Future-se 2.0: os
retrocessos na Educação
O que muda com o PL que segue para o Congresso
Por Fábio Bezerra*
No último dia 02/06,
o Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional, para tramitação, o PL
3076/2020, que institui o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e
Inovadores- Future-se. Desde que assumiu o Governo, Bolsonaro tem destacado sua
cruzada ideológica e política contra a educação pública, em especial as
Universidades e Institutos Federais. Nos primeiros meses nomeou para a condução
do Ministério da Educação o senhor Ricardo Vellez, pupilo do astrólogo e
pseudoprojeto caricatural de um Rasputin à brasileira, o senhor Olavo de
Carvalho, relíquia viva dos tempos do macartismo da Guerra Fria e baluarte do
conservadorismo mais tacanho e reacionário por essas bandas do hemisfério sul.
Pouco hábil e sem
rumo certo, Vellez não durou mais do que três meses, sendo substituído por um
cavaleiro errante, ou melhor, um cavaleiro do apocalipse, o senhor Abraham
Weintraub, que assumiu o Ministério com o compromisso de travar uma verdadeira
cruzada reacionária contra a educação, buscando desenvolver aceleradamente os
desígnios e os programas de privatização das Instituições Federais de Ensino
(IFEs), que há anos vem sendo destilados por governos subalternos às políticas
neoliberais.
O Projeto que traça
um modelo empresarial para as IFEs, lançado em julho de 2019, o intitulado
Projeto “Future-se”, não é novidade no campo das batalhas de resistência em
defesa da educação pública. Esse projeto corresponde a uma sequência lógica de
um conjunto de medidas e reformas que, ao longo dos últimos anos, foram
sedimentando o caminho para a redução de recursos públicos para a educação
superior e técnica-tecnológica, afetando a qualidade do ensino, a pesquisa e o
desenvolvimento da extensão, até chegar à completa precarização desses espaços
e desmonte das respectivas potencialidades.
Mas, de fato, o
“Future-se” foi um passo mais ousado e à frente nessa campanha privatista que
há anos vem sendo implementada por governos de todas as matizes, ao sabor das
exigências dos organismos financeiros que prescrevem medidas de contenção de
gastos públicos associadas à promoção da privatização de bens e serviços
estatais, inclusive aqueles tidos como inalienáveis constitucionalmente, como o
direito à saúde e à educação. Esse processo segue o percurso da expansão
destrutiva do capital sobre a educação como política neoliberal através do
avanço das tecnologias da informação e comunicação, pelas formas não
presenciais de ensino que rendem volumosos recursos em contratos com empresas
do ramo, a formatação da organização universitária em agências prestadoras de
serviços e mão-de-obra para instituições nacionais e internacionais -como é a
orientação da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Em nome da propalada
“sociedade do conhecimento”, a mesma OMC e o Banco Mundial estipulam o controle
privado do mercado sobre as instituições públicas de ensino, em um claro
processo de mercantilização da educação e do conhecimento científico e técnico
produzido pelas IFEs. Esse projeto possui uma vertente pedagógica que estimula
uma falsa consciência nos estudantes de que, no processo de ensino e
aprendizado, mediado pela ideologia do empreendedorismo, o educando deve se
tornar uma espécie de empresário de si mesmo, assumindo competências e
habilidades direcionadas para lidar com as oscilações do mercado, de modo a
empenhar esses postulados ideológicos nos processos de aprendizagem teórica e
prática.
A valorização da
produtividade e da mercantilização são consideradas as únicas referências
possíveis e necessárias ao exercício laboral e ao sentido do desenvolvimento da
ciência e da tecnologia. As pesquisas desenvolvidas, os modelos de educação e
os projetos de extensão seguem a perspectiva do “Capital Humano”, ideologia
produtivista que foca o investimento na capacitação do trabalhador para se
adaptar aos efeitos diversos das crises econômicas, entre elas a redução de
postos de trabalhos e a flexibilização de direitos e relações trabalhistas.
Nesse último aspecto, não há extensão no sentido social e cooperativo, mas
prestação de serviços determinados por valores de mercado e com finalidades
mercantis e financeiras.
Esse postulado
ideológico faz a interface com as necessidades objetivas que o capitalismo, em
crise, estabelece como recurso em seu metabolismo crônico, a partir de
processos de privatização sobre a formação científica e tecnológica das futuras
gerações e o conhecimento produzido pelas instituições públicas, pois
corresponde à nova fase de apropriação acelerada do desenvolvimento da ciência
e da tecnologia e seus significados econômicos e sociais, constituindo-se em
uma “nova” modalidade privada da produção do capital, enquanto fonte de lucro,
por meio da inovação de produtos e serviços. Dessa forma é possível garantir
uma sobrevida às grandes empresas nacionais e transnacionais em um contexto de
crises econômicas constantes e abalos sísmicos frequentes no equilíbrio de
forças no mercado capitalista.
Não raro, ao longo
dos últimos anos, diversos gestores têm sido seduzidos por esse mecanismo
ideológico, promovendo e adaptando alterações organizacionais no âmbito das
IFEs. Esse processo facilita mudanças estruturais que se ajustam à participação
de empresas privadas, como cogestoras e investidoras via Fundações de Apoio, a
projetos diversos que condicionam um determinado modelo empresarial e
utilitarista sobre as dependências universitárias e dos institutos federais,
assim como sobre a própria autonomia dos órgãos administrativos. Em Minas
Gerais, por exemplo, a influência política e econômica de mineradoras nas IFEs,
tais como a Vale e da Samarco, envolvidas em crimes humanitários com o
rompimento de barragens, é um caso emblemático!
O fiasco da adesão ao
“Future-se”, rejeitado pela maior parte da comunidade acadêmica, rechaçado nas
ruas por servidores e estudantes, criticado por especialistas em educação e
denunciado e combatido por entidades de classe, não fez retroceder o intento
privatista de Bolsonaro e seu real cavaleiro do apocalipse. Ao contrário, em tempos
de “passar um boi, passar uma boiada”, com as atenções da opinião pública
voltadas para o avanço progressivo do COVID-19 entre nós, Bolsonaro encaminhou,
meio escondidinho entre tantos projetos de lei, a priori sem muita importância,
o PL 3076/2020, que institui à fórceps o Programa “Future-se” (em seu formato
2.0), a oportunidade tão desejada de selar de vez o futuro das IFEs, jogando a
criança com a água e a bacia no colo do setor produtivo.
O Projeto de Lei
encaminhado ao Congresso e reformulado pelo MEC, subdivide-se em três grandes
eixos:
a) Contrato de
Resultados
b) Empreendedorismo
c) Internacionalização
Em uma leitura mais
cirúrgica do PL, podemos destacar os seguintes pontos que não nos deixam
nenhuma sombra de dúvidas sobre as ameaças e o sentido desse descalabro à
educação pública e ao povo brasileiro!
No Capítulo I, artigo
1º inciso III, a proposta visa “fomentar a cultura empreendedora em projetos e
programas destinados ao ensino superior”, ou seja, subordinar os projetos de
pesquisa, ensino e extensão e toda a potencialidade do conhecimento acadêmico à
dinâmica e aos valores da lógica do mercado. A questão aqui não é deixar de
dialogar com o mercado, como alguns arautos da moralidade liberal bradam aos
quatro cantos quando esse tipo de ação é contestada, até porque hoje em dia, a
maioria das IFEs já promovem parcerias pontuais com instituições privadas e o
setor produtivo.
A questão fundamental
é tecer uma necessária reflexão crítica ao processo de privatização acelerado e
a subordinação dos programas e projetos de ensino, pesquisa e extensão à
dinâmica do capital, confluindo com um projeto de sociedade que aumenta as
disparidades sociais, a subjugação política e econômica do país e a restrição e
apropriação do patrimônio público pelo consórcio do mercado privado em
detrimento da função social das Universidades Públicas, Institutos Federais e
Cefets.
O artigo 3º, inciso
I, do Capítulo I estabelece a figura do contrato de resultados. Mas o que seria
isso? Esse contrato é um instrumento jurídico celebrado entre as IFEs e a União
através do MEC, que estabelece, entre outros procedimentos, “indicadores de
resultados” para a contratada, ou seja, as IFEs, em relação à contratante
(União), para a “contrapartida da concessão de benefícios por resultado”!!!! O
referido artigo estabelece uma relação direta de contrato entre as IFEs e a
União para que haja o repasse de adicionais por resultados de desempenho
advindos dos recursos do Fundo Público à educação! O mesmo Fundo Público que há
anos tem sido assaltado por uma lógica perversa de sustentação do sistema
financeiro internacional.
A lógica aqui é a
mesma já utilizada na indústria há décadas. Através de Programas de Metas de
Produtividade, estipulam-se determinadas níveis e objetivos de produção, que
aumentam a exploração de mais-valia sobre as(os) trabalhadoras(os) no processo
produtivo, sem levar em conta outros condicionantes que podem interferir no
cumprimento das metas e assim justificar o não cumprimento do acordo
contratado. Por si só, tratar o funcionamento acadêmico em um plano de metas e
resultados já é um absurdo funcional e, além de inverter todo o sentido do
funcionamento científico e educacional, cria uma relação de chantagem e
subordinação cretina entre o Poder Público e as IFEs, com recursos que por lei
deveriam ser destinados ao bom funcionamento dessas instituições. Os
“indicadores de resultados” funcionarão como um torniquete financeiro e
político sobre toda a vida institucional.
Ainda no mesmo
sentido da cretinice desse governo, o inciso II do PL estabelece o “benefício
por resultados”, que possui a função de facilitar a obtenção de resultados
previstos no “Future-se”, ou seja, uma espécie de bonificação à medida que as
IFEs forem progredindo no seu martírio, em relação aos subordináveis ajustes
necessários para o cumprimento dos objetivos do “Future-se”.
Os incisos seguintes
prescrevem as condicionantes básicas para o empenho de recursos entre a
contratante e a contratada. São eles: 1 – Pesquisa e Desenvolvimento para a
composição de um estoque de conhecimento para aplicações futuras; 2 – Incentivo
à inovação em produtos e serviços e ao empreendedorismo; 3 –
Internacionalização através de convênios firmados com instituições
internacionais.
No ponto referente à
concessão de recursos por produtividade caberá ao Ministério da Educação e ao
Ministério da Ciência e Tecnologia, Inovação e Comunicações estabelecer “(…) os
indicadores para a mensuração do desempenho”, conforme exposto no artigo 7º,
com os propósitos de incrementos de eficiência e economicidade. Isso evidencia
que um dos principais objetivos desse PL não é apenas o condicionamento
produtivista e mercadológico das Instituições Federais de Ensino, mas também e
sobretudo, a redução dos recursos do Fundo Público para a educação de acordo com
os parâmetros dos organismos financeiros internacionais: OMC, Banco Mundial e
FMI.
Dessa forma, esse
processo reduz as potencialidades e as possibilidades de pesquisas e projetos
de extensão como políticas públicas de combate às desigualdades diversas presentes
na sociedade brasileira. Esses indicadores criam uma camisa de forças que
direcionará departamentos e toda a estrutura acadêmica aos objetivos prescritos
acima. Entre esses indicadores do contrato de resultados destacam-se:
a) Prazos para
execução;
b) obrigações em relação aos indicadores;
c) avaliação de resultados;
d) prazo de vigência que não poderá ser inferior a um ano.
No Comitê Gestor
tripartite, previsto no artigo 9º, que deverá acompanhar e avaliar o
cumprimento das metas acordadas, o Governo terá sempre maioria, pois contará
com representantes do MEC e do Ministério de Ciência e Tecnologia, enquanto as
IFEs terão apenas uma representação. Se já não bastasse o torniquete
financeiro, a feitoria administrativa e fiscalizadora se garantirá pela maioria
governamental, nesse modelo “petité comitê”.
O papel das Fundações
fica estabelecido a partir do artigo 15. Nesse quesito, o PL resolveu uma das
pendências iniciais do Programa “Future-se” quando anunciado em julho de 2019 e
que estabelecia, para as Organizações Sociais externas, a função de intermediar
os contratos entre as IFEs e empresas interessadas em contratar serviços. Isso
causou intensa resistência nas universidades, mas não pelos princípios e
finalidades do “Future-se”, mas sim pelo fato de as Fundações de Apoio já
existentes estarem perdendo espaço e até mesmo serem anuladas com a
concorrência de Organizações Sociais que poderiam ser criadas pelas empresas
contratantes com total independência.
Nesses meses que se
passaram – creio ser importante ressaltar isso – o Governo teve tempo de
ajustar o Programa Privatista e, nesse PL encaminhado ao Congresso, as
Fundações passam a ter destaque nessa intermediação entre as IFEs e a
iniciativa privada, acalentando assim os mais nobres sentimentos monetaristas.
Caberá às Fundações, segundo os artigos 15 e 16, “(…) a contratação de
serviços, a execução de obras e a aquisição de materiais, equipamentos e outros
insumos relacionados às atividades de ensino, inovação e pesquisa científica e
tecnológica”, firmados através de instrumentos jurídicos específicos,
abrangendo “(…) projetos de produção, fornecimento e comercialização de
insumos, produtos e serviços, relacionados às universidades ou aos institutos
federais”. Essa comercialização abrange inclusive o excedente da produção
resultante das atividades executadas.
Dessa forma, as
Fundações de Apoio, em curto espaço de tempo, terão mais influência e poder
político do que os Conselhos Superiores, pois, além de serem as intermediadoras
nas negociações entre as IFEs e a iniciativa privada, garantindo as condições
para o cumprimento do plano de metas do “Future-se”, serão também as
responsáveis diretas pela administração de todos os insumos e aquisição de
materiais e serviços pertinentes ao funcionamento das instituições de ensino.
Essas Fundações de Apoio também terão autonomia para comercializar excedentes e
administrar uma espécie de “fundo de conhecimento” que poderá ter ativos em
Bolsa de Valores. Tornar-se-ão o coração e o cérebro das universidades, institutos
federais e Cefets.
Dos eixos básicos
apresentados acima, o Capítulo IV, que trata da Pesquisa, Desenvolvimento
Tecnológico e Inovação, é um exemplo do condicionamento das pesquisas
acadêmicas e do desenvolvimento tecnológico à racionalidade instrumental. O
condicionamento à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico será norteado pela
política de inovação de cada IFE. Essa política de inovação deverá seguir os
seguintes parâmetros:
I – Facilitar meios
de creditação de infraestruturas de pesquisa para o estabelecimento de
parcerias ou para a prestação de serviços técnicos especializados com empresas;
II – promover a cultura de estímulo à pesquisa tecnológica, à inovação, ao
empreendedorismo e à proteção à propriedade intelectual;
III – promover a capacitação da comunidade acadêmica para atuar no núcleo de
inovação tecnológica, na gestão de processos de inovação, na prospecção de
projetos de pesquisa e inovação;
IV – estabelecer conteúdos de propriedade intelectual, empreendedorismo e
inovação de forma transversal nas matrizes curriculares nos diferentes níveis
de formação acadêmica;
V – proporcionar a criação e a gestão de redes e centros de laboratórios
institucionais com o objetivo de atender a demandas de empresas, instituições
científicas, tecnológicas e de inovação.
Esses parâmetros
deixam claro que todo o desenvolvimento da pesquisa deve estar direcionado
prioritariamente a atender as demandas do mercado produtivo e estimular uma
lógica empresarial de prestação de serviços, em detrimento da função social que
as pesquisas devem possuir em instituições públicas, ou seja, identificar e
apresentar soluções para as mais variadas mazelas e contradições que atingem a
população brasileira através das diversas áreas de conhecimento.
Sobre o
empreendedorismo, tratado no Capítulo V, os pontos mais gritantes e
contraditórios podem ser assim resumidos a partir do artigo 19:
Inciso I – “(…)
consolidação de ambientes que promovam inovação, com foco no estabelecimento de
parcerias com o setor empresarial, incluídos os parques e pólos tecnológicos,
as incubadoras e as startups(…)”;
II – “(…) aprimorar o modelo de negócios”;
III – “(…) aperfeiçoar a gestão patrimonial de universidades e institutos
federais, por meio de cessão de uso, concessão, comodato, fundos de investimentos
imobiliários, entre outros mecanismos (…)”;
V – “(…) apoiar a criação e a organização das associações denominadas empresas
juniores(…)”;
VI – “promover e disseminar a educação empreendedora por meio da inclusão de
conteúdos e atividades de empreendedorismo nas matrizes curriculares dos cursos
técnicos, de graduação e de pós-graduação (…)”;
VII – “fomentar startups que atendam às necessidades do mercado e da sociedade
e
VIII – promover ações de empregabilidade e empreendedorismo para os discentes
das universidades e dos institutos federais.
No ponto que trata da
internacionalização, no Capítulo VI, artigo 22, chamam atenção os seguintes
pontos:
VIII –
estabelecimento de parcerias para oferta de programas de graduação ou de
pós-graduação stricto sensu em regime de dupla titulação, cotutela ou
orientação conjunta e de titulação conjunta com instituições estrangeiras de
excelência acadêmica;
XXIII – facilitação de acreditação de disciplinas cursadas em plataformas
ofertadas por instituições de excelência no exterior, conforme disposto em
regulamento.
Art. 23. “As
fundações de apoio poderão contratar, por prazo determinado, pesquisadores e
professores estrangeiros para atuar em projetos e programas de ensino, pesquisa
e extensão internacionais do Programa Future-se(…)”.
Isso significa que as
IFEs terão, como uma das condicionantes para o aporte de recursos advindo do
Future-se, convencionar necessariamente a celebração de acordos internacionais
com outras instituições públicas ou privadas. Parte do currículo estudado
poderá ser feito em plataformas de ensino à distância por essas instituições
estrangeiras, sendo assim validadas as disciplinas cursadas e computadas para a
validação do curso. Isso certamente irá implicar na redução de docentes e
técnicos administrativos por Departamento de Ensino, podendo abrir um
precedente para o custeio público dessas parcerias envolvendo o ensino à
distância com instituições privadas!
O artigo 23 é ainda
mais explícito nessa intervenção estrangeira sobre as IFEs, pois, a pretexto de
acordos de pesquisa e extensão empreendedora com instituições privadas,
docentes e pesquisadores estrangeiros, poderão ser contratados pelas Fundações
para a promoção de projetos diversos, entre eles até mesmo o de ensino,
terceirizando dessa forma , o quadro docente nos Departamentos de Ensino. A
estrutura organizacional e curricular das IFEs devem priorizar a transformação
do ambiente acadêmico em uma espécie de extensão para o mercado privado,
através de empresas contratantes, que poderão, entre outras formas de
intervenção privada, sublocar laboratórios, salas e outras dependências das
IFEs, alugar espaços para a promoção de propagandas de produtos, alterar o
currículo acadêmico para direcionar determinados cursos à formação de mão de
obra específica para determinadas funções ou atender a demandas de empresas
parceiras ou para o condicionamento da produção intelectual e técnica, a fim de
atender a determinados projetos e serviços estipulados pelas empresas
financiadoras via mercado de investimentos.
Essa interferência
nos currículos enquanto objeto de contrato firmado com empresas fere a
liberdade de cátedra, a autonomia departamental para definir os parâmetros
curriculares mais adequados à formação docente e fere, sobretudo, a
possibilidade da formação humanista, crítica e pautada por princípios
epistemológicos e éticos que possibilitem uma abordagem mais ampla sobre a
diversidade conjuntural brasileira. Nesse aspecto fica evidenciada não apenas a
instrumentalização perigosa de todo o potencial acadêmico. Falo aqui em termos
de razão instrumental e tecnociência, mas o direcionamento à privatização dos
recursos que a ciência e a tecnologia podem desenvolver, restringindo grande
parcela da população ao acesso desses recursos que as pesquisas com finalidades
sociais e os projetos de extensão poderiam possibilitar.
O envio do PL
3076/2020 sela uma trajetória de investidas do Governo Bolsonaro e do mercado
contra as IFEs. Os objetivos não são o de modernização das estruturas e das
finalidades dessas instituições, mas sim o de reduzir a presença do Estado e de
recursos públicos para o custeio das universidades e institutos federais. Além
disso, concede à iniciativa privada a administração de laboratórios e
departamentos de ensino que serão transformados, em curto espaço de tempo, em
células produtivas e de prestação de serviços apropriadas pelo mercado.
Mesmo que os
defensores do “Future-se” argumentem que os recursos orçamentários das
universidades e institutos federais estejam garantidos pela Constituição Federal,
sabemos que essa é uma argumentação falaciosa. Esses recursos, por sua vez, vêm
sofrendo reduções sistemáticas para a promoção do superávit primário nas contas
públicas, quando não são contingenciados criminosamente como ocorreu em maio de
2019, colocando em crise o funcionamento das instituições de ensino.
Além disso, após a
aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu o teto de gastos
até 2036, a diminuição progressiva do orçamento das IFEs terá um efeito de
asfixia financeira sobre o funcionamento dessas instituições, pois as demandas
e necessidades não ficaram congeladas por esse período e dessa forma cria-se um
cenário favorável ao avanço do discurso e de práticas administrativas que
endossam o empreendedorismo acadêmico, a cessão de espaços à iniciativa
privada, a constituição de startups empresariais e a formação de um “fundo do
conhecimento” que terá papéis negociados em Bolsa de Valores, administrado
pelas Fundações.
Enfim, se há cerca de
um ano, quando foi apresentada a primeira proposta do “Future-se”, houve um
intenso debate no ambiente acadêmico, envolvendo as entidades de classe,
estudantes, técnicos-administrativos e professores, manifestações nos órgãos
dirigentes e nas ruas, agora, em tempos de isolamento social causado pelo
avanço da pandemia no Brasil, o projeto tramita no Congresso com o caráter de
Projeto de Lei, o que significa que, sendo aprovado e sancionado, torna-se
imediatamente o modelo vigente de relação entre o Ministério da Educação e as
IFEs, não sendo mais necessário um longo processo de discussão nos órgãos
superiores das instituições de ensino. Nesse aspecto, o pouco que ainda restava
de autonomia universitária se escoa pelo ralo do neoliberalismo.
É importante
compreendermos o grande desafio que se ergue perante todas(os) aquelas(es) que
defendem a educação pública, democrática, laica e de qualidade e que possa ser
um espaço para a justa e necessária disputa pela educação popular. Um desafio
que nos coloca em estado de alerta e resistência dobrada para combater mais
esse ataque ao patrimônio público, que agora está presente em um campo
pantanoso e desfavorável pela sua formação social. Isso não significa que o
Governo terá vida fácil com a tramitação do PL do “Future-se”, mesmo em um
recinto permeado pela promiscuidade de interesses políticos e financeiros que
se manifestam em lobbies e acordos institucionais com o mercado acima dos
interesses públicos.
O Governo Bolsonaro
passa por um grande desgaste devido à forma como vem desqualificando a questão
da pandemia do Covid-19 no Brasil, que já assumiu o segundo lugar em infectados
e mortes no mundo. Esse desgaste aumentou ainda mais, mesmo entre setores da
burguesia e da classe média, com a guinada franca e progressiva de
manifestações do Governo com forte chantagem intervencionista, o apoio aberto
que vem dando aos grupos protofascistas e golpistas que estão buscando criar
condições de instabilidade e, mais recentemente, o próprio Ministro da Educação
protagonizou mais desgastes com o Congresso e o Supremo Tribunal após a
publicação do áudio da reunião ministerial do dia 22 de abril.
Esse cenário nos traz
alguns elementos importantes para compreender o contexto desafiador em que nos
encontramos, contexto este que se agrava com o fato de grande parte do poder de
articulação e organização estar, nesse momento, comprometido pelo isolamento
social, medida sanitária necessária para o combate à expansão da pandemia do
Covid-19. Mesmo assim, nossa estratégia de resistência e ação política não pode
ficar limitada apenas a investidas nas caixas de mensagens dos gabinetes de
parlamentares. As ruas ainda são o verdadeiro e necessário campo de disputa da
opinião pública e pressão política sobre o Congresso.
A resistência em
defesa da Educação Pública e das IFEs deve ser parte constitutiva da agenda de
lutas antifascistas e pela democracia, que estão amadurecendo e sendo
articuladas nas ruas de todas as capitais brasileiras, por diversos setores da
sociedade em oposição ao Governo Bolsonaro. A luta antifascista, em defesa das liberdades
democráticas, contra o genocídio institucional promovido pela valorização do
lucro em detrimento da vida humana, deve incorporar a defesa do patrimônio
público e seus serviços essenciais, como saúde e educação, por exemplo.
A defesa das universidades,
institutos federais e Cefets deve ter como foco a rejeição ao PL do
“Future-se”, pois o mesmo projeto conservador e autoritário em curso no Brasil,
que alimenta o ódio e o preconceito de classe, instiga a violência
institucional, flerta com o fascismo e difunde propagandas reacionárias,
calúnias e mentiras em redes sociais e aspira a intervenção militar, é o mesmo
projeto que aprofunda a espoliação da riqueza nacional, gera precarização,
sucateamento, desmonte e privatização do patrimônio público, quebra o pouco que
ainda resta de soberania nacional e nos leva para um abismo cada vez mais
profundo em um misto de desigualdades, miséria e barbárie. É fundamental que se
entenda que a precarização dos serviços públicos, a criminalização de
sindicalistas e movimentos sociais e a mercantilização do ente público são as
expressões contraditórias mais amalgamadas de uma dialética negativa do
processo em curso. Processo este evidenciado pela investida do capital sobre a
educação e em especial sobre as Instituições Federais de Ensino.
É necessário rejeitar
o PL 3076/2020 e toda a mentalidade privatista contida nesse documento! Mas
esse projeto não cairá de maduro! Tampouco deve-se acreditar que o Congresso o
rejeitará, em algum momento, por força das disputas institucionais com o
Palácio do Planalto. Isso seria um equívoco, pois os interesses do mercado e do
sistema financeiro sabem separar muito bem as disputas políticas dos projetos
estratégicos que norteiam a lógica de acúmulo de capitais. Reorganizar aquele movimento
entre as IFEs e a sociedade, que antes da pandemia, apontava para uma luta
ampla e unificada contra a cruzada privatista do MEC, agora em condições
atípicas, é sem sombra de dúvidas o nosso maior desafio, mas por sua vez e
sobretudo, deve ser o nosso principal objetivo.
*Professor de
Filosofia da Tecnologia. Membro da Rede Tecnológica de Extensão Popular e
membro do Comitê Central do PCB.
Bibliografia:
1- Apontamentos para uma crítica ao projeto FUTURE-SE (Unidade Classista- Fração do Andes e Sinasefe)
2- Cortes na Educação: arrocho e privatização. (Seção Sindical ANDES UFRGS)
Como terceira fratura, pode-se adotar a desregulamentação da carreira docente com a descaracterização da dedicação exclusiva (Art. 18), a rigor, esvaziando o seu nexo com o conceito de universidade pública, estabelece o notório saber à revelia de toda discussão sobre a carreira docente (Art. 29) e cria condições para que docentes possam ser agentes em busca de lucros e benefícios pessoais, algo como um redirecionamento dos professores como empreendedores. (LEHER, 2019).[3]
A propagada autonomia financeira está atrelada ao fomento à captação de recursos próprios, o que, segundo a apresentação do Programa, gerará “maior autonomia de gestão das receitas próprias, flexibilização de despesas e maior interação com o setor empresarial para atividades de inovação”. Mas o que se percebe é que teremos, na verdade, a transferência de recursos e bens públicos para entidades privadas.
EM TEMPO: O presidente Bolsonaro e alguns dos seus auxiliares, negam as informações da ciência segundo os seus interesses de preservarem o lucro dos capitalistas e a dominação da burguesia. Nada é dito á toa. Afinal, o avanço tecnológico serve para aumentar a produtividade, reduzir a mão-de-obra, aumentar o lucro do capital e do poderio bélico, dentre outros, como também pode criar outros mecanismos de trabalho.
© WILTON JUNIOR / ESTADÃO Manifestantes protestam contra cortes na Educação no centro do Rio |
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