6], o que significa, dentre outras coisas, reduzida capacidade, para a indústria, de puxar geração de emprego e renda para os trabalhadores brasileiros, bem como de aumentar a produtividade social do trabalho.
Sintetizando, os grandes eixos de acumulação capitalista no Brasil das últimas décadas — o rentismo agromineiro, o rentismo financeiro, a produção industrial e, poder-se-ia citar também, o comércio — dispensam uma produção nacional autônoma de conhecimento científico tecnológico, seja por sua própria natureza, seja porque, quando lhes é de interesse a obtenção de novas máquinas e ferramentas mais eficientes ou novos processos produtivos, eles recorrem à produção estrangeira, isto é, às importações — tipicamente de países centrais.
A conclusão inevitável, para citar o camarada Jones Manoel em artigo mencionado acima, é que ‘’só com uma perspectiva estratégica renovada e ligada aos interesses e lutas das classes populares é que a problemática da produção de ciência e tecnologia poderá ser devidamente enfrentada no país no processo de construção socialista superando a dependência e o subdesenvolvimento. Nesse enfrentamento, desde já, é necessário ficar claro que a classe dominante, em seus mais diversos setores, nada tem a contribuir, mas são adversários a serem derrotados.’’
[1] https://pcb.org.br/portal2/23060/um-projeto-de-destruicao-nacional-e-a-necessaria-mudanca-de-rumo/
[2] http://ujc.org.br/as-universidades-brasileiras-sao-as-melhores-da-america-latina-melhores-para-quem/
[3] Veja-se, por exemplo, os trabalhos de economistas ‘’novo-desenvolvimentistas’’ como Luis Carlos Bresser-Pereira e Paulo Gala, e ‘’ortodoxos’’ como Pedro Cavalcanti Ferreira.
[4] https://istoe.com.br/estagnada-industria-tem-a-menor-fatia-do-pib-desde-o-final-dos-anos-40/
[5] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2018/06/18/internas_economia,689107/lucro-dos-bancos-cresce-em-2018-apesar-da-crise.shtml
[6] https://iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_929.html


CAPES bloqueia mais 2,7 mil bolsas de pesquisa

© WILTON JUNIOR / ESTADÃO Manifestantes protestam contra cortes na Educação no centro do Rio
ESTADÃO - Isabela Palhares


SÃO PAULO - A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) anunciou nesta terça-feira, 4, o bloqueio de mais 2.724 bolsas de mestrado e doutorado no País. O órgão, ligado ao Ministério da Educação (MEC), diz que o congelamento é necessário em função do contingenciamento de R$ 7,4 bilhões do orçamento da pasta.

No mês passado, a Capes já havia anunciado o corte de 3.500 bolsas - depois da repercussão negativa com a comunidade acadêmica e científica, 1,2 mil foram reabertas em cursos com conceitos 6 e 7. Já na ocasião, Anderson Ribeiro Correa, presidente da Capes, anunciou que um segundo corte poderia ser feito.

O corte nas bolsas de pesquisa foi o estopim para os protestos de estudantes, educadores e cientistas em todo o País. O bloqueio dos auxílios foi comunicado no dia 8 de maio e a primeira manifestação ocorreu no dia 15.

O órgão diz que, nessa segunda etapa, serão bloqueadas as bolsas de cursos que foram avaliados consecutivamente com nota 3 ou que tiveram redução de nota 4 para 3. "O critério foi estabelecido com o propósito de alinhar a concessão de bolsas no País à avaliação periódica da CAPES, preservando os cursos mais bem avaliados nos últimos 10 anos", diz em nota.

Foram congeladas 2.331 bolsas de mestrado, 335 de doutorado e 58 de pós-doutorado, totalizando 2.724 bolsas. O congelamento não afetará nenhum bolsista que atualmente recebe o benefício da Capes. 




O ataque da ignorância contra a razão
27 de maio de 2019

A defesa da universidade pública e a conjuntura
Por Mauro Luis Iasi
BLOG DA BOITEMPO
No último dia 15 de maio vimos uma Greve Geral da Educação, que mobilizou milhares de estudantes, professores e funcionários das Universidades Públicas, dos Institutos Federais, da educação básica e até de instituições privadas de ensino. Tal mobilização se deu em resposta aos cortes nas verbas de custeio das instituições de ensino, que o ministro (inimigo) da Educação eufemisticamente chama de contingenciamento. Para acrescentar um toque de perversidade, o presidente miliciano chama os manifestantes de “idiotas úteis”, manipulados por “militantes”.
O principal argumento para os cortes encontra-se na afirmação de que a economia não cresceu conforme o previsto, sendo, portanto, necessárias adequações. O ministro Abraham Weintraub, em depoimento no Congresso, acrescentou que tal previsão teria vindo do governo Dilma/Temer, procurando se isentar da responsabilidade, e ocultando propositalmente que o orçamento em vigor é na verdade do usurpador Temer (apoiado histericamente pelas forças políticas que agora governam e que prometeram o Éden do crescimento com o afastamento da presidente eleita em 2014).
O fato é que as universidades públicas vêm sendo “contingenciadas” em seus recursos há muito tempo. O Fórum de Pró-Reitores de Planejamento e Administração das Instituições Federais de Ensino Superior já alertava em 2017 que estávamos vivendo um agravamento da situação orçamentária nas universitárias, pelo crescimento do número de alunos ao mesmo tempo que encolhiam os recursos. Em 2017, o valor em reais por aluno era 42% menor do que o de 2011, passando de R$ 2496,77 para R$1757,13 nesse período. Neste quadro, a ANDIFES cobrava uma correção nas verbas que, além de não vir, agora foram reduzidas.
No entanto, trata-se de algo muito maior que o mero equilíbrio orçamentário. Trata-se de um ataque contra a concepção de universidade e de ensino público. É preciso, na lógica do governo miliciano, desqualificar a universidade apresentando-a como um lugar improdutivo e desnecessário de desperdício de recursos e promotor de “balbúrdias” e orgias. Além do “saneamento” nas contas do Estado promovido pelo guru do ultraliberalismo, o ministro Paulo Guedes, e o claro favorecimento à lógica privatista da educação, defendida por sua irmã, Elizabeth Guedes (vice presidente da Associação Nacional das Universidades Privadas), as universidades estão na mira do rancor governista por motivos políticos e ideológicos.
A tese estapafúrdia propagada pelo astrólogo do apocalipse sobre a existência de um suposto “marxismo cultural” que teria dominado todo o sistema educacional, os meios de comunicação e as forças armadas, encontra nas universidades um ponto central. Essas instituições teriam se tornado o centro da formação de militantes e da lavagem cerebral da juventude para destruir os valores fundamentais da sociedade ocidental e da cristandade. Os verdadeiros e valorosos pensadores conservadores e direitistas teriam sido perseguidos e hostilizados no ambiente acadêmico pela ofensiva deste mítico “marxismo cultural”.
É evidente que há uma relação de determinação entre esses dois aspectos, de maneira que os cortes de gastos públicos para manter os sagrados pagamentos dos juros da dívida e a sangria de recursos para o capital financeiro constituem o essencial, ao passo que o ataque ideológico serve de legitimação para tanto. Entretanto, acreditamos que, nas condições do atual desgoverno, o ataque às universidades e à educação é muito mais que uma mera cortina de fumaça.
As classes dominantes brasileiras precisam operar um ataque brutal aos trabalhadores e à maioria da população para garantir as condições de valorização do capital nas condições atuais. Isto implica a reversão de direitos e garantias que cumpriram um papel na reprodução social em períodos passados e agora precisam ser desmontados. O simples corte, no entanto, provocaria uma reação muito grande, de forma que operasse em dois planos: no sucateamento paulatino que vai inviabilizando as instituições de ensino e sua desmoralização.
O segundo plano, a desmoralização (não só do ensino, mas de tudo que é público) obedece, também, à lógica de blocar a base social de sustentação do desgoverno, mobilizando-a contra inimigos “imaginários”, enquanto servem de fato para implementar os verdadeiros interesses dos reais inimigos da maioria da população e da classe trabalhadora.
Antes de tudo, é necessário afirmar que a universidade no Brasil nunca foi hegemonizada por nenhum marxismo (cultural ou qualquer outro). A necessária defesa da universidade pública contra seu desmonte não pode obscurecer o fato de que essas instituições são e sempre foram eminentemente conservadoras na forma e no conteúdo. Mesmo com a saudável democratização do espaço universitário com a ampliação do acesso de camadas populares e segmentos para os quais este espaço era praticamente vetado (como pobres, negros, indígenas, camponeses, etc.), a vida acadêmica prima pelo elitismo, pela forma meritocrática ou quase aristocrática, pela seleção de currículos e saberes que respondem muito mais às necessidades da ordem burguesa e a reprodução do capital do que às demandas reais da maior da população.
A UFRJ, só para dar um exemplo, fica de frente para uma das maiores favelas do Brasil, o Complexo da Maré, à qual é ligada por uma ponte que foi batizada de “Ponte do Saber”, que é irônica e simbolicamente de mão única (saindo da universidade para a favela). Há muito tempo os interesses das grandes corporações lotearam os espaços universitários pela porta das parcerias, fundações e outros meios, capturando laboratórios, pesquisadores e estruturas para os colocarem a serviço das pautas e dos interesses empresariais.
É evidente que há honrosas exceções nas diferentes dimensões do ensino, da pesquisa e da extensão que buscam reflexões críticas, saberes e práticas voltadas às necessidades da classe trabalhadora e à compreensão de nossa sociedade e do mundo contemporâneo, a formação profissional de qualidade e à produção acadêmica de excelência. Mas todos concordarão que seria absurdo afirmar que essa vertente é determinante no mundo universitário – pelo contrário, sobrevive subordinada, como poucos recursos, preterida na distribuição de verbas e recursos materiais, bolsas, assistência estudantil, etc.
Manifestam-se na instituição universidade as mesmas contradições que marcam a carne da sociedade brasileira: as desigualdades entre homens e mulheres, brancos e negros, cidade e campo, ricos e pobres, assim como outras que poderíamos enumerar à exaustão.
Ao defender a universidade pública, é necessário todo o cuidado para não idealizarmos esta instituição, transformando-a em algo que ela não é. Ela é um espaço de conflito e de contradições, mas também é o espaço de onde vêm 95% de todas as pesquisas científicas em nosso país, a maioria absoluta das teses e dissertações defendidas, onde se realizam trabalhos de extensão de grande significado e onde se formam profissionais das mais diferentes áreas de atuação. No entanto, sabemos que o campo das pesquisas e da formação profissional está longe de ser neutro do ponto de vista dos interesses de classe que dividem nossa sociedade.
O ataque à universidade é parte da pauta do obscurantismo reinante e serve de coesionador da base retrógrada que deu a vitória eleitoral ao presidente miliciano. Fazem parte dessa frente de batalha a desqualificação da filosofia e da sociologia, a crítica aos intelectuais e artistas, entre outras iniciativas obscurantistas como nas pastas que tratam da família, dos povos indígenas, do meio ambiente ou da política internacional. Mas contra quem é necessário coesionar essa base?
Temos que estar atentos para um deslocamento importante. Evidente que é contra a esquerda, os ativistas, o “marxismo cultural”, mas há uma outra disputa em curso – esta entre os segmentos que compõem o governo. Claramente Bolsonaro não era a primeira alternativa da ordem burguesa e do grande capital monopolista. Parece evidente que ele não estava (e ainda não está) preparado para governar. Acrescente a isso o fato de que a personalidade do presidente é fonte de constantes instabilidades. Não creio que se trate de uma disputa, como se tem desenhado, entre duas alas: a “olavista” e a militar. Nos parece mais preciso descrever o governo como composto por três segmentos: o de sustentação do presidente (que inclui os seguidores de Olavo de Carvalho, o fundamentalismo religioso e a estrutura miliciana que envolve sua família), os militares (que não são, como o presidente gostaria, sua base ou seu grupo de pertencimento) e os ultraliberais bancados pelo “mercado”.
A convivência não deve ser fácil. Os militares se incomodam com o fato de que deram aval a algo que de fato não controlam e que é fonte inesgotável de constrangimento e vergonha alheia. A área chamada técnica tem lá seus problemas, pois pilota um programa de “reformas” que dificilmente produzirá os efeitos esperados na retomada da economia e do emprego e depende de uma sustentação política que dá claras mostras de incompetência para administrar a base do próprio governo. Moro, que gostaria de se incluir nesta área “técnica” é fonte de mais instabilidade, pois é odiado pelo Congresso que parece estar disposto a derrota-lo em tudo. O presidente não tem liderança e capacidade para unificar tudo isso que ele julgava ser homogêneo, mas que a cada dia se mostra não ser. O antipetismo, tão útil para ganhar as eleições, agora não serve para nada.
Pelo menos até agora, o presidente parece pensar que pode coesionar esses segmentos na medida em que fale diretamente com a base social por cima das mediações políticas que o Estado burguês lhe oferece. Para tanto, precisa manter mais um clima de campanha do que de governo e acaba acirrando a crise ao invés de controlá-la. A ofensiva contra a universidade faz parte deste script que pode incendiar as condições de governabilidade e agregar o tempero das ruas que faltava para fritar seu mandato.
O documento que o próprio presidente divulga, em que se diz obstaculizado pela “classe política” e por interesses que controlam o Estado, é menos uma tática política pensada e mais uma justificativa que tenta encobrir sua própria incapacidade. Isso, no entanto, não impede que produza o resultado esperado em sua base de apoio. A grande dúvida do momento é se a operação em curso para substituir o incômodo mandatário poderá ser feita sem grandes custos políticos e sem abrir brecha para uma oposição de esquerda ou centro esquerda que possa criar problemas para a agenda de reformas do capital. Parece claro que a direita quer se livrar de Bolsonaro para realizar sua agenda, mas como reagirá a extrema direita e sua base fanática?
Poderá o presidente destapar a panela do descontrole e movimentar o fanatismo em sua defesa? Mas, desta forma, não romperá definitivamente com os segmentos substantivos de seu governo (militares, representantes do sagrado mercado e base parlamentar) para quem a estabilidade e a garantia das reformas é a prioridade estratégica? Haveria espaço para um governo bonapartista que fosse capaz de se impor contra o Estado sem destruir a si mesmo? Os indícios apontam para mais um blefe. Está se formando um consenso pelo seu afastamento que pode ser selado pela linha da investigação que o associa às irregularidades no mandato de seu filho eleito senador e, por esta via, às supostas vinculações com as milícias e, quem sabe, ao assassinato de Marielle. Ao que parece, ele não articula mais uma maneira de ficar, mas uma justificativa de por que deve sair.


Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
 Governo quer destruir a educação superior pública
6 de maio de 2019
MANIFESTO NACIONAL UNIFICADO

O atual Ministro da Educação, Abraham Weitraub, concretiza o plano de Bolsonaro e Guedes de tratar a educação como inimiga. Somado com sua política obscurantista contra a ciência, a favor da censura e da ditadura, o governo anunciou um corte de 30% na UFF, UnB e UFBA acusando-as de promoverem balbúrdia. Em seguida anunciou que o corte se estende a todas as universidades e institutos federais.
Este governo não esconde o que quer: acabar com nossos direitos trabalhistas, aprovar o fim da previdência pública, aumentar o desemprego e sugar o orçamento da educação para privatizar nossas universidades, deixando o ensino superior apenas para as elites e a nossa produção de ciência e tecnologia na mão de grandes conglomerados privados, nacionais e internacionais. Sabem que para consolidar o seu projeto autoritário é necessário destruir os espaços que promovem a ciência e o pensamento crítico e farão isso subordinando ainda mais nosso país aos interesses estrangeiros.
É HORA DE O MOVIMENTO ESTUDANTIL DAR UMA RESPOSTA A ALTURA!
Nós que estivemos nas ruas nos momentos mais decisivos do país precisamos organizar nossas universidades para dar um passo adiante e agir imediatamente. Só a mobilização permanente de baixo para cima, a partir dos cursos, dos Centros Acadêmicos, dos coletivos, grupos de pesquisa é capaz de barrar esse desmonte. Precisamos construir um levante em defesa das universidades públicas e da ciência. Realizar assembleias, unificar ações com professores, técnicos e terceirizados, dialogar e convocar toda sociedade a estar ao nosso lado. O apoio da população será decisivo para mostrar as mentiras que Bolsonaro conta sobre nossas universidades.
As entidades nacionais, bem como os CAs, DAs, DCEs devem estar a serviço dessa luta e convocar imediatamente de forma democrática a construção de um plano de lutas unitário. Nossa agenda imediata deve passar por fortalecer todas as iniciativas construídas em cada local, como os atos em defesa das universidades já marcados para o dia 8 de maio, em defesa de uma educação pública, gratuita, de qualidade e popular, afinal balbúrdia é esse governo!
O dia 8 será nosso primeiro passo para esquentar a luta com ações no bandejão, panfletagens, passagens em sala, debates, assembleias e muito mais. Com isso queremos ampliar e fortalecer a convocatória do dia 15 de maio, dia de Greve Nacional da Educação. Vamos juntar todos a caminho de uma grande mobilização que defenda a universidade, o direito a aposentadoria e pare o plano de destruição de Bolsonaro, Weintraub, Guedes e seu governo.
União da Juventude Comunista (UJC)
 O inimigo agora é outro: a atualidade de Tropa de Elite 2
20 de março de 2019
Texto que trata do crime organizado a partir do prisma de Tropa de Elite 2, que apresenta outro inimigo, com o contexto da morte da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ)

O tema das milícias ressurge a partir das investigações acerca do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), em 14 de março de 2018, as quais apontam o envolvimento dos ex-PMs ligados ao Escritório do Crime, milícia que atua nas comunidades cariocas. 
Os milicianos investigados estão relacionados com o gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, expondo um envolvimento direto de relação íntima entre o clã Bolsonaro com as famílias dos milicianos.
Tal caso resgatou um meme nas redes sociais de uma cena do filme Tropa de Elite 2 (2010), pelo qual se sugere que o povo votou em Bolsonaro achando que era um Capitão Nascimento, quando na verdade era o miliciano Rocha, da trama. Curiosamente, o primeiro filme da franquia, lançado em 2007, criou no imaginário popular a figura do policial que manda porrada em bandido, através do personagem Capitão Nascimento, interpretado pelo ator Wagner Moura.
À revelia do próprio ator e do diretor do filme, José Padilha, que viam na trama uma crítica à segurança pública, essa narrativa foi construída de forma que fortaleceu os setores conservadores da sociedade, que enaltecem o militarismo e atacam os direitos humanos. Tal narrativa foi contestada no segundo filme, em que o capitão, promovido a coronel, mostra que o inimigo agora ‘é outro’.
A memória é algo que costuma nos trair e, em matéria de cinema, muitos perdem o legado em questão de segundos. José Padilha, que entrou na roda do unlike depois da série O Mecanismo, uma clara alusão à Operação Lava Jato da Polícia Federal, mostrou em Tropa de Elite 2 todos os problemas sociais que não pôde expor no primeiro filme, ou que ficaram acobertados pela estética policialesca do Capitão Nascimento. Diretor polêmico, Padilha também dirigiu o documentário Garapa (2009), que mostrava a realidade das famílias carentes do Nordeste e a importância dos programas Fome Zero e Bolsa Família.
Cena da ação da milícia no filme Tropa de Elite 2 (2010), Direção de José Padilha: https://youtu.be/qpIuXGFgEb4 No segundo filme, prestes a ser exonerado pela chacina no presídio, o agora coronel Nascimento é aplaudido pela classe média, mostrando que, para a sociedade, bandido bom é bandido morto. Algo que, quase dez anos depois do filme, se atualiza nos resultados das eleições do ano passado, com a consolidação da bancada conservadora e da bala enquanto hegemônica no Congresso Nacional.
Temos, assim, o papel de desconstruir o imaginário que os setores conservadores usaram a partir do primeiro filme. Basta ver exemplos como o de Alexandre Frota, eleito deputado federal pelo PSL paulista, que na época participou do quadro que ironizava o filme, Bofe de Elite, no programa do Show do Tom.
O retrato do BOPE, aparentemente enaltecido no primeiro filme, é exposto às contradições da realidade no segundo, quando Matias denuncia a precarização do batalhão, expondo os problemas de segurança pública do estado, que transformou a força de operações especiais num verdadeiro exterminador de pobres, enquanto as milícias se consolidavam, passando por cima dos atravessadores do tráfico comum.
A relação entre a milícia e a política é destrinchada na continuação de forma minuciosa, ao mostrar que a milícia, ao controlar territórios, garantia votos para os políticos que estavam atrelados à corrupção policial. O que explica, na realidade, o crescimento de muitas figuras que hoje são as mais votadas nas favelas cariocas, mesmo sendo estas defensoras abertas de políticas que vão na contramão dos direitos sociais dos menos favorecidos; retomando o voto de cabresto, algo que aparentemente era taxado como proeminente da política coronelista do nordeste brasileiro.
Um dos momentos de redenção do Padilha diante das críticas do primeiro filme ocorre durante as cenas da invasão à Favela do Tanque no segundo filme. Usa a estética agressiva, a exemplo do “saco na cabeça” com o chefe do tráfico, como ferramenta para se chegar à conclusão de que o inimigo agora é outro, nas palavras do subtítulo do filme; ou seja, de que não se resolveria o problema do crime com a violência do BOPE (que é regenerado na cena do atentado ao Nascimento), mas agora com a denúncia da corrupção do Estado.
Essa resolução se dá a partir da morte de Matias, o que chega a ser irônico quando reforça a máxima “a vida imita a arte”, pois vemos hoje o rastro da milícia que começa a ser caçada após o assassinato de Marielle, figura importante na denúncia do projeto de segurança pública carioca. Nas palavras do Coronel Nascimento, o importante é saber quem mandou matar Matias, Marielle e tantos outros.
Para desconstruir o mito do Capitão Nascimento, Padilha mostra um personagem agora frágil, que não é mais linha de frente nas operações, que se emociona e chora diante do filho internado. Seu único tiro durante todo o segundo filme é contra os milicianos, seguido da denúncia dos esquemas de corrupção na CPI das milícias, que na vida real existiu em 2008 e hoje retoma a ordem do dia após as denúncias de envolvimento da família Bolsonaro com os milicianos. Isso resgata o mundo cinematográfico de Padilha, porém, com um viés diferente do que a direita conservadora emplacou, no famoso “parece que o jogo virou”.
Portanto, atualizar a mensagem do segundo filme é importante para derrotar o imaginário que a direita construiu a partir do primeiro  –  enterrando o mito do Capitão Nascimento e fortalecendo a figura de denúncia do Coronel. Na disputa de narrativas, é preciso tomar lado, assim como Nascimento tomou no fim da trama, e mostrar que o inimigo agora é outro; ou na verdade sempre foi o mesmo, não o adversário que apontavam antes.
Texto de Antonio Lima Júnior e editado por João C. Horst Filho. Esta publicação é aberta para colaborações. Confira o nosso Expediente e Editorial.
Publicado originalmente em https://medium.com/cinestesico/o-inimigo-agora-%C3%A9-o-mesmo-a-atualidade-de-tropa-de-elite-2-no-cen%C3%A1rio-pol%C3%ADtico-brasileiro-dfd6db9214fe?fbclid=IwAR0I1rDiQmxX9ab_LRMnxVPQL6XrEw3CWSQoHaYtrzlla5aOq–K76oSBu4
Antonio Lima Júnior
Jornalista proletário, poeta e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) jornalismoproletario.blogspot.com.br subversinhos.blogspot.com.br
Ilustração: Rocha, o PM que vira miliciano e traz à tona o problema das milícias — fotograma de Tropa de Elite 2

 Mangueira: emocionante homenagem a Marielle e ao povo brasileiro




Por Paulo Donizetti de Souza, da Rede Brasil Atual

O samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira no carnaval 2019 levou de volta à Marquês de Sapucaí uma leitura crítica da história do Brasil. Com História pra Ninar Gente Grande, a tradicional escola reconta o processo de ocupação do país desde o descobrimento.
“Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento”, diz o samba composto por Tomaz Miranda, em entrevista recente à RBA. Para ele, manifestações culturais como as que têm sido vistas no carnaval 2019 “vão ter papel fundamental para poder driblar todo autoritarismo e o conservadorismo que a gente vai enfrentar nesses próximos anos”.
Brasil, meu nego Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra
O argumento do enredo é contundente: “Ao dizer que o Brasil foi descoberto e não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar heróis ‘dignos’ de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma ‘princesa’ e não do resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono profundo”.
A Mangueira repete a ousadia da Paraíso do Tuiuti, vice-campeã de 2018 com o enredo Meu Deus, Meu Deus, Está extinta a Escravidão? No ano passado, a escola do bairro de São Cristóvão surpreendeu a avenida e cativou o público com um histórico samba de protesto contra o racismo e as sequelas da escravidão até hoje sofridas pela população negra do país. Uma das alas trazia “manifestoches”, ironizando o papel manipulador da mídia e das redes sociais na formação de manifestantes que foram às ruas contra tudo e contra todos e contribuíram para que o poder e a política permaneçam sob o controle dos mesmos grupos econômicos de sempre.
“Meu Deus! Meu Deus!/ Se eu chorar, não leve a mal/ Pela luz do candeeiro/ Liberte o cativeiro social”, dizia a letra da Tuiuti, que ficou apenas um décimo de ponto atrás da campeã Beija Flor no carnaval de 2018.
Este ano, a escola do carnavalesco Jack Vasconcelos volta ao samba com crítica social, em um enredo que expõe conflito de classes e embate social. Diz trecho da letra de O Salvador da Pátria, cuja referência tem sido atribuída à história do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Do nada um bode vindo lá do interior Destino pobre, nordestino sonhador Vazou da fome, retirante ao Deus dará Soprou as chamas do dragão do mar (…) Ora meu patrão! Vida de gado desse povo tão marcado Não precisa de dotô Quando clareou o resultado Tava o bode ali sentado Aclamado o vencedor
Cultura e resistência
O carioca Tomaz Miranda, um dos autores do samba da Mangueira História pra Ninar Gente Grande (ao lado de Deivid Domênico, Mama, Márcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino), vê um processo de resistência se impondo ao Brasil desde a ascensão do bolsonarismo. O samba lembra, entre outros momentos da história recente, a vereadora do Psol-RJ Marielle Franco, morta a tiros, em março passado, junto com Anderson Gomes, que dirigia o carro em que foram emboscados, no centro do Rio.
“Acho que vai ficar mais aguda a tentativa de apagamento, de desconstrução da cultura popular, principalmente ligada às origens africanas, às manifestações culturais, religiosas e sociais verdadeiramente populares do Brasil”, disse Tomaz.
“Acho que ao mesmo tempo essas manifestações vão ter papel fundamental para poder driblar todo autoritarismo e o conservadorismo que a gente vai enfrentar nesses próximos anos”, pondera, admitindo que o carnaval tem seu lado conservador: “As escolas de samba não são uma coisa só. E a gente vai tentando jogar dentro desses espaços de contradição”.
A jornalista Hildegard Angel, colunista do Jornal do Brasil, comemorou o convite para desfilar na Mangueira, na frente do carro dos “verdadeiros heróis de nossa História”. Segundo ela, a alegoria traz, sobre livros da história do Brasil, um tributo fortíssimo aos heróis do tempo da ditadura. “Eu quis declinar, não tenho mérito pra isso. Mas o carnavalesco disse que eu passei a representar a denúncia daquele tempo. Estou comovida”, disse. “Os carros estão todos lindos e trazendo mensagens contundentes, desde a Abolição, com heroína fake. Me vejam na TV, se é que a Globo vai me mostrar.”
Hildegard é filha de Zuzu Angel e irmã de Stuart Angel. Zuzu foi morta pela ditadura por acuar, com sua busca obstinada, o governo militar em razão do desaparecimento e assassinato de Stuart Angel.
Confira o samba da Mangueira 2019
História pra Ninar Gente Grande
Mangueira, tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões São verde e rosa, as multidões
Mangueira, tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões São verde e rosa, as multidões
Brasil, meu nego Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo A Mangueira chegou Com versos que o livro apagou Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de cariri Não veio do céu Nem das mãos de Isabel A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho Quem foi de aço nos anos de chumbo Brasil, chegou a vez De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
Publicado em 5 de março de 2019


Enredos de escolas de samba trazem temas de luta
Entre os temas do carnaval 2019 aparecem: candidaturas laranjas, lideranças negras históricas, racismo e resistência

Bruna Caetano - Brasil de Fato
O samba, como expressão cultural do povo negro brasileiro, é marcado em sua história pelo símbolo de luta, uma característica também presente na festa mais popular do país: o carnaval. As escolas de samba, com a visibilidade que adquirem nessa época do ano, muitas vezes usam os holofotes sob a festa para pautar questões relacionadas aos grupos marginalizados e à política institucional.
A escola do grupo especial do Rio de Janeiro, Paraíso do Tuiuti, ganhou destaque no carnaval passado ao levar para a Sapucaí o enredo sobre os 130 anos da Lei Áurea, onde questionava se a escravidão está realmente extinta. A escola causou polêmica ao denunciar o golpe de 2016 colocando na avenida um vampiro com faixa presidencial, em alusão a Michel Temer, que ocupava o posto da Presidência da República.
Neste ano, a vice-campeã traz o samba-enredo O Salvador da Pátria, e no último ensaio técnico, exibiu na Comissão de Frente homens engravatados representando políticos, e bailarinas com roupas e perucas na cor mais comentada do ano: a laranja, representando as recentes polêmicas de candidaturas do PSL, partido de Jair Bolsonaro.
Também do Rio de Janeiro, a Estação Primeira de Mangueira vai contar a história de heróis populares através do samba História pra Ninar Gente Grande, enaltecendo o legado de pessoas como Luísa Mahin, Dandara e Marielle: “Brasil, meu dengo / A Mangueira chegou / Com versos que o livro apagou / Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento / Tem sangue retinto pisado / Atrás do herói emoldurado / Mulheres, tamoios, mulatos / Eu quero um país que não está no retrato” canta o enredo.
De acordo com Tiaraju Pablo, coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP) e pesquisador sobre carnaval, os sambas-enredo sempre incomodaram o poder político exatamente por trazer esse caráter crítico. Em 1969, por exemplo, o Império Serrano teve seu desfile cerceado por helicópteros por criticar a ditadura militar na avenida, com o samba Heróis da Liberdade.
Entre os anos 80 e 90, houve um ápice de enredos com esse caráter através de sátiras, ou de denúncia das mazelas sociais como fazia a escola São Clemente. Em 1988, a Unidos de Vila Isabel e a Mangueira questionavam o mito da abolição da escravatura, e em 1989, a Beija-Flor emplacou o samba Ratos e Urubus Larguem Minha Fantasia, conquistando o segundo lugar, atrás da Imperatriz Leopoldinense com Liberdade, Liberdade.
Para o especialista, as escolas de samba retornam a essa vocação crítica a partir de 2016. A Imperatriz Leopoldinense, por exemplo, foi perseguida em 2017 pelo agronegócio por tratar dos povos do Xingu em seu desfile. “Jardim sagrado, o caraíba descobriu / Sangra o coração do meu Brasil / O belo monstro rouba as terras dos seus filhos / Devora as matas e seca os rios / Tanta riqueza que a cobiça destruiu!” diz o samba Xingu, o Clamor Que Vem da Floresta.
O samba sempre foi negro, e colocar em pauta as africanidades é um papel que as escolas desempenham desde sempre. Isso acontece, principalmente, nas escolas que possuem uma raiz ainda mais popular como a Nenê de Vila Matilde, Camisa Verde e Branco e Unidos do Peruche, que esse ano traz o samba Nascem do Ventre Africano, Os Valores do Mundo. África, um Passado Presente no Futuro da Humanidade. Segundo a historiografia, o primeiro tema afro foi o do Salgueiro, no carnaval de 1960, falando de Zumbi dos Palmares. Mas, em 1956, a Nenê de Vila Matilde já havia levado o enredo Casa Grande Senzala, como explica Tiaraju.
Ele acredita que, atualmente, os enredos sobre negritude e africanidades estão em alta por três motivos: os setores progressistas da sociedade passaram a notar o potencial crítico das escolas, o debate racial está em um nível avançado e existem críticas de setores conservadores da sociedade sobre as religiões de matriz africana. “Quando as escolas de samba e as religiões afrobrasileiras estavam sob ataque, por volta de 2016, perceberam que só sobreviveriam se incorporassem essa vertente crítica. Elas foram para o ataque.”
Para o pesquisador, as escolas de samba se tornam ainda mais importantes quando retratam o país de forma crítica. “O carnaval é irreverente, crítico e um momento de denúncia. As escolas de samba são uma síntese do Brasil, e são capazes de retratar sensações e passar uma mensagem de maneira épica e através de um cortejo. Quando ela se reencontra com esse Brasil profundo e consegue levar isso para a avenida, é quando a escola de samba cumpre ao máximo seu papel.”
Esse ano, a Vai-Vai, Unidos do Peruche, Mancha Verde, Pérola Negra, Paraíso do Tuiuti e Mangueira são algumas das escolas colocam no Sambódromo do Anhembi e na Marquês de Sapucaí a cultura afrobrasileira e as denúncias das mazelas da política nacional.
Edição: Mauro Ramos
Ilustração: Ala dos patos amarelos da Tuiutí em 2018 fez alusão ao pato inflável da FIESP, entidade que apoiou o golpe contra Dilma Rousseff. Tânia Rêgo. Agência Brasil
Publicado em 03 de março de 2019


 GRANDE OTELO: O PEQUENO NOTÁVEL

Por Altamir Pinheiro.      
Publicado em 20.02.2019

Tanto riso, oh quanta alegria / Mais de mil palhaços no salão / Arlequim está chorando pelo amor da Colombina / No meio da multidão. Ouvindo-se Zé Keti vem a nossa lembrança a figura  do “neguinho” Sebastião Prata, em que pese sua vida ter sido marcada por tragédias pessoais, porém, sua simpatia esfuziante, ruidosamente alegre, já  era uma tremenda gargalhada a céu aberto. Que não nos deixem mentir  os filmes Carnaval no Fogo (1949) e Carnaval Atlântida (1952).

A propósito, as filmagens  de CARNAVAL NO FOGO foram bastante tumultuadas; paralelamente, uma tragédia se abate sobre ele, um dos astros do filme. Sua mulher, depois de matar o filho, enteado de Otelo, se suicida, deixando-o em profunda depressão; a famosa cena do balcão em que ele e Oscarito parodiam Romeu e Julieta, no entanto, foi realizada sem que ele ainda soubesse do acontecido. A partir dessa data, ele filmou, quase sempre, embriagado. Apesar disso, cumpriu seus compromissos até o fim.
Àquele brilhante tiquinho de nego, depois que perdeu o pai esfaqueado  e vivia com a mãe alcoólatra foi parar no juizado de menores e logo após adotado por uma família rica de São Paulo, e daí veio a ganhar o sobrenome do casal que o educou - Prata – chamando-se Sebastião Bernardes de Souza Prata, donde,  veio a estudar no Liceu Coração de Jesus e, em 1926, com apenas 11 anos, ingressou na “Companhia Negra de Revista”, composta exclusivamente por artistas negros, entre eles, Pixinguinha, que era o maestro e o músico e compositor Donga.

A biógrafa Dilva Frazão informa que ele  ganhou o apelido de “Otelo”, na ocasião em que apareceu ou surgiu na Companhia Lírica Nacional, onde o jovem tomava aulas de canto lírico. O maestro julgava que quando ele crescesse poderia cantar a ópera Otelo, de Verdi. Por sua pequena estatura recebeu o apelido de Pequeno Otelo, mas depois, a crítica o apelidou de “Grande Otelo”.  – (Conforme nos confidencia a enciclopédia livre Wikipédia: Otello é uma ópera em quatro atos do compositor italiano Giuseppe Verdi, baseado na peça Othello, the Moor of Venice ("Otelo, o mouro de Veneza"), do dramaturgo inglês William Shakespeare. Foi a penúltima ópera de Verdi, e é considerada por muitos a sua maior tragédia. Sua estreia se deu no Teatro alla Scala, de Milão, em 5 de fevereiro de 1887. A obra tem como cenário a ilha de Chipre no final do século XV).

Negro, com apenas 1,50 metros de altura viveu numa época em que os negros não podiam entrar pela porta da frente do Cassino, fato que mudou depois da contratação do artista. Assim começou a carreira de um dos maiores atores brasileiros, que passou pelos palcos dos cassinos e dos grandes shows das mais importantes casas noturnas do Rio. Passou também pelo teatro, pelo cinema e pela televisão, deixando sempre a lembrança de personagens marcantes. Era um assíduo frequentador das noites cariocas, estava sempre na famosa gafieira Elite, no bar Vermelho ou nos bares da Lapa.


No cinema, Grande Otelo foi um dos grandes destaques da “Atlântida”, quando protagonizou o filme “Moleque Tião” (1943), o primeiro sucesso da produtora. Foi na “Atlântida” que Grande Otelo fez uma grande parceria com Oscarito (morreu no ano de 1970 aos 64 anos), que se tornou a dupla mais famosa e bem sucedida do cinema brasileiro. Depois os produtores formariam uma nova dupla dele com o cômico paulista Ankito (faleceu em 2009 aos 85 anos).


Em 1939, contracenou com a atriz e dançarina norte-americana Josephine Baker, que considerou uma das mais importantes apresentações de sua carreira. Participou em 1942 do filme "It's All True", de Orson Welles. Orson Welles considerava Otelo o maior ator brasileiro. Em 1967 Grande Otelo filmou, no Brasil, com a estonteante Claudia Cardinale,  a película Uma Rosa Com Amor,  que teve um grande sucesso de público por retratar o carnaval carioca. Participou também do filme de Werner Herzog, Fitzcarraldo, de 1982, filmado na floresta amazônica.  Mas ele não era apenas comediante. Como ator dramático, marcou presença em vários filmes, dentre os quais Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977). Filmou também um faroeste: Se Meu Dólar Falasse (1970). Na  paródia jocosa ou imitação irônica filmou em 1961 O Homem Que Roubou a Copa do Mundo, como também    O Assalto ao Trem Pagador (1962).

Grande Otelo foi casado com a atriz e dançarina Maria Helena Soares (Joséphine Hélene), e com Olga Prata, com quem teve quatro filhos, entre eles o ator José Prata. Morreu de enfarte ao desembarcar em Paris, às vésperas de seus 78 anos, a caminho do Festival dos Três Continentes, em Nantes, onde seria homenageado.

Em 1977, o grande pianista, cantor e compositor de samba, Benito Di Paula, eterno homem da montanha, compôs e cantou uma  magnífica canção quando fez uma   belíssima homenagem ao  "pequeno" GRANDE OTELO. Aliás, homenagem ímpar a um dos maiores representantes, no campo das artes, de todas as classes do Brasil. Em um dos refrãos, diz Benito: Tens o dom de ser /  Risos e perdão / Tens no palco a vida, teu coração / Grande Otelo é festa eu quero aplaudir / Sempre chora e ri quase ao mesmo tempo / O cinema livre é seu pensamento / Grande Otelo é festa, eu quero aplaudir. Ouça a música na íntegra clicando no endereço abaixo:


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