É hora de colocar os evangélicos em seus devidos lugares, antes que eles comecem a nos matar em nome de Deus
Por Ricardo Nêggo Tom (Músico e Jornalista)
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| Otoni de Paula (Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados) |
O tão sonhado diálogo entre o governo Lula e os
evangélicos ganhou mais um capítulo após declarações dadas pelo pastor Oliver
Costa Goiano, coordenador do núcleo nacional dos evangélicos do PT, de que o
partido depende da Igreja Evangélica, que, na opinião de Oliver, é a
instituição mais poderosa do país e deve exercer protagonismo no cenário
político nacional. Uma avaliação equivocada, deslocada da realidade das urnas
na eleição de 2022, quando Lula venceu a maioria evangélica que apoiava
Bolsonaro, e que corrobora a minha tese de que evangélico, seja de direita ou
de esquerda, sofre da tentação de ver o país sendo governado por sua religião.
No rastro da fala do coordenador dos evangélicos
petistas, vem o discurso feito pelo também pastor evangélico e deputado federal
Otoni de Paula, que subiu à tribuna da Câmara dos Deputados para verbalizar um
show de horrores, mentiras e intolerância, a fim de instrumentalizar em
benefício de sua ideologia as palavras do seu colega de pastorado de ovelhas.
Para quem não se lembra, há bem pouco, Otoni de Paula ensaiava uma aproximação
com o governo Lula, possivelmente costurada pelo prefeito do Rio de Janeiro,
Eduardo Paes, do qual Otoni foi coordenador de campanha na última eleição, e
chegou a ser visto como o candidato do governo a líder da bancada evangélica.
Uma aliança que, à época, eu sinalizava como um desatino da esquerda em busca
de comunhão com os crentes.
Num colóquio com a sua religião, tendo Lula como
objeto direto de suas advertências, o parlamentar disse que o voto dos
evangélicos não se baseia somente no crescimento da economia ou em programas
sociais, mesmo esses beneficiando a muitos deles. O voto dos evangélicos,
segundo o deputado, se baseia em valores e princípios — critério que levou os
pseudoescolhidos de Deus a elegerem Jair Bolsonaro, um sujeito sem nenhum valor
ético e moral, e cujos “princípios cristãos” devolveram milhões de brasileiros
ao mapa da fome e provocaram a morte de milhares de pessoas na pandemia. Ainda
sobre os princípios e valores do preferido dos evangélicos, lembremo-nos de sua
confissão de prática de zoofilia ao extinto programa CQC, da sua declaração a
uma repórter da Folha dizendo que usava o dinheiro do Auxílio-Moradia para
“comer gente”, e de seu manifesto apoio à tortura, entre outras “virtudes”.
Será que Jesus sabe que os evangélicos apoiam um sujeito como esse?
O coordenador da campanha de Paes estabelece uma
espécie de maniqueísmo social entre as políticas inclusivas de Lula e o apoio
que seu governo daria a causas consideradas abomináveis para os evangélicos.
“De que adianta oferecer o Bolsa Família e ser a favor do assassinato de
crianças?”, indaga o deputado, referindo-se à questão do aborto e acusando Lula
de ser apoiador da causa. Ele também cita as universidades e os programas
educacionais criados pelo presidente, para colocá-los em contraposição a uma
“Babilônia de imoralidades e lavagem cerebral” que os alunos, segundo ele,
encontram no ambiente universitário e que faz os pais evangélicos não desejarem
ver os filhos cursando uma faculdade pública, com medo de perdê-los.
Sinceramente, eu teria medo de mandar um filho meu para algumas igrejas que
existem por aí. O risco de perdê-lo é maior dentro delas do que se ele
estivesse frequentando o cabaré de Maria Madalena.
Como de costume, quanto mais um evangélico
fundamentalista abre a boca, mais ele expressa o que, de fato, tem dentro de si
com relação às pessoas que não pertencem à sua religião e não comungam da sua
mesma fé. E assim disse o senhor parlamentar: “Presidente Lula, o senhor não
vai convencer os evangélicos de que é a favor da família tradicional apoiando o
movimento mais diabólico de todos contra a família, que é o movimento LGBT. Um
movimento satânico que quer destruir a família tradicional.” Se essa fala não
contém crimes de homofobia, transfobia e incitação à violência de gênero, eu
não sei mais o que caracterizaria tais delitos. Espero que o movimento tome as
devidas providências jurídicas contra o deputado, que precisa entender que o
parlamento não é a extensão do púlpito da sua igreja.
É imperativo que os evangélicos sejam enquadrados
na sociedade e colocados em seus devidos lugares antes que comecem a matar em
nome de Deus, como vaticinou o saudoso Leonel Brizola. É um tremendo desacerto
conjuntural considerar aumentar o protagonismo dessa instituição em detrimento
de pautas inclusivas e de defesa dos direitos da coletividade, estabelecendo e
se submetendo a uma espécie de quinto poder na sociedade. O desacerto é ainda
maior quando o PT dá voz a um coordenador de núcleo religioso que parece
objetivar o aumento de seu status quo dentro da religião e da política,
colocando sua vaidade acima dos interesses do partido e dos eleitores do
segmento. Repito e me explico: a ideia de exercer poder religioso sobre os
demais é fascinante e deixa gente — tanto ignorante quanto esclarecida, de
direita ou de esquerda — fascinada. E tudo sob a “legalidade” do nome de Jesus
e da desatenção de muitos cidadãos e cidadãs.
Aproveitemo-nos do fetiche que os evangélicos têm
por perseguição e comecemos a defender a regulamentação do que eles falam fora
do ambiente religioso, sobretudo nos parlamentos e nas casas legislativas. Eles
dirão que as profecias estão se cumprindo, e nós diremos que é só o começo das
dores jurídicas às quais serão submetidos se não aprenderem a respeitar as
diferenças. Vai defender a sua fé na casa do calvário. O Estado é laico.
Ninguém é obrigado a ouvir que sua religião é do demônio, que sua orientação
sexual é diabólica, que sua existência é inadequada, sem ter o direito de
reagir juridicamente a esses absurdos. Liberdade de expressão para oprimir o
outro não faz parte da democracia. Principalmente num momento em que mais
grupos fundamentalistas ganham espaço na sociedade, defendendo uma
masculinidade primitiva como resgate da essência divina do homem.
Jovens e adolescentes estão sendo seduzidos por tais discursos, que
colocam a inadequação social de incels e redpills ao processo civilizatório e
ao “não” que recebem das mulheres como mandamentos da lei divina. Há uma
ligação entre a igreja evangélica e tais movimentos, que são uma espécie de
upgrade na retórica imperialista contida no projeto de poder neopentecostal. É
a potencialização da teologia do domínio através da instrumentalização de
atores diversos e aparentemente independentes do sistema religioso que pretende
governar o país. E as big techs também estão por trás do financiamento desses
atores formadores de um caos subjetivo sob a égide de suas opiniões
conservadoras. A onda de pastores mirins que vem tomando conta das redes
sociais é um exemplo. Ou reagimos a isso, ou uma inquisição evangélica nos
espera. Brizola nos avisou.

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