Folha de São Paulo - ITALO NOGUEIRA
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - O uso de dinheiro
vivo em condições suspeitas voltou a atingir o presidente Jair Bolsonaro (PL)
durante a campanha eleitoral à Presidência após reportagem do UOL descrever a
prática da família desde 1990.
Transações em espécie não são crime, mas podem ter
como objetivo dificultar o rastreio de valores de fontes ilegais. Dados obtidos
por órgãos de investigação e imprensa mostraram que a família Bolsonaro, em
especial o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), movimentou R$ 3 milhões
em dinheiro vivo.
Para o Ministério Público do RJ, o filho do
presidente utilizou recursos provenientes do suposto esquema da
"rachadinha" em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa para
comprar imóveis e pagar despesas pessoais.
Dados da investigação mostraram que Bolsonaro
também teve, quando deputado federal, transações e práticas semelhantes às que
levantaram suspeita contra seu filho mais velho.
Reportagem do UOL publicada na terça (30) afirma
que desde os anos 1990 o presidente, irmãos e filhos negociaram 107 imóveis,
dos quais ao menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com o uso de
dinheiro vivo. O valor gasto desta forma foi, segundo a apuração, de R$ 13,5
milhões.
Na quinta (2), o UOL publicou entrevista com um
ex-assessor de Flávio Bolsonaro, em que ele afirma ter ouvido de Ana Cristina
Valle, ex-mulher do presidente, relato sobre o pagamento em dinheiro por uma
antiga mansão na Barra da Tijuca. O repasse teria ocorrido "por
fora", sem registro em escritura pública.
Veja abaixo como as suspeitas de
"rachadinha" e uso de dinheiro se misturam.
Qual a relação entre o uso de dinheiro vivo e a
"rachadinha"?
A "rachadinha" consiste na prática de
repassar parte dos salários de servidores públicos ou prestadores de serviços
da administração para políticos ou assessores dos gabinetes. De acordo com o
MP-RJ, o policial militar aposentado Fabrício Queiroz recebeu, de 2007 a 2018,
R$ 2,08 milhões de 11 assessores de Flávio Bolsonaro.
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Segundo a promotoria, 69% desse total foi
depositado em espécie. Para os investigadores, o objetivo era apagar os rastros
dos repasses no sistema financeiro. As transações foram identificadas porque as
retiradas nas contas dos ex-assessores e as entradas na de Queiroz tinham data
e valores idênticos.
De acordo com a investigação, as transações
ocorreram em datas próximas aos pagamentos dos salários na Assembleia
Legislativa. Queiroz é apontado como o operador da "rachadinha" no
gabinete de Flávio.
A quebra de sigilo bancário obtida pelo Ministério
Público também mostrou que, de 2007 a 2018, ex-assessores de Flávio na
Assembleia do Rio sacaram mais de R$ 7 milhões de suas contas. Em alguns casos,
os saques representaram 99% dos seus respectivos salários.
Não se sabe o destino da maior parte desse
dinheiro. Há a suspeita de entrega dos valores em mãos a Queiroz, sem qualquer
registro.
A Promotoria ressalta ainda que, em período
coincidente com a suposta arrecadação de cifras desviadas, a conta bancária de
Flávio recebeu R$ 159,5 mil de depósitos em dinheiro vivo sem origem
identificada.
O que liga o caso da "rachadinha" de
Flávio ao presidente?
Um dos alvos da denúncia contra o senador, arquivada
após a anulação das provas pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), foi
Nathalia Queiroz, filha de Queiroz, nomeada servidora de Flávio na Assembleia
e, depois, de Jair Bolsonaro na Câmara. Como o jornal Folha de S.Paulo revelou,
ela era funcionária fantasma do então deputado e atuava como personal trainer
no Rio.
Segundo o MP-RJ, Nathalia repassou ao menos R$ 633
mil ao pai. A Folha de S.Paulo revelou que as transferências seguiram enquanto
esteve lotada no gabinete de Jair.
Dados da quebra de sigilo bancário mostram que ela
transferiu R$ 150,5 mil para a conta do policial militar aposentado de janeiro
de 2017 a setembro de 2018, período em que estaria trabalhando no gabinete. O
valor representa 77% do que ela recebeu da Câmara.
Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiam, tiveram 27
cheques depositados na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, num valor
total de R$ 89 mil. Áudios divulgados pelo UOL em julho do ano passado
sugeriram também atuação direta de Bolsonaro no esquema da
"rachadinha".
Nas gravações, a fisiculturista Andrea Siqueira
Valle, ex-cunhada do presidente, afirma que ele demitiu o irmão dela, André,
porque ele se recusou a devolver a maior parte do salário como assessor.
A análise dos documentos relativos aos 28 anos em
que Jair Bolsonaro foi deputado federal, de 1991 a 2018, também mostra uma
intensa e incomum rotatividade salarial de seus assessores, atingindo cerca de
um terço das mais de cem pessoas que passaram por seu gabinete nesse período.
O modelo de gestão incluiu exonerações de auxiliares
que eram recontratados no mesmo dia, prática que acabou proibida pela Câmara
dos Deputados sob o argumento de ser lesiva aos cofres públicos.
A Folha de S.Paulo se debruçou sobre os boletins
administrativos da Casa, identificando uma ação contínua. De um dia para o
outro, assessores tinham os salários dobrados, triplicados, quadruplicados, o
que não impedia que pouco tempo depois as remunerações fossem reduzidas a menos
da metade do valor anterior.
Mesmo assim, dois deles disseram à Folha de S.Paulo
nem mesmo se lembrar dessas variações formalizadas pelo gabinete de Bolsonaro.
Nove assessores de Flávio Bolsonaro que tiveram o sigilo quebrado pela Justiça
na investigação foram lotados, antes, no gabinete do pai na Câmara dos
Deputados.
O uso de dinheiro vivo pelo presidente Bolsonaro
era conhecido?
O presidente se envolveu diretamente com dinheiro
vivo numa das transações imobiliárias de Flávio. A declaração de Imposto de
Renda do senador informa que, em 2008, Jair Bolsonaro lhe emprestou R$ 55 mil
em espécie.
Esse empréstimo, assim como os realizados por
Carlos Bolsonaro e ex-assessores do presidente, deu lastro financeiro para a
compra de 12 salas comerciais por Flávio em 2008. Os empréstimos totalizaram R$
230 mil com recursos em espécie.
O uso de dinheiro vivo pelo presidente foi
declarado em suas campanhas eleitorais. No total, foram injetados R$ 100 mil em
espécie em eleições entre 2008 e 2014.
Bolsonaro também doou R$ 10 mil em espécie para a
campanha de Carlos em 2020, quando a prática já era considerada irregular. Após
devolução do dinheiro, ele refez a contribuição via transferência bancária.
Ana Cristina também declarou em 2007 à polícia que
mantinha, quando era casada com Bolsonaro, as quantias de R$ 200 mil e US$ 30
mil em espécie num cofre no Banco do Brasil. O depoimento foi dado depois de
ela registrar queixa devido ao suposto roubo dos valores ali mantidos.
A família Bolsonaro não tinha, até 2015, nenhuma
atividade que pudesse servir de fonte de renda em dinheiro vivo --naquele ano,
Flávio comprou uma loja de chocolates. A prática contraria declaração do
próprio presidente à Folha de S.Paulo, em janeiro de 2018, quando negou manter
dinheiro vivo em casa.
"Eu não guardo dinheiro no colchão em casa.
Tem muita gente que declara. Até a [ex-presidente] Dilma [Rousseff] declarou
uns cento e poucos mil [reais]. Nunca declarei isso daí", disse ele na
ocasião.
Livro da jornalista Juliana Dal Piva, uma das
autoras da reportagem do UOL, afirma, porém, que André, ex-cunhado e
ex-assessor de Bolsonaro, viu caixas de dinheiro vivo na casa do presidente.
Após o UOL publicar a apuração, Bolsonaro mudou de posição sobre uso de
dinheiro vivo em transações imobiliárias.
"Qual é o problema de comprar com dinheiro
vivo algum imóvel? Não sei o que está escrito na matéria", disse.
Há alguma transação suspeita envolvendo diretamente
Bolsonaro?
O presidente realizou transação imobiliária com
características suspeitas de acordo com critérios do Coaf (órgão de
inteligência financeira), assim como Flávio. Em 2009, o presidente adquiriu sua
casa na Barra da Tijuca por R$ 400 mil.
Quatro meses antes, a antiga proprietária havia
comprado o imóvel por R$ 580 mil. Bolsonaro pagou 30% a menos em comparação ao
valor anterior. A transação foi revelada pela Folha de S.Paulo em janeiro de
2018.
Desvalorização semelhante ocorreu na aquisição por
Flávio de dois imóveis em Copacabana. Ele declarou em escritura ter pago R$ 310
mil pelos apartamentos --um ano antes, custaram R$ 440 mil somados.
O senador é acusado de ter pago "por
fora" R$ 638,4 mil em dinheiro vivo pela compra dessas propriedades. O
MP-RJ identificou, após quebra de sigilo bancário, que a conta da pessoa
responsável pela venda dos dois imóveis a Flávio teve depósito deste valor em
espécie no mesmo dia da transação.
O filho do presidente revendeu os apartamentos
pouco mais de um ano depois por R$ 1,1 milhão, lucro de R$ 813 mil na
"transação relâmpago". O MP-RJ afirma que a revenda e a declaração à
Receita Federal permitiram que o dinheiro ilegal da "rachadinha"
passasse a integrar o patrimônio oficial do senador.
Para investigadores, a desvalorização repentina
pode indicar pagamento não declarado para ocultar patrimônio ilegal.
O presidente, cuja casa permanece em seu nome, já
negou ter adotado tal prática.
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