Por Wevergton Brito Lima, Brasil 247
"A poderosa campanha midiática intimida e leva
desorientação e confusão a setores do campo progressista", escreve o
jornalista Wevergton Brito
5 de março de 2022
Batalhão Azov, milícia nazifascista ucraniana,
ignorada pela mídia (Foto: Reuters)
No shopping Boulevard, em Vila Isabel, vejo um casal diante de um banner eletrônico da CNN. Com a foto de Putin escolhida a dedo fazendo cara de mau e a manchete: “Putin: objetivo é destruir o Estado Ucraniano”. O casal saiu balançando a cabeça, indignado com tamanha crueldade do novo vilão. Detalhe irrelevante, neste caso: Putin jamais pronunciou tal frase, que foi, na verdade, dita por Dmytro Kuleba, um funcionário do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, que atribuiu tal intenção ao chefe de estado russo.
O detalhe é irrelevante porque o objetivo da máquina de propaganda pró-imperialista, incluindo neste caso toda nossa mídia hegemônica (Grupo Globo et caterva) é suscitar emoções que impeçam o raciocínio crítico. O episódio em que um jornalista da Globo News interrompe histérico um professor que levantava fatos históricos sobre as causas do conflito não foi um destempero, foi um aviso: neste caso só admitimos um enfoque sobre o conflito: a Rússia é a culpada e o Putin um bandido.
Quando a belíssima Belgrado, uma cidade europeia banhada pelo Danúbio, foi bombardeada pela Otan em 1999 o que se assistia na TV era apenas um show de luzes distantes. O território da então Iugoslávia, da qual Belgrado era a capital, foi bombardeada impiedosamente por quase 80 dias consecutivos. Não se via imagens das escolas em chamas, hospitais sendo evacuados, residências destruídas.
Não se entrevistavam os residentes para
saber o que estavam passando e perguntar de quem sentiam raiva. O pretexto para
o ataque foi a “defesa” da região “separatista” do Kosovo. A Iugoslávia, uma
nação soberana membro da ONU que não havia agredido ninguém, foi destruída e
deixou de existir. O Brasil, presidido naquela época pelos tucanos, votou
contra uma resolução no Conselho de Segurança condenando o crime, atendendo aos
apelos dos criminosos: EUA/Otan.
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Agora, ao contrário do que aconteceu na Iugoslávia,
no Iraque, na Líbia, na Síria, o que acontece cotidianamente na Palestina, no
Iêmen, para citar apenas casos recentes, o enfoque é completamente diferente. A
narrativa midiática hegemônica chega ao ponto de negar a existência, de resto
fartamente comprovada, dos grupos neonazistas que atuam aberta e legalmente na
Ucrânia.
Muito se têm falado, na mídia alternativa, em
dezenas de artigos e lives, sobre os motivos da Rússia para promover a guerra.
Não vou cansar o leitor enumerando o que ele já conhece. Proponho abordar
alguns aspectos que estes dias iniciais de combate vão relevando.
A poderosa campanha midiática intimida e leva
desorientação e confusão a setores do campo progressista. São, pelo que pude
perceber, cinco as atitudes que parcelas do campo progressista vem adotando diante
do conflito:
1 – Legalista – Esta posição reconhece os
argumentos da Rússia em relação às ameaças que o país enfrenta vindas da dupla
EUA/Otan mas condena Putin, alegando que ele transgrediu a lei internacional
que tem como pilares a integridade territorial dos Estados e a
autodeterminação. Quando confrontados com exemplos como o de Kosovo, eles
respondem que um erro não justifica o outro e quando se pergunta a eles qual a
alternativa que restava a Putin eles não sabem dizer ou repetem que ele deveria
insistir na busca do diálogo.
Comentário: Esta é uma visão claramente idealista.
Uma coisa é defender um mundo onde as relações internacionais sejam
rigorosamente pautadas pelo respeito ao direito internacional, outra coisa é
fazer uma análise da realidade como se este mundo já existisse. Para não ficar
muito longa minha argumentação, resumo dizendo que esta atitude formalista
ignora na prática que a Ucrânia já não tem autodeterminação desde 2014 quando
um presidente eleito foi destituído por um golpe de estado para dar lugar a um
governo títere e neofascista. O imperialismo adora manipular o conceito de
autodeterminação dos povos a seu bel prazer. Em determinados momentos desfralda
esta bandeira bem alto, em outros age como se ela não existisse. Quem de boa fé
defende a autodeterminação dos povos poderia fazer a gentileza de pelo menos
não ser tão ingênuo a ponto de aceitar cair nesta armadilha retórica. O que
está em causa na Ucrânia não é uma luta pela autodeterminação dos povos, é uma
luta anti-imperialista.
2 – Posição que considera a luta como um conflito
inter-imperialista – Parcelas da esquerda consideram que a Rússia (e a China)
são imperialistas, e portanto o que está em curso no Leste Europeu é um
conflito inter-imperialista, sendo que a posição correta seria a denúncia de
ambos: do “imperialismo” russo e do imperialismo dos EUA/Otan.
Comentário: Para além das discussões teóricas sobre
o conceito de “imperialismo”, que tomaria muito tempo, podemos perguntar aos
defensores desta posição quantas bases militares Rússia e China mantêm fora de
seus territórios? Quando Síria, Palestina, Coreia Popular, Venezuela, Cuba,
Bolívia, etc., necessitam de apoio na luta contra a agressão que sofrem do
imperialismo, quais países são os agressores e quais estão ao lado dos
agredidos?
3 – Posição que, embora não considere a Rússia um
país imperialista, aponta que a Rússia é capitalista e tem um governo burguês,
sendo errado que socialistas e comunistas sejam solidários a tal país e a tal
governo.
Comentário: Esta posição, se não for simplesmente uma subestimação da luta anti-imperialista, incorre em grave erro de compreensão do que é o anti-imperialismo. A batalha anti-imperialista é, por sua própria natureza, ampla, transcendendo as fronteiras do socialismo e do comunismo. A Rússia é de fato um país capitalista. O governo de Putin é de fato burguês. Mas Sun Yat-sen, fundador do Kuomintang, não era comunista mas era anti-imperialista, e recebeu ajuda (inclusive militar) da Internacional Comunista, que orientou o recém-fundado Partido Comunista da China a fazer uma aliança com os nacionalistas burgueses.
Também não eram comunistas ou
socialistas, Gamal Abder Nasser, Peron e tantos outros que travaram acirradas lutas
contra o imperialismo. O que os defensores desta posição equivocada esquecem é
que, objetivamente, devido a circunstâncias especiais, líderes e países de
distintas orientações ideológicas são levados a assumir posturas
anti-imperialistas. Algum progressista defende um regime teocrático? No
entanto, objetivamente, a República Islâmica do Irã representa uma barreira
importante na contenção regional do imperialismo e do sionismo. Não devemos
prestar solidariedade à República Islâmica do Irã diante dos ataques que sofre
dos senhores da guerra? Quem não o fizer está, objetivamente, ao lado do
imperialismo.
4 – Posição que condena unilateralmente a Rússia e
perfila-se integralmente ao lado da Ucrânia.
Comentário: Posição minoritária na esquerda.
Defendida principalmente, mas não só, por uma determinada corrente política que
se um dia ameaçar fechar as portas a CIA não vai deixar, pois invariavelmente
se perfila ao lado do imperialismo, encoberta com um discurso de
ultra-esquerda.
5 – E tem a posição que eu considero a mais
correta: parte do princípio da defesa da paz e do diálogo como melhor solução
para o conflito, sem deixar de analisar o significado estratégico da luta em
curso e apontando que a dupla EUA/Otan é a principal responsável pela escalada
militar.
Possíveis cenários
do conflito em curto prazo
Alguns analistas apontam que o principal objetivo
dos EUA ao impedir qualquer negociação séria em torno dos pleitos de Moscou,
obrigando Putin a agir, não era evitar a neutralização da Ucrânia pela Rússia e
sim, tendo a guerra como pretexto, reunificar, sob seu comando, o campo
imperialista europeu ao mesmo tempo em que impede que o início do funcionamento
do gasoduto Nord Strem 2 faça evoluir as relações comerciais e políticas da Rússia
com a Europa, ameaçando diminuir a influência hegemônica que os EUA detêm no
continente europeu deste o fim da segunda guerra.
Se de fato este é um dos objetivos dos EUA, não
resta dúvida que momentaneamente ele foi alcançado. A fidelidade canina da
Europa irá depender, porém do desenrolar da guerra.
É certo que os estrategistas do Kremlin pensaram em
todos os cenários militares e econômicos que iriam surgir a partir da operação
especial deflagrada no dia 24/2. Mas é certo também que a dupla EUA/Otan tem
seus estrategistas e eles são competentes. Uma guerra tem muitos fatores
imponderáveis e sempre é arriscado contar com um resultado de antemão.
Porém, tudo leva a crer que, conforme declarou
Putin na reunião do Conselho de Segurança de Moscou, realizada no dia 03/03, os
objetivos militares estão sendo alcançados, apesar da glamourização midiática
da “resistência” ucraniana.
O Iraque e a Ucrânia são bem próximos em população
e tamanho. O Iraque tem cerca de 40 milhões de habitantes e 438 mil quilômetros
quadrados. A Ucrânia é maior, tem 44 milhões de habitantes e mais de 600 mil
quilômetros quadrados. Quando os EUA e aliados atacaram o Iraque, o país estava
há anos sofrendo embargos e pesadas sanções. Seu equipamento militar estava em
grande parte defasado. O que restava de eficaz havia sido fornecido,
ironicamente, pelos EUA, quando da guerra que o regime de Saddam Hussein travou
contra o Irã. Na ocasião da invasão estadunidense, as tropas agressoras levaram
20 dias para dominar Bagdá. Já a Ucrânia está armada pelos EUA/Otan com o que
existe de mais moderno. Em território ucraniano estão centenas de instrutores
militares estadunidenses e europeus. No entanto, estamos apenas no nono dia do
início das operações russas na Ucrânia e o exército russo já trava combate nos
subúrbios de Kiev.
De qualquer modo, se a operação especial obrigar
Kiev, em curto espaço de tempo e com o menor número possível de baixas civis, a
aceitar os termos propostos pelo Kremlin para um acordo de paz, terá sido uma
vitória militar e política importante para Moscou. Deixaria ainda mais evidente
que existe uma nova correlação de forças no mundo.
Se, por outro lado, a operação se prolongar
demasiadamente, com baixas significativas, pode ser que Putin, mesmo que
consiga ao final uma vitória militar, pague um preço econômico e político
demasiadamente alto, o que pode corroer a capacidade de liderança do seu campo
político internamente, com consequências graves para a consolidação de uma nova
era de relações internacionais, nos termos propostos pelo importante documento
Rússia-China, divulgado em 4 de fevereiro.
Por fim, o atual conflito tem múltiplas faces que
revelam tanto o declínio relativo do imperialismo estadunidense quanto o
fabuloso poder que ainda detêm.
Embora exista de fato um declínio histórico, o poderio econômico, militar, cultural e diplomático dos EUA é imenso. Sua máquina de propaganda é de longe a mais poderosa. Os EUA conseguem fazer com que seus aliados europeus abandonem, pelo menos neste primeiro momento, interesses econômicos valiosos para adotar a tática de Washington. A chanceler britânica fala abertamente em “destruir a economia russa”.
O parlamento europeu
aprovou, no dia 1º/03, por 637 a favor e apenas 13 contra, com 26 abstenções,
uma resolução fortemente anti-Rússia. As emissoras de Moscou são censuradas e
proibidas de funcionar na Europa e em vários outros países. Até a equipe de
futebol da Rússia foi banida da Copa do Mundo! No entanto, o conflito em curso
revela muitos aspectos do declínio do poder hegemônico dos EUA e a emergência
de fato de uma nova era nas relações internacionais, cujo marco importante
(escamoteado pela mídia) foi o já mencionado documento divulgado em 4 de
fevereiro por China e Rússia.
Um aspecto revelador do declínio é o próprio
desencadear do conflito. Há apenas pouco anos ele teria sido impossível para a
Rússia tal a desproporção de força militar e política em relação à dupla
EUA/Otan.
Embora a desproporção permaneça, ela foi
consideravelmente diminuída, em ambos os aspectos. Vejam o caso da votação, no
dia 2/03, na Assembleia Geral da ONU, de uma resolução condenando a Rússia pelo
conflito. Os EUA esperavam quase que uma unanimidade. Observem os números: são
193 países com direito a voto. 141 votaram a favor da resolução, 35 se
abstiveram, 12 se ausentaram e 5 votaram contra, num total de 52 países que não
apoiaram a resolução. Com exceção do Brasil, que votou a favor, os demais
países do Brics (China, Índia e África do Sul) se abstiveram, sem contar, é
claro, a própria Rússia, que obviamente votou contra.
Vamos comparar isso, por exemplo, com a votação na
Assembleia Geral da ONU, em 2021, da última resolução que condenou o bloqueio
que os EUA promovem contra Cuba. Nesta ocasião a pequena Cuba logrou alcançar
184 votos a favor da resolução, com apenas 3 abstenções, 4 ausências e 2 votos
contra.
De fato, vários são os sinais que provam a visível
erosão da liderança estadunidense desde o fim da guerra fria, mas, como diz a
canção, ainda é cedo para “levar flores à cova do inimigo”.
Devemos, a meu ver, nesta delicada discussão sobre o conflito da Ucrânia, partir da defesa da paz. E para que esta defesa não seja destituída de conteúdo real, temos que apontar claramente quem são os fautores da guerra, respondendo de forma didática à seguinte pergunta: Quem de fato ameaça a paz? Existem dados incontroversos que podem ajudar na discussão. Estados Unidos e Otan têm quase mil bases militares espalhadas por todo o planeta, sendo que cerca de 800 são dos EUA.
Os EUA têm um orçamento militar de
quase 800 bilhões de dólares, quase 16 vezes o que a Rússia gasta com a defesa.
Devemos relevar que a guerra é sempre um bom negócio para os EUA, cujas
empresas de armamento lucraram, em 2020, nada menos do que US$ 285 bilhões de
dólares. Praticamente 1/5 de todo PIB brasileiro naquele ano.
Neste conflito no Leste da Europa devemos ter a
coragem de erguer nossos diques para enfrentar o tsunami de hipocrisia e
mentiras com que a máquina imperialista tenta afogar a verdade, que, submersa
em alguns momentos, sempre ressurge e respira.
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