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| Créditos / Vatican News |
José Goulão
Começou a jorrar a pungente enxurrada de palavras laudatórias dos governantes deste mundo para expressar sentimentos que não existem, cumprir conveniências protocolares, identificar-se com tudo o que desprezam, exibir falsas comoções, tirar proveito de um acontecimento de que amanhã já não se lembrarão porque é fundamental regressar à vidinha reles e predadora do costume.
A morte do Papa
Francisco é, inegavelmente, uma perda para o mundo. Não como chefe da Igreja
Católica, mas como homem universalista e humanista que soube evitar e contornar
as questiúnculas vaticanas, velhas de séculos, para se dedicar a pensar e a
agir sobre as coisas do mundo e da humanidade; as coisas que nos levam por
caminhos transviados, quem sabe se fatais e que o Papa, não como santo mas como
ser humano, tentou travar com a sua sensibilidade e espírito fraterno.
A comunidade dos
hipócritas que dirige o mundo, conduzindo-nos para precipícios que Francisco
identificou como facilmente evitáveis se os homens e as mulheres tivessem a boa
vontade que extravasa, em muito, as palavras dos textos religiosos, não hesita
agora em tirar proveito do seu falecimento com denodo vampiresco.
O Papa que agora nos deixa, chefe de uma instituição que dificilmente encontrará outro à sua altura, porque não saberá (nem quererá) navegar contra a corrente com a coragem e lucidez de Francisco, deixa órfãos os desprotegidos, os marginalizados, os pobres, os refugiados e migrantes, os povos das periferias, os que sofrem na carne os efeitos dos crimes ecológicos praticados pelos que enchem a boca com o combate (falso) às alterações climáticas, enfim os milhões de seres humanos que enfrentam os terrores das guerras gananciosas impostas pelos interesses de castas desumanizadas e as minorias do dinheiro.
O Papa que agora nos
deixa extravasou em muito o catolicismo e o cristianismo. Mesmo no interior das
instituições da sua fé e das comunidades dos crentes muitas vezes não foi bem
aceite pelas correntes tradicionalistas, as mesmas que, simultaneamente, se
acomodam, e até defendem o que de pior existe à face da Terra.
Francisco selou a sua
presença na história do catolicismo e, principalmente, da humanidade, porque no
seu tempo combateu sem hesitar os dois verdadeiros demônios que perseguem e
abatem os seres humanos: o neoliberalismo e a guerra.
O sacerdote argentino
que tanto sofria com o seu pobre povo cruelmente entregue ao estado mais
extremo do neoliberalismo, nunca foi manso para com esta doutrina econômica,
social e política que despreza o ser humano em nome da liberdade, que o oprime
mergulhando-o na pobreza como caminho para a sempre longínqua e assim
inatingível abastança, que o mata garantindo-lhe independências e soberanias a
que são intrinsecamente avessos. O desumano neoliberalismo globalista é a sua
meta; a justiça social, o respeito pelo ser humano, a dignidade da vida, a paz
e a convivência fraterna são as luzes pelas quais o falecido Papa se guiava.
Francisco foi, por
tudo isto, um homem contra a corrente, na realidade um corpo estranho neste
mundo e que não desistiu, até ao fim, de o tentar modificar, de o tornar um
lugar adequado para o florescimento da dignidade do ser humano, de todos os
seres humanos. Por isso, o Papa não se identificava, e nunca deixou de
condenar, esta preciosidade ocidental de se comover, justamente, com o
sofrimento e o drama dos ucranianos mas desprezar e ser até cúmplice da matança
e do genocídio do povo palestino. O Papa jamais perdoou e seria capaz de
perdoar o segregacionismo e a xenofobia que estão no DNA dos hipócritas. Ele
amou especialmente todos os povos vítimas de guerras, e não apenas as tropas
com armas.
No domingo de Páscoa,
nas suas derradeiras e esforçadas palavras, Francisco teve a energia
sobre-humana necessária para lembrar os pobres, os desprezados, as minorias
perseguidas, os excluídos das periferias, as vítimas do racismo e da xenofobia,
os refugiados e migrantes, solidarizando-se com estes como vítimas da ganância
e das guerras impostas aos seus países. E não deixou de responsabilizar, mais
uma vez, a doutrina que identificou explicitamente como responsável por essas
expressões de miséria: o capitalismo e a sua versão extrema, o neoliberalismo.
Não uma paz abstrata
como apregoam os que a procuram e garantem estar no final das guerras. Mas sim
a paz que desprezam e nos proíbem de invocar e defender sob pena de sermos
considerados traidores e servidores dos inimigos que nos espreitam em cada
canto. A paz que se encontra falando, compreendendo e negociando e não
espalhando a pobreza e a morte porque são necessárias armas, mais armas, cada
vez mais armas e mais sofisticadas, capazes de tornar sempre maiores as
multidões de inocentes assassinados e fazer transbordar os cofres dos magnatas
da morte.
É verdade, Francisco
defendeu o desarmamento sem poupar a indústria armamentista e respectivos
frequentadores como um dos grandes flagelos deste tempo. Guardou até para
apelar ao desarmamento as suas derradeiras palavras proferidas, a custo, num
Domingo de Páscoa. Adivinhem: os que agora dizem lamentar o seu desaparecimento
nunca o escutaram, fingiram-se moucos. Para eles, o Papa era alguém que
tentavam identificar com as suas desprezíveis imagens e semelhanças; não o Papa
que jamais se esqueceu das verdadeiras vítimas desses hipócritas, refinados
vendilhões do Templo.
Os chefes e as
cliques governantes da União Europeia, de Marcelo e quejandos aos confins do
Báltico proferem agora as palavras banais, protocolares e de circunstância,
expressam sentimentos que não têm a não ser nas carteiras e contas bancárias,
pronunciam, a contragosto, a palavra paz enquanto montam exércitos e entopem o
continente europeu de armas, vestem as suas mais caras e negras fatiotas para
irem em romaria e alinharem-se, quiçá para a foto de família, nos tapetes do
Vaticano. Francisco dispensaria a sua presença, mas eles acham-se sempre
indispensáveis e bem-vindos mesmo quando ninguém os convida. Lagarde, a senhora
do dinheiro, a par de Von der Leyen, a senhora da guerra e Costa, servidor
babado de tudo isto, não faltarão. Por aí se percebe o tipo de gente a quem
estamos entregues e que o Papa argentino, perceptivelmente, não tinha em grande
conta.
Francisco deixa
muitas saudades e um vazio que provavelmente tão depressa não será preenchido.
A hierarquia da Igreja Católica, que não a imensa multidão dos fiéis, tem
grande habilidade para emendar os seus “erros” movendo-se e conspirando com uma
experiência de dois milénios no silêncio dos corredores vaticanos. Como foi o
caso de João Paulo I, prometedor homem de bem que não resistiu mais de 33 dias
na cadeira de Pedro, o pescador, logo substituído por Wojtyla (ou João Paulo
II), o Papa do neoliberalismo, da unipolaridade imperial, arauto de um
catolicismo com ressonâncias medievais.
Francisco foi um
irmão mais velho, sábio e presente para católicos, não católicos e não
cristãos, religiosos, agnósticos e ateus, muitos dos que, não comungando da sua
doutrina e conceitos filosóficos, o admiravam como homem e humanista, certos de
que nele podiam confiar. Defendia conceitos de vida terrena pelos quais vale a pena
lutar para retirar o mundo do pântano onde mulheres e homens degenerados pelo
poder e o dinheiro o vão mergulhando. Estes são dias tristes e, ao mesmo tempo,
dias que a cáfila dos hipócritas e fanáticos da guerra anseia para poder
desfilar e brilhar.

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