Turma de Curitiba, liderada por Deltan, usou o
sistema clandestino pelo menos entre os anos de 2016 e 2019 (Foto: Divulgação)
O presidente da Câmara, Arthur Lira, foi um dos investigados indevidamente. Advogado de Youssef diz que acordos de delação podem ser anulados.
Por Joaquim Carvalho (Jornalista e colunista do 247)
A revelação de que o Ministério Público Federal em
Curitiba criou um sistema clandestino para compartilhar informações que
deveriam ser mantidas sob sigilo tem potencial para anular todos os acordos de
delação premiada celebrados pela Lava Jato. “É gravíssimo”, diz o advogado Antonio Francisco
Basto, que representou diversos réus da Lava Jato na 13a. Vara Federal de
Curitiba. Seu cliente mais famoso é Alberto Youssef, um dos primeiros presos da
força-tarefa.
Youssef é citado em uma conversa dos procuradores
que começa em 20 de julho de 2016. Na época, o acordo de delação de Youssef
tinha sido homologado pelo então relator da Lava Jato no Supremo Tribunal
Federal (STF), Teori Zavascki. Mas, segundo o advogado, os anexos não tinham sido
liberados para investigação de primeira instância.
No entanto, os procuradores já sabiam do seu
conteúdo e a usaram para apurar um caso que envolvia um deputado (com foro
privilegiado, portanto) e que hoje é um dos políticos mais poderosos da
república, Arthur Lira, presidente da Câmara. De acordo com as mensagens acessadas por Walter
Delgatti Neto e encontradas no seu notebook, durante a Operação Spoofing, o
procurador de nome Paulo pergunta:
– Alguém aqui está acompanhando investigação da
CÂMARA & VASCONCELOS?
Câmara & Vasconcelos era a empresa que deu
dinheiro para um dos três empresários que compraram o avião que caiu em Santos
no ano de 2014, em que estava o então candidato a presidente, Eduardo Campos. O nome do empresário é João Carlos Lyra Pessoa de
Mello Filho, que seria um agiota em Pernambuco. Outros Liras, sem o y, também
estavam envolvidos na história, segundo um anexo da delação de Youssef que era
mantido sob sigilo no STF.
De acordo com esse anexo, Arthur, atual presidente
da Câmara, e seu pai, o senador Benedito Lira, ambos do PP, tinham dívidas de
campanha contraídas com o suposto agiota. Segundo Youssef, Benedito Lira deu ordem para que
ele, operador do partido, transferisse R$ 100 mil para a conta da Câmara &
Vasconcelos. A empresa fez, então, o repasse ao suposto agiota,
seu verdadeiro controlador, que pagou pelo avião usado por Eduardo Campos.
Nesse caso, tão grave quanto a triangulação
financeira é o que os procuradores da Lava Jato estavam fazendo. O Sisdelatio
era um banco de dados com delações que não poderiam ser compartilhadas. Além disso, ainda que o anexo de Youssef estivesse
liberado para investigação, procuradores de primeira instância não poderiam
usá-la para no caso de políticos com foro privilegiado.
Em resposta ao colega Paulo, o procurador Andrey
Mendonça faz um resumo do caso:
– A câmara vasconcelos tá envolvida com pgtos pros
lira em bsb [sigla de Brasília (já teve denúncia pelo PGR)] e no caso do aviao
do eduardo campos q caiu. Houve deflagracao de operacao , q acho q rodrigo
telles ta cuidando, em que houve a morte do dono da empresa. Nao sei de outras
frentes envolvendo a empresa. Os procuradores discutem outras delações e, no dia
26, a procuradora Jerusa Burmann Viecili adverte os colegas para tomar cuidado
com o banco de dados clandestino, o Sisdelatio, numa aparente confissão de
ilegalidade no sistema.
“People, cuidado ao usar o sisdelatio: há termos
que estão no sistema mas não baixaram formalmente do STF!”. diz.
Ou seja, os procuradores de primeira instância não
poderiam ter acesso a esses termos, de acordo com a lei 12.850/2013, que
determina sigilo dos depoimentos obtidos em acordo de delação até que a
denúncia seja recebida por um magistrado. “O acordo de colaboração premiada e os depoimentos
do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da
queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em
qualquer hipótese”, disse o advogado Gustavo Badaró em entrevista ao Conjur.
“O acesso era só para o procurador da República que
atuava no caso, ou para os integrantes da força-tarefa responsável pelo caso.
Mas não poderia ter compartilhamento, por exemplo, com MPs de outros estados.
Nem com outros membros do MPF que não integrassem a força-tarefa”, acrescentou. Assim como Figueiredo Basto, Badaró entende que o
compartilhamento indevido por levar à anulação dos acordos. A existência do
Sisdelatio é um fato de extrema gravidade e pode ser uma prova da corrupção
judicial da Lava Jato.
Talvez seja por isso que os atuais integrantes do
Ministério Público Federal em Curitiba tenham negado a existência do
sistema. “Não existe, no Ministério Público Federal, sistema
com essa denominação e/ou finalidade”, afirmou a Procuradoria da República do Paraná
em nota. “Já tentamos confirmar, mas ninguém se lembra de um
sistema com esse nome, nem localizamos nenhum registro”, informou o órgão.
Uma investigação pode revelar que o Ministério
Público não fala a verdade ou que os antigos integrantes da Lava Jato tenham
destruído provas, apagando os registros do Sisdetatio. Nesse caso, teria havido
crime de obstrução de justiça. No próprio chat encontrado pela Operação Spoofing,
os procuradores revelam o nome de um dos técnicos que abasteciam o sistema. É
Rafael Sasaki, cujo Linkedin informa: “Analista de Informática at Ministério
Público Federal”. Sasaki trabalha no órgão desde outubro de 2006. Atualmente,
está lotado em Brasília.
Se quiser encontrar a verdade, a Corregedoria do
MPF pode tomar o depoimento de Sasaki. Ou, havendo provocação, o Conselho
Nacional do Ministério Público pode fazer a investigação. Talvez a própria
Polícia Federal possa entrar no caso, a depender de autorização de tribunais
regionais. O procurador Paulo é quem cita Sasaki e elogia o sistema.
“Pessoal, quem é responsável por alimentar o sisdelatio, como ficou isso? vi
que temos mtos depoimentos que não estão lá. O próprio sasaki está fazendo isso
aos poucos? (apesar disso, top o sistema)”
Os procuradores Andrey e Paulo falam várias vezes
sobre termos de delação encontrados no sistema, e o que chama mais a atenção é
que estavam focados na família Lira. “Esses pgtos do lira envolveram prc e ay”, diz
Andrey. PRC é Paulo Roberto Costa e AY é Alberto Youssef. “O ay pagou o lira por meio da camara (a empresa do
susposto agiota). Talvez ela esteja envolvida na transposicao do sao francisco.
Ela pagava pra empresas de fachada. Mas posso estar errado”, comenta Andrey.
Paulo, por sua vez, revela que encontrou no banco
de dados anexos que não tinham sido liberados pelo Supremo. “Tem os anexos
antigos, achei no sisdelatio... mas só coisa q subiu e não desceu”, disse. O interesse dos procuradores da Lava Jato na
primeira instância é mais do que suspeito, é ilegal, e pode ser a brecha que as
instituições democráticas brasileiras precisam para comprovar que a
força-tarefa de Curitiba, que teve Sergio Moro como seu grande líder, foi, na
verdade, uma política secreta, como a Stasi, na extinta Alemanha Oriental, ou a
CIA, nos Estados Unidos.
A pergunta que não quer calar: O que os lavatistas faziam com
informações que não podiam usar em processos judiciais regulares?
Assista ao vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=ftwB-QjHCPg&t=2s