No Brasil, a incompetência militar se vê agravada
pela sua submissão à estratégia militar e internacional de outro país
Jair Bolsonaro, o general Augusto Heleno (ministro
do GSI) e militares (Foto: Fernando Frazão - Agência Brasil)
Por José Luís Fiori
(*) & William Nozaki (**), no portal A Terra é
Redonda
“Existe
uma psicologia bem compreendida da incompetência militar […]. Norman Dixon
argumenta que a vida militar, com todo o seu tédio, repele os talentosos,
deixando as mediocridades, sem inteligência e iniciativa, subirem na
hierarquia. No momento em que alcançam cargos importantes de tomada de decisão,
essas pessoas tendem a sofrer alguma decadência intelectual. Um mau comandante,
argumenta Dixon, nunca quer ou é incapaz de mudar de rumo quando toma a decisão
errada” (Ferguson, N. Catástrofe. Editora Planeta, p. 184).
Qualquer pessoa de bom-senso – dentro e fora do
Brasil – se pergunta hoje como foi que um segmento importante dos militares
brasileiros chegou ao ponto de conceber e levar adiante um governo militarizado
e aliado a grupos e pessoas movidas por um reacionarismo religioso extremado, e
por um fanatismo econômico e ideológico completamente ultrapassados, todos
“escondidos” atrás de um personagem grotesco e um “mau militar”, como afirmou o
general Ernesto Geisel em outro momento?
O historiador britânico Niall Ferguson defende a tese da incompetência universal dos militares para o exercício do governo democrático, e aponta algumas razões que explicariam tal incapacidade a partir da própria vida interna dos quartéis e da carreira militar. No caso específico da geração atual de militares brasileiros, há um contingente que vem se dedicando, há três anos, a desmontar aquilo que seus antecessores do século passado mais prezavam: o setor energético brasileiro.
Os militares brasileiros sempre tiveram uma visão
elitista e caricatural do país, imaginando um país sem cidadãos e onde as
classes sociais próprias do sistema capitalista são vistas com desconfiança e
como uma ameaça à ordem social definida por eles segundo critérios ancorados,
em última instância, na sua vassalagem internacional. Dentro desta concepção de
um país sem sociedade civil, eles sempre se consideraram os verdadeiros
responsáveis pela moral pública e pela definição do que fosse o “interesse
nacional” dos brasileiros.
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Num determinado momento da história brasileira, os
militares entenderam que era importante para o interesse nacional que o país
tivesse projetos industrializantes nos setores de metalurgia e siderurgia,
ferroviário e rodoviário, petrolífero e petroquímico. No entanto, no momento
seguinte, eles mesmos redefinem seu próprio conceito de “interesse nacional”
brasileiro, invertem a estratégia econômica dos seus antecessores e promovem a
privatização selvagem das empresas públicas, ao mesmo tempo que apoiam a
desindustrialização da economia brasileira e seu retrocesso à condição
primário-exportadora do início do século passado.
Como é sabido, as Forças Armadas brasileiras
tiveram uma participação ativa na construção da Petrobras, Eletrobras, Gasoduto
Brasil-Bolívia, Itaipu Binacional e inúmeras outras empresas estatais em
setores estratégicos para o desenvolvimento da economia nacional. Mas hoje,
como já dissemos, dedicam-se ao desmonte dessas mesmas empresas e setores
econômicos, sem nenhum tipo de justificação estratégica de mais longo prazo,
sobretudo no caso do setor energético, que é peça essencial da “segurança
nacional” de qualquer país do mundo.
Veja-se o caso do Ministério de Minas e Energia
(MME), por exemplo, que é um dos mais militarizados do governo Bolsonaro: além
do Ministro-Almirante, o gabinete ministerial conta com a presença de mais vinte
militares, da ativa ou da reserva, ocupando cargos de chefia, coordenação e
assessoria. E esta situação se repete no Sistema Eletrobras, onde militares têm
postos destacados em unidades como Eletrosul, Eletronorte, Eletronuclear, CHESF
e Itaipu Binacional. E o mesmo se deve dizer do Sistema Petrobras, que é
dirigido por militares com presença na presidência e no conselho de
administração da empresa, desde onde lideram a desmontagem da própria empresa.
A petrolífera brasileira vendeu a BR Distribuidora
com seus postos de combustíveis, colocou à venda suas refinarias e passou a
refinar menos diesel, gasolina e gás. O mercado foi aberto para a importação
desses derivados, e os importadores passaram a pressionar para que o preço no
Brasil fosse equivalente ao preço no mercado internacional. Assim se adotou a
chamada “política de preço de paridade de importação”, que trouxe enormes
lucros e ganhos para os acionistas da Petrobras, mas vem prejudicando
diretamente os cidadãos brasileiros, com o aumento contínuo dos preços dos
combustíveis e a aceleração em cadeia das taxas de inflação da economia.
Da mesma forma, no caso da energia elétrica, a
elevação dos preços está primariamente relacionada a mudanças no regime
hidrológico, mas no caso brasileiro atual ela está diretamente vinculada ao
desgoverno do setor controlado por militares, mas carente de monitoramento,
planejamento, coordenação e melhorias no Sistema Eletrobras, cujos
investimentos sofreram redução significativa nos últimos anos.
Não há precedente, na experiência internacional, de
um Estado que esteja se desfazendo de sua principal empresa de energia elétrica
em meio a uma crise hidroenergética e num cenário de elevação na tarifa de luz.
Mas é isto que os militares brasileiros estão fazendo ou deixando que façam.
Praticando uma espécie de negacionismo energético que contraria toda sorte de
fatos e dados, o Almirante Ministro das Minas e Energia afirmou que “a crise de
energia, a meu ver, nunca ocorreu” (entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em
01 de janeiro de 2022); manifestando total despreocupação com a soberania
nacional, o oficial que preside o conselho de administração da Eletrobras
reiterou que “o futuro da empresa é a privatização” (declaração à imprensa em
07 de janeiro de 2021); e revelando integral descaso com a noção de cidadania,
o general Presidente da Petrobras endossa que “a Petrobras não pode fazer
política pública” (artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 08 de
janeiro de 2022).
Isto está acontecendo no setor energético, mas a
mesma incompetência ou desgoverno se encontra também em outras áreas do governo
comandadas pelos seus militares, sejam eles velhos generais de pijama ou jovens
oficiais que se especializaram rapidamente na compra e revenda de vacinas na
área da saúde por exemplo, onde a incompetência militar teve efeitos mais
dramáticos e perversos e atingiu a cidadania brasileira de forma extremamente
dolorosa.
E o mesmo está acontecendo fora da área econômica,
como no caso da administração militar verdadeiramente caótica da ciência e
tecnologia e da questão ambiental amazônica, para não falar da situação
esdrúxula de um Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República
que não conseguiu monitorar, e nem mesmo explicar – até hoje – o carregamento
de cerca de 40 quilos de cocaína encontrado dentro de um avião da comitiva
presidencial, em uma viagem internacional do próprio presidente.
O desempenho dos militares brasileiros e a
volubilidade de suas concepções sobre o desenvolvimento nos trazem de volta à
tese do historiador britânico Niall Ferguson. Ele atribui a “incompetência
universal” dos militares às próprias regras funcionais da carreira dos
soldados, e é possível que ele tenha razão. Mas nossa hipótese extraída da
experiência brasileira parte de outro ponto e vai numa direção um pouco
diferente.
Do nosso ponto de vista, a incompetência
governamental dos militares brasileiros começa por sua subserviência
internacional a uma potência estrangeira, pelo menos desde a Segunda Guerra
Mundial. Uma falta de soberania externa que multiplica e agrava a fonte
primordial da inabilidade e do despreparo do militar brasileiro para o
exercício do governo em condições democráticas.
Sintetizando nosso argumento: a maior virtude dos
militares é sua hierarquia, disciplina e sentido de obediência e, portanto,
para um “bom soldado”, é falta grave ou mesmo traição qualquer questionamento
das “ordens superiores”. Como consequência, a “verdade” de todo soldado é
definida pelo seu superior imediato, e assim sucessivamente, até o topo e ao
fim da sua carreira. Dentro das Forças Armadas, a “obediência cega” é
considerada uma virtude e condição indispensável do sucesso na guerra ou em
qualquer outra “situação binária” em que existam só duas alternativas: amigo ou
inimigo, ou “azul” ou “vermelho”, como costumam se dividir os militares em seus
“jogos de guerra”.
Não existe a possibilidade do “contraditório” nesse
tipo de hierarquia, e é por isso que se pode dizer que a hierarquia militar é
por definição antidemocrática. Mais ainda, nesse tipo de hierarquia altamente
verticalizada, como é o caso dos militares, a crítica, a mudança e o próprio
exercício inteligente do pensamento são proibidos ou desestimulados, e é
considerado uma falta muito grave. Portanto, é a própria disciplina
indispensável ao cumprimento das funções constitucionais das Forças Armadas,
que os incapacita para o exercício eficiente de um governo democrático.
No caso brasileiro, este tipo de cabeça autoritária
pôde conviver, durante o período da ditadura militar – entre 1964 e 1985 – com
o projeto econômico do “desenvolvimentismo conservador”, porque não havia
democracia nem liberdade de opinião, e porque as prioridades do projeto já
estavam definidas de antemão desde a segunda revolução industrial. A planilha
era simples e ajustada para cabeças binárias: construir estradas, pontes,
aeroportos e setores fundamentais para a industrialização do país. Ao mesmo
tempo, essa mentalidade binária e autoritária, e distante da sociedade e do
povo brasileiro, contribuiu para a criação de uma das sociedades mais desiguais
do planeta, devido a sua total cegueira social e política.
Depois da redemocratização, em 1985, essa mesma
cabeça bitolada das novas gerações militares perdeu a capacidade de entender a
complexidade brasileira e o lugar do país na nova ordem mundial multilateral do
século XXI. A Guerra Fria acabou, os EUA deixaram de apoiar políticas
desenvolvimentistas, e tudo indica que a formação militar foi sequestrada pela
visão neoliberal. Como resultado, os militares brasileiros ainda não
conseguiram se desfazer de sua visão anticomunista do período pós-guerra, volta
e meia confundem a Rússia com a União Soviética, e ainda somam a isto uma nova
visão binária, oriunda dos manuais de economia ortodoxa e fiscalista, em que o
próprio Estado é tratado como grande inimigo.
Resumindo nosso ponto de vista: a geração dos
militares “desenvolvimentistas” brasileiros do século XX foi “vassala” com
relação aos EUA, tinha uma visão apenas territorial do Estado e da segurança
nacional, e possuía uma visão policialesca da sociedade e da cidadania, mas
apoiou uma estratégia de investimentos que favoreceu a industrialização da
economia até os anos 1980. Já a nova geração de militares “neoliberais” do
século XXI aprofundou sua vassalagem americana, trocou o Estado pelo mercado,
seguiu atropelando a democracia e os direitos sociais dos cidadãos brasileiros.
Neste ponto, podemos voltar à tese inicial de Niall
Ferguson, para complementá-la ou desenvolvê-la, porque no caso de uma “corporação
militar vassala”, e em um país periférico como o Brasil, a incompetência
militar se vê agravada pela sua submissão à estratégia militar e internacional
de outro país. Não se pode governar um país quando não se tem autonomia para
definir quais são seus próprios objetivos estratégicos, e quais são seus
aliados, competidores e adversários. Não se pode governar um país quando não se
aceita o contraditório e se trata como inimigos todos os que divergem de suas
opiniões.
Não se pode governar um país quando se tem medo ou
está proibido de pensar com a própria cabeça. Não se pode governar um país
enquanto se olha para seus cidadãos como se fossem seus subordinados. Não se
pode governar um país enquanto não se compreender que a obrigação fundamental
do Estado e o compromisso básico de qualquer governo é com a vida e com os
direitos à saúde, ao emprego, à educação, à proteção e ao desenvolvimento
material e intelectual de todos os seus cidadãos, independentemente de sua
classe, raça, gênero, religião ou ideologia, sejam eles seus amigos ou
inimigos.
(*) José Luís Fiori é professor do
Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor,
entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações
(Boitempo).
(**) William Nozaki é professor de
ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São
Paulo (FESPSP).
EM TEMPO: Este texto foi publicado em 31.01.2022 (se não me engano). Portanto, antes da privatização da Eletrobrás e do desmonte, em curso, da Petrobrás. O governo Bozo vai deixar terra arrasada.
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