sábado, 24 de agosto de 2024

O Brasil não pode cair nas artimanhas dos alinhamentos



O Brasil de Lula reconhece a soberania da Venezuela. Contudo, a diplomacia brasileira não pode reconhecer algo que ela não tem condições objetivas de avaliar

Por Marcelo Zero (Sociólogo e Especialista em Política Internacional)

24 de agosto de 2024

 

Presidentes Lula e Maduro durante encontro da Unasul em Brasília 29/05/2023 (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

A mídia brasileira age com inacreditável má-fé, quando se trata de Lula e da diplomacia brasileira.

No que tange à Venezuela, por exemplo, só faltam culpar Lula, Celso Amorim e o Brasil pelas atitudes e decisões de Maduro e das instituições venezuelanas.

Ora, desde o início do terceiro governo Lula, que o Brasil tem se empenhado em corrigir um erro crasso cometido pelo governo Bolsonaro: romper relações com a Venezuela e se afastar de um vizinho que é estratégico para os interesses nacionais.

A aposta ridícula no governo fictício de Juan Guaidó e em sanções contra a economia e o povo venezuelanos só pioraram a situação da Venezuela e diminuíram consideravelmente a influência do Brasil naquele país. A crise político-econômica venezuelana se agravou consideravelmente, para satisfação da direita brasileira, que sempre demonizou a revolução chavista e deu apoio a todas as tentativas de desestabilizar seus governos.

É preciso levar em consideração, nesse quadro, as terríveis sanções impostas pelos EUA, e também pela União Europeia, nunca mencionadas pela extrema-direita hidrófoba brasileira, as quais produzem grande sofrimento na Venezuela.

Em 2021, a Relatora Especial da ONU sobre as ilegais sanções impostas à Venezuela, Alena Douhan, apresentou seu relatório, no qual se afirmava, entre muitas outras coisas, o seguinte:

As receitas públicas foram reduzidas em 99%. O país vivia com 1% da receita pré-sanções.

Os ativos venezuelanos congelados em bancos nos Estados Unidos, no Reino Unido e em Portugal ascendiam a 6 bilhões de dólares.

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A compra de bens e pagamentos por parte de empresas públicas foram bloqueados ou congelados.

O setor privado, as organizações não-governamentais, as universidades, os clubes desportivos e os cidadãos denunciavam a recusa ou relutância dos bancos estrangeiros em abrir ou manter as suas contas bancárias.

As linhas de energia funcionavam com menos de 20% de sua capacidade. A distribuição de água era feita em turnos e a maioria das famílias só tinha acesso a ela uma ou duas vezes por semana, durante poucas horas. Devido a impedimentos comerciais, o uso de agentes químicos para purificar a água foi reduzido em 30%.

A migração venezuelana, desde 2015 até 2021, variou entre 1 e 5 milhões de pessoas, devido a essas sanções. 

A maioria dos serviços públicos viu o seu pessoal reduzido entre 30% e 50%, incluindo os quadros mais qualificados. Isto causou desorganização interna, aumento da carga de trabalho do restante do pessoal, redução dos serviços e diminuição da sua qualidade.

Os impedimentos às importações de alimentos colocaram 2,5 milhões de pessoas numa situação de grave insegurança alimentar. Para fazer face a esta situação, a população reduziu o número de refeições diárias; reduziu a quantidade e a qualidade dos alimentos; descapitalizou-se ou vendeu bens domésticos para comprar alimentos; reduziu despesas com saúde, vestuário e educação etc. Tal situação tem correlação com crises familiares; violência e separações; trabalho infantil; economia subterrânea; atividades criminosas; trabalho forçado e migração.

O programa alimentar público CLAP reduziu a variedade dos seus produtos.

As sanções também tiveram  impacto nos cuidados de saúde, conduzindo à falta ou à grave insuficiência de medicamentos e vacinas; ao aumento dos preços; à escassez de energia elétrica para abastecer os equipamentos; à escassez de água e problemas de saneamento que afetam a higiene; à deterioração das infraestruturas por falta de manutenção, à falta de peças sobressalentes, à indisponibilidade de novos equipamentos por falta de recursos ou recusa de venda ou entrega; à degradação das condições de trabalho e à  falta de equipamentos de proteção contra doenças infecciosas; à perda de pessoal em todas as áreas médicas devido aos baixos salários; e à falta conclusão da construção de hospitais e centros de atenção primária.

Os cargos de pessoal médico em hospitais públicos estavam de 50% a 70% vagos. Apenas 20% dos equipamentos médicos estavam operacionais. Só o Hospital Cardiológico Infantil de Caracas enfrentou uma diminuição de 5 vezes no número de cirurgias (de uma média de 1.000 intervenções anuais, no período 2010-2014, para 162, em 2020).

O país enfrentou uma grave escassez de vacinas contra o sarampo, a febre amarela e a malária, em 2017 e 2018. A falta de testes e tratamento para o HIV, em 2017 e 2018 levou supostamente a um sério aumento na taxa de mortalidade.

O ensino escolar e universitário tem enfrentado um sério declínio no apoio governamental desde 2016, incluindo o fim ou a redução do fornecimento de uniformes escolares, sapatos, mochilas e artigos de papelaria; e a redução do número de refeições diárias na escola (de 2 para 1), a redução da quantidade e diversidade de alimentos ou o seu cancelamento total.

Nessas condições, e apesar da relativa mitigação das sanções a partir de 2022, o Brasil, no início do terceiro governo de Lula, tinha basicamente duas opções: continuar com o desastre da política bolsonarista ou normalizar suas relações com a Venezuela. 

Essa última opção implicava intentar reintroduzir a Venezuela nos processos de integração regional e reverter a tragédia das sanções e do isolamento relativo daquele vizinho.

O esforço do Brasil de Lula em reverter essa tragédia não foi isolado. O famoso Acordo de Barbados, firmado entre o governo de Maduro e parte da oposição venezuelana, mediado pela “bolivariana” Noruega, foi apoiado também por Estados Unidos, México, Países Baixos, Rússia e Colômbia, entre outros. 

Não foi uma invenção do Brasil.

Assim, acusar o Brasil de ter sido “ludibriado” pelo governo de Maduro significa dizer que todo esses outros países também o foram. 

O Brasil de Lula simplesmente apostou, como a maioria desses outros países, em negociações, na solução pacífica das controvérsias e no desenvolvimento de um entorno próspero e integrado, como é tradição, aliás, da nossa diplomacia.

Na condição de um dos fiadores do Acordo de Barbados, o Brasil não podia simplesmente fazer acusações imediatas contra Maduro e provocar um rompimento com aquele governo, como é o desejo da direita brasileira. 

É vital que os canais de diálogo continuem abertos, até mesmo pelo interesse da oposição venezuelana, que reconhece o Brasil como um facilitador e mediador muito relevante.  A posição do Brasil não pode ser a mesma que a dos governos conservadores da região, que se alinham automaticamente com as posições dos EUA. 

Por outro lado, nessa mesma condição, o Brasil de Lula não pode também avalizar os resultados de uma eleição que, ao contrário de muitas outras realizadas na Venezuela durante o chavismo, não mostrou ter uma apuração realmente transparente. A decisão da suprema corte venezuelana, opaca, não resolveu esse problema básico e crucial.

O Brasil de Lula reconhece a soberania da Venezuela. Contudo, a diplomacia brasileira não pode reconhecer algo que ela não tem condições objetivas de avaliar e avalizar.

Por isso, a diplomacia brasileira, que já sofria críticas à direita, agora sofre também crítica de setores da esquerda, que exige alinhamento em sentido oposto. 

Para piorar a situação, o governo Maduro está se tornando hostil ao Brasil, inclusive com críticas mentirosas ao seu sistema eleitoral e provocações nominais e baixas a membros de seu governo, como Celso Amorim, que são prontamente exploradas pela mídia conservadora e pela oposição de extrema-direita. O governo Maduro sabe disso, mas insiste nessas atitudes grosseiras.

Isso gera um grande e desnecessário desgaste.

Não obstante, a diplomacia brasileira não pode simplesmente abandonar a questão venezuelana e “lavar as mãos”.  A Venezuela é um importante e estratégico vizinho, e sua situação atual nos afeta negativamente, assim como afeta também a integração regional soberana. O desgaste da inação e da omissão seria bem maior.

Portanto, o Brasil tem de insistir em seus esforços para que a situação venezuelana não se agrave e não se internacionalize de forma irreversível. É o interesse nacional que dita essa posição responsável e pragmática. 

Nosso país não pode cair no que fez o governo Bolsonaro: nas artimanhas ideológicas dos alinhamentos automáticos. Isso vale tanto para os EUA quanto para o governo de Maduro. 

Teremos de ser, sempre, amigos da Venezuela. Mas não podemos repetir a história como farsa. 

EM TEMPO: A análise sincera é sempre bem vista. Mas, é preciso que se diga que o próprio governo Maduro se denomina de: civil-militar-policial. Trata-se de uma Ditadura Militar   com um Presidente Civil. Outra coisa é que a repressão aos movimentos populares, sindicatos e a Esquerda  é muito feroz. Que o diga o Partido Comunista da Venezuela - PCV.  Além do mais, as milícias maduristas são  treinadas e armadas para reprimir a população. Há também o incentivo aos "dedos-duro" (informantes), aterrorizando a população. Portanto, para se opor ao imperialismo não precisa de atacar a Democracia. 

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