O Brasil de Lula
reconhece a soberania da Venezuela. Contudo, a diplomacia brasileira não pode
reconhecer algo que ela não tem condições objetivas de avaliar
Por Marcelo Zero (Sociólogo e Especialista em Política Internacional)
24 de agosto de 2024
Presidentes Lula e Maduro durante encontro da
Unasul em Brasília 29/05/2023 (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)
A mídia brasileira age com
inacreditável má-fé, quando se trata de Lula e da diplomacia brasileira.
No que tange à Venezuela, por
exemplo, só faltam culpar Lula, Celso Amorim e o Brasil pelas atitudes e
decisões de Maduro e das instituições venezuelanas.
Ora, desde o início do terceiro
governo Lula, que o Brasil tem se empenhado em corrigir um erro crasso cometido
pelo governo Bolsonaro: romper relações com a Venezuela e se afastar de um
vizinho que é estratégico para os interesses nacionais.
A aposta ridícula no governo fictício
de Juan Guaidó e em sanções contra a economia e o povo venezuelanos só pioraram
a situação da Venezuela e diminuíram consideravelmente a influência do Brasil
naquele país. A crise político-econômica venezuelana se agravou
consideravelmente, para satisfação da direita brasileira, que sempre demonizou
a revolução chavista e deu apoio a todas as tentativas de desestabilizar seus
governos.
É preciso levar em consideração,
nesse quadro, as terríveis sanções impostas pelos EUA, e também pela União
Europeia, nunca mencionadas pela extrema-direita hidrófoba brasileira, as quais
produzem grande sofrimento na Venezuela.
Em 2021, a Relatora Especial da ONU
sobre as ilegais sanções impostas à Venezuela, Alena Douhan, apresentou seu
relatório, no qual se afirmava, entre muitas outras coisas, o seguinte:
As receitas públicas foram reduzidas
em 99%. O país vivia com 1% da receita pré-sanções.
Os ativos venezuelanos congelados em
bancos nos Estados Unidos, no Reino Unido e em Portugal ascendiam a 6 bilhões
de dólares.
Continue lendo
A compra de bens e pagamentos por
parte de empresas públicas foram bloqueados ou congelados.
O setor privado, as organizações não-governamentais,
as universidades, os clubes desportivos e os cidadãos denunciavam a recusa ou
relutância dos bancos estrangeiros em abrir ou manter as suas contas bancárias.
As linhas de energia funcionavam com
menos de 20% de sua capacidade. A distribuição de água era feita em turnos e a
maioria das famílias só tinha acesso a ela uma ou duas vezes por semana,
durante poucas horas. Devido a impedimentos comerciais, o uso de agentes
químicos para purificar a água foi reduzido em 30%.
A migração venezuelana, desde 2015
até 2021, variou entre 1 e 5 milhões de pessoas, devido a essas sanções.
A maioria dos serviços públicos viu o
seu pessoal reduzido entre 30% e 50%, incluindo os quadros mais qualificados.
Isto causou desorganização interna, aumento da carga de trabalho do restante do
pessoal, redução dos serviços e diminuição da sua qualidade.
Os impedimentos às importações de
alimentos colocaram 2,5 milhões de pessoas numa situação de grave insegurança
alimentar. Para fazer face a esta situação, a população reduziu o número de
refeições diárias; reduziu a quantidade e a qualidade dos alimentos;
descapitalizou-se ou vendeu bens domésticos para comprar alimentos; reduziu
despesas com saúde, vestuário e educação etc. Tal situação tem correlação com
crises familiares; violência e separações; trabalho infantil; economia
subterrânea; atividades criminosas; trabalho forçado e migração.
O programa alimentar público CLAP
reduziu a variedade dos seus produtos.
As sanções também tiveram
impacto nos cuidados de saúde, conduzindo à falta ou à grave
insuficiência de medicamentos e vacinas; ao aumento dos preços; à escassez de
energia elétrica para abastecer os equipamentos; à escassez de água e problemas
de saneamento que afetam a higiene; à deterioração das infraestruturas por falta de manutenção, à falta de
peças sobressalentes, à indisponibilidade de novos equipamentos por falta de
recursos ou recusa de venda ou entrega; à degradação das condições de trabalho
e à falta de equipamentos de proteção contra doenças infecciosas; à perda
de pessoal em todas as áreas médicas devido aos baixos salários; e à falta
conclusão da construção de hospitais e centros de atenção primária.
Os cargos de pessoal médico em
hospitais públicos estavam de 50% a 70% vagos. Apenas 20% dos equipamentos
médicos estavam operacionais. Só o Hospital Cardiológico Infantil de Caracas
enfrentou uma diminuição de 5 vezes no número de cirurgias (de uma média de
1.000 intervenções anuais, no período 2010-2014, para 162, em 2020).
O país enfrentou uma grave escassez
de vacinas contra o sarampo, a febre amarela e a malária, em 2017 e 2018. A
falta de testes e tratamento para o HIV, em 2017 e 2018 levou supostamente a um
sério aumento na taxa de mortalidade.
O ensino escolar e universitário tem
enfrentado um sério declínio no apoio governamental desde 2016, incluindo o fim
ou a redução do fornecimento de uniformes escolares, sapatos, mochilas e
artigos de papelaria; e a redução do número de refeições diárias na escola (de
2 para 1), a redução da quantidade e diversidade de alimentos ou o seu
cancelamento total.
Nessas condições, e apesar da
relativa mitigação das sanções a partir de 2022, o Brasil, no início do
terceiro governo de Lula, tinha basicamente duas opções: continuar com o
desastre da política bolsonarista ou normalizar suas relações com a
Venezuela.
Essa última opção implicava intentar
reintroduzir a Venezuela nos processos de integração regional e reverter a
tragédia das sanções e do isolamento relativo daquele vizinho.
O esforço do Brasil de Lula em reverter
essa tragédia não foi isolado. O famoso Acordo de Barbados, firmado entre o
governo de Maduro e parte da oposição venezuelana, mediado pela “bolivariana”
Noruega, foi apoiado também por Estados Unidos, México, Países Baixos, Rússia e
Colômbia, entre outros.
Não foi uma invenção do Brasil.
Assim, acusar o Brasil de ter sido
“ludibriado” pelo governo de Maduro significa dizer que todo esses outros
países também o foram.
O Brasil de Lula simplesmente
apostou, como a maioria desses outros países, em negociações, na solução
pacífica das controvérsias e no desenvolvimento de um entorno próspero e
integrado, como é tradição, aliás, da nossa diplomacia.
Na condição de um dos fiadores do
Acordo de Barbados, o Brasil não podia simplesmente fazer acusações imediatas
contra Maduro e provocar um rompimento com aquele governo, como é o desejo da
direita brasileira.
É vital que os canais de diálogo
continuem abertos, até mesmo pelo interesse da oposição venezuelana, que
reconhece o Brasil como um facilitador e mediador muito relevante. A
posição do Brasil não pode ser a mesma que a dos governos conservadores da
região, que se alinham automaticamente com as posições dos EUA.
Por outro lado, nessa mesma condição,
o Brasil de Lula não pode também avalizar os resultados de uma eleição que, ao
contrário de muitas outras realizadas na Venezuela durante o chavismo, não
mostrou ter uma apuração realmente transparente. A decisão da suprema corte
venezuelana, opaca, não resolveu esse problema básico e crucial.
O Brasil de Lula reconhece a
soberania da Venezuela. Contudo, a diplomacia brasileira não pode reconhecer
algo que ela não tem condições objetivas de avaliar e avalizar.
Por isso, a diplomacia brasileira,
que já sofria críticas à direita, agora sofre também crítica de setores da
esquerda, que exige alinhamento em sentido oposto.
Para piorar a situação, o governo
Maduro está se tornando hostil ao Brasil, inclusive com críticas mentirosas ao
seu sistema eleitoral e provocações nominais e baixas a membros de seu governo,
como Celso Amorim, que são prontamente exploradas pela mídia conservadora e
pela oposição de extrema-direita. O governo Maduro sabe disso, mas insiste
nessas atitudes grosseiras.
Isso gera um grande e desnecessário
desgaste.
Não obstante, a diplomacia brasileira
não pode simplesmente abandonar a questão venezuelana e “lavar as mãos”.
A Venezuela é um importante e estratégico vizinho, e sua situação atual
nos afeta negativamente, assim como afeta também a integração regional
soberana. O desgaste da inação e da omissão seria bem maior.
Portanto, o Brasil tem de insistir em
seus esforços para que a situação venezuelana não se agrave e não se
internacionalize de forma irreversível. É o interesse nacional que dita essa
posição responsável e pragmática.
Nosso país não pode cair no que fez o
governo Bolsonaro: nas artimanhas ideológicas dos alinhamentos automáticos.
Isso vale tanto para os EUA quanto para o governo de Maduro.
Teremos de ser, sempre, amigos da Venezuela. Mas
não podemos repetir a história como farsa.
EM TEMPO: A análise sincera é sempre bem vista. Mas, é preciso que se diga que o próprio governo Maduro se denomina de: civil-militar-policial. Trata-se de uma Ditadura Militar com um Presidente Civil. Outra coisa é que a repressão aos movimentos populares, sindicatos e a Esquerda é muito feroz. Que o diga o Partido Comunista da Venezuela - PCV. Além do mais, as milícias maduristas são treinadas e armadas para reprimir a população. Há também o incentivo aos "dedos-duro" (informantes), aterrorizando a população. Portanto, para se opor ao imperialismo não precisa de atacar a Democracia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário