3 de março de 2022
Por José Goulão
ABRIL ABRIL
A partir de agora o
mundo nunca mais voltará a ser o que foi desde o início da década de noventa do
século passado, quando os Estados Unidos assumiram isoladamente o comando
planetário.
De tanto esticar, a
corda rebentou. Ao cabo de um longo processo de cerco e humilhação, a Rússia
decidiu extirpar militarmente o tumor russófobo ucraniano, circunstância que
está deixando os dirigentes ocidentais e a propaganda social em estado de
choque, mas sem a decência de assumirem as responsabilidades que têm na
situação. Durante oito anos, sem dar mostras de quaisquer escrúpulos, os
Estados Unidos, a OTAN e a União Europeia apoiaram o regime ucraniano
sustentado por esquadrões da morte nazistas saudosos de Hitler e aproveitaram
essa cobertura para tentar criar uma imensa base militar que, uma vez
incorporada à OTAN, estrangularia militarmente a Rússia.
A intervenção
desencadeada por Moscou contra as estruturas militares e repressivas do regime
ucraniano, tendo em vista igualmente criar condições que interrompam o massacre
contínuo das discriminadas populações de origem russa, pretende liquidar essa
estratégia atlantista. Principalmente cortando pela raiz a manobra para a
integração de Kiev na Aliança Atlântica e deixando também definido o padrão de
comportamento do Kremlin caso a OTAN insista na integração da Geórgia. Sem
esquecer as recentíssimas advertências à Suécia e à Finlândia.
A partir de agora o
mundo nunca mais voltará a ser o que foi desde o início da década de noventa do
século passado, quando os Estados Unidos assumiram isoladamente o comando
planetário, sem poderem ser contestados, aproveitando a extinção da União
Soviética. Nestes dias, e apesar de ainda não se ter dissipado o nevoeiro de guerra,
acabou a era da impunidade das ações imperiais e coloniais para implantação
unilateral de um globalismo absolutista a serviço de uma casta abrigada em
nichos de riqueza criados à custa de toda a humanidade.
Começou,
provavelmente, a era do multilateralismo, aquela em que o domínio absoluto dos
Estados Unidos, flanqueado pelos aliados, passa a ser verdadeiramente
contestado. A resposta militar russa à transformação da Ucrânia numa base
militar da OTAN quebra pela primeira vez o cerco e o ciclo de intimidação e
contenção montado pela aliança contra um inimigo fabricado artificialmente e do
qual necessita para sobreviver. O maior exército do mundo já não tem o poder
absoluto, confirmando-se assim, na atual crise e com maior significado, o que
já sucedera no Iraque, no Afeganistão e, de certa forma, na Síria.
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Interpretada
conjuntamente com o recente tratado estratégico assinado no mais alto nível
pela China e a Rússia, a ação russa na Ucrânia, não mais contestável do que
muitas outras desenvolvidas pelos membros da OTAN, é uma machadada na ordem
mundial unipolar, que os Estados Unidos e seus súditos pretendiam que fosse
inquestionável.
Agora já não é. A
Rússia deixou uma mensagem muito séria de que possui capacidade de resposta às
ameaças contra as suas intenções de contribuir para uma nova ordem
internacional na qual não mandem os mesmos de sempre à luz de uma espécie de
direito divino de usucapião. As oligarquias russas estão mostrando às
oligarquias ocidentais que o caminho para o globalismo de índole tendencialmente
autoritária não está livre de sérios obstáculos.
A mensagem e ações da
China, país que tem mantido uma proverbial cautela sobre os acontecimentos na
Ucrânia, também não deixam dúvidas de que o nascente multilateralismo veio para
ficar.
Nada disto tem a ver
com democracia, direitos humanos, o bem-estar das pessoas, o respeito pelo
ambiente e o aproveitamento dos recursos naturais com fins que beneficiem a
humanidade.
O que está em causa
são interesses, negócios, acesso aos bens que a Terra nos oferece, uma luta
entre oligarquias e plutocracias, umas mais bem disfarçadas que outras, pela
influência sobre governos, instituições nacionais e internacionais,
conglomerados econômicos e financeiros. As pessoas são meros instrumentos neste
tabuleiro. É a sociopatia à solta, animada pela anarquia neoliberal que é
determinante mesmo onde não é seguida segundo as plenas convicções
fundamentalistas e ortodoxas.
A intervenção russa
na Ucrânia não respeita o direito internacional. O pobre direito internacional que
há décadas sofre maus tratos nas mãos dos que querem impor, em alternativa, uma
«ordem internacional baseada em regras»; normas estas a serem cumpridas por
todos mas estabelecidas totalitariamente por uma só nação, os Estados Unidos da
América. Um direito internacional despudoradamente invocado, de maneira
histérica e alienada, por aqueles para quem violá-lo é o pão de cada dia.
De fato, entra pelos terrenos da alienação o coro dos dirigentes ocidentais e dos meios de propaganda corporativos que asfixiam a opinião pública de quase todo o mundo impondo-lhe uma opinião única sobre a operação da Rússia na Ucrânia. Um país onde o regime de base nazista – coisa de que tantos «bem informados» se esquecem – se dedicava há oito anos a uma metódica limpeza étnica de vastas regiões do Leste do país, incitado e auxiliado pela OTAN, que o tinha verdadeiramente adotado.
Ao mesmo tempo que as autoridades de Kiev,
comprometidas com os Acordos de Minsk de 2015, contendo neles a solução
diplomática para os conflitos no país, protelavam a sua aplicação até que
Moscou perdeu a paciência e as ilusões de que alguma vez a parte ucraniana
pretendesse cumpri-los.
Para quem vive apenas na espuma dos dias, anestesiado e também alarmado pela chuva de soundbites manipuladores ou pela torrente de «análises» cacofônicas, é importante recordar que o exército ucraniano integrou manobras da OTAN envolvendo o território, céus e águas da Ucrânia, em junho, julho e setembro do ano passado, obviamente contra a Rússia. A Ucrânia fazia parte, de fato, da estrutura militar da OTAN, pelo que representava uma ameaça à segurança de uma Rússia cercada por dezenas de milhares de tropas multinacionais dotadas com armamento ultramoderno e armas nucleares – tudo «defensivo» – constantemente humilhada, caluniada e tratada como um Estado pária.
Este cenário contradizia plenamente o princípio da
Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) aceita tanto pelo
Oriente quanto pelo Ocidente e segundo o qual a segurança é indivisível. Isto
é, apesar de as alianças militares serem abertas a qualquer país que o deseje e
tenha condições para as integrar, isso nunca poderá acontecer à custa da
segurança de outro Estado.
Não passa de uma
triste figura, uma expressão de hipocrisia, de elitismo próprio de aristocracias
arruinadas e de arrogância colonial, a campanha de propaganda, intoxicação e
pânico montada pelos dirigentes internacionais e pela máquina de propaganda que
o neoliberalismo instalou com uma eficácia avassaladora no mundo ocidental e
especial acuidade na União Europeia. A mentira tornou-se a verdade absoluta e
indiscutível, sob pena de as opiniões diferentes da versão oficial serem
consideradas mensagens do inimigo; a realidade paralela abafa e enterra fatos,
provas e circunstâncias.
Quem se indigna, sem
conseguir evitar tons patéticos, contra a operação militar russa na Ucrânia
encarou com bonomia a sangrenta destruição da Iugoslávia e entusiasmou-se com o
covarde bombardeamento da OTAN sobre Belgrado; olhou serenamente para a cruel
invasão do Afeganistão; babou-se de emoção com as «operações cirúrgicas» e a
«guerra direta» da devastadora agressão contra o Iraque – realizada a partir do
momento em que o secretário de Estado norte-americano exibiu na ONU um
frasquinho de um inocente pó branco que seria o «combustível» das armas
químicas iraquianas inseridas num arsenal de armas de extermínio massivo que
jamais apareceram; apoiou com ardor a guerra contra a Síria na qual a OTAN
criou e alimentou grupos de mercenários fundamentalistas islâmicos para retirar
de Damasco o «tirano Assad» e instaurar «a democracia»; tal como na Líbia, onde
a OTAN, também de mão dada com terroristas islâmicos dos quais nasceu, por
exemplo, o Isis ou Estado Islâmico, chacinou civis, assassinou de maneira
revoltante o chefe de Estado e depois deixou o país à deriva, agonizando numa
anarquia de que não se vê o fim; e mais ainda o que se passa no Iêmen, na
guerra provocada pela divisão do Sudão, na Somália, no Sahel; e sem contar com
a inexistência na comunicação corporativa de informações sobre os bombardeios
aéreos praticamente diários de Israel sobre a Síria.
As duas faces da R2P
R2P, Responsability
to Protect ou Responsabilidade de Proteger, foi uma doutrina inventada pelos
Estados Unidos e a OTAN para intervirem militarmente, promoverem golpes de
Estado, assassinar ou mesmo chacinar em países que supostamente não respeitam
as normas de conduta impostas por aquelas entidades.
Criado na
administração norte-americana de William Clinton, o pretexto foi invocado com
especial destempero pela secretária de Estado Madeleine Albright na guerra
criminosa contra a Iugoslávia, incluindo o bombardeamento de Belgrado.
A chacina da Líbia
foi outro exemplo em que foi aplicada a R2P, sem esquecer as «guerras
humanitárias» protagonizadas por William Clinton como presidente
norte-americano, entre as quais se podem recordar a invasão da Somália,
bombardeios contra uma escola no Afeganistão e uma fábrica de produtos
farmacêuticos no Sudão.
A intervenção militar
ordenada pelas autoridades russas, sob comando do presidente Vladimir Putin,
nos territórios do Leste da Ucrânia autoproclamados como Repúblicas Populares
de Donetsk e Lugansk, não representou nada de novo em relação ao que tem sido a
prática dos Estados Unidos e aliados tanto na OTAN como na União Europeia.
Há, no entanto, uma
diferença factual a registrar: as tropas russas, enviadas alegadamente num
contexto de «manutenção de paz», têm como missão defender (R2P) os cidadãos
ucranianos de origem russa habitando nos territórios do Leste da Ucrânia,
centenas de milhares deles detentores de passaportes russos, de uma potencial e
mais do que previsível agressão militar do regime de Kiev e das suas tropas de
choque nazistas. A presença das mais bem equipadas e preparadas tropas
ucranianas na linha de contato com a região do Donbass é uma prova inequívoca
dessa intenção.
Existem, de fato,
vários indícios de que uma invasão da região do Donbass conduzida pelo regime
de Kiev estava já em andamento. A Missão de Observação da Organização de
Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) em ação na linha de contato registrara
nos últimos dias um aumento exponencial dos bombardeamentos para o interior dos
campos inimigos executados, em maioria esmagadora, a partir do lado ocidental.
Além disso, foi notada uma intensa atividade de veículos ucranianos de
desminagem de terrenos, fazendo prever a iminência do avanço de forças
terrestres.
Acresce que o
programa do atual presidente do regime de Kiev, Volodymir Zelensky, previa a
reconquista pela força do território russo da Crimeia e a «normalização» da
situação nos territórios do Donbass, isto é, a concretização da limpeza étnica.
Postas as coisas
neste pé, afinal a doutrina de Responsabilidade de Proteger será propriedade
única e intransmissível de Washington e da OTAN ou pode servir de exemplo a
outras nações, neste caso a Rússia?
Seguindo a mesma
linha de raciocínio, será que apenas os Estados Unidos e a Aliança Atlântica
podem cercar militarmente outros países, inundando de armas, incluindo de
extermínio em massa, as linhas avançadas das suas forças, sem que as nações
assim ameaçadas tenham o direito de se defender e de proteger populações afins?
Da doutrina R2P
aplicada pelos Estados Unidos e a OTAN nasceu, por exemplo, uma entidade muito
peculiar chamada Kosovo, governada por terroristas islâmicos e funcionando como
entreposto de tráficos vários, entre eles o de órgãos humanos; no entanto,
grande e sonoro é o escândalo porque do R2P aplicado pela Rússia decorre o
reconhecimento de peculiares entidades como as Repúblicas Populares de Donetsk
e Lugansk. «Quem Putin julga que é para reconhecer outros Estados?»,
interrogou-se o penoso Joseph Biden, ligado aos auriculares e fixado no
teleponto, mais ou menos na mesma ocasião em que confirmou o reconhecimento da
anexação ilegal do território sírio dos Montes Golã por Israel. Tudo de uma
transparente coerência, que pode ainda ser reforçada com a possível integração
do Kosovo à OTAN.
Quem vai à guerra dá
e leva, é um aforismo português bem enraizado. Parece, porém, que há quem
apenas queira dar sem correr o risco de levar. No fundo, não passa de um
cacoete de quem acha que a impunidade dos comportamentos guiados por
mentalidades coloniais e imperiais dura para sempre.
Porém, os tempos
mudaram; as últimas semanas ilustram bem essa realidade e a reação de novo tipo
ensaiada pela Rússia traduz uma alteração da relação de forças geoestratégica.
Daí também a sufocante barragem de propaganda que executa uma metódica lavagem
no cérebro dos cidadãos, inspirada nos confins totalitários imaginados por
George Orwell.
Um pouco de história recente
Sem ser necessário
recuar por ora aos tempos em que «Lênin, os seus seguidores e a Rússia
comunista bolchevique» criaram a Ucrânia, segundo a história recriada pelo
oligárquico inner circle de Vladimir Putin, façamos uma revisão das origens
mais recentes do problema ucraniano que conduziram à situação atual.
Depois de Gorbatchov
e o alcoólatra agente da CIA Boris Ieltsin terem desmantelado a União
Soviética, a Ucrânia independente rapidamente se transformou num pródigo
alimento da gula dos círculos político-militares ocidentais e das
transnacionais globalizantes, meios imbuídos da sempre insaciável mentalidade
colonial e da correspondente arrogância.
Em 2004,
provavelmente porque nem tudo corria como devia, os centros de costume, Soros e
companhia, organizaram uma revolução colorida, neste caso em tons laranja, para
dar alento aos partidários da integração na União Europeia e na OTAN,
comandados pela nacionalista primeira-ministra Yulia Tymochenko, com ligações
fascistas bem identificadas.
Em finais de 2013, a
Ucrânia, sob a presidência do russófono Viktor Yanukovytch e abalada por uma
corrupção endêmica, chegou a um ponto de fratura entre os partidários da adesão
à União Europeia e à OTAN e os defensores de um reforço da soberania
aprofundando as ligações com a Rússia.
Recorrendo de novo à
receita da revolução colorida, os Estados Unidos e a União Europeia montaram
uma suposta «Revolução da Dignidade» que degenerou, em fevereiro de 2014, nos
acontecimentos da Praça Maidan, em Kiev, onde grupos de assalto nazistas
acabaram por assumir o poder determinante do movimento. Atiradores pertencentes
a esses grupos, usando fardas policiais e colocados nos telhados dos edifícios
no entorno, dispararam sobre manifestantes provocando numerosos mortos e
feridos. Mais um exemplo das operações de falsa bandeira em que os Estados
Unidos são especialistas há bastante mais de um século.
O golpe aconteceu
quando Joseph Biden era vice-presidente de Obama e esteve diretamente associado
à montagem da operação. Depois foi recompensado generosamente, tendo o filho
Hunter Biden como testa de ferro, com um importante cargo de administração numa
das maiores empresas petrolíferas ucranianas.
Na sequência dos
distúrbios em Kiev, o presidente Yanukovytch foi afastado. Enquanto isso, o
embaixador norte-americano Geoffrey R. Pyatt e a subsecretária de Estado, a
neoconservadora Victoria Nuland, operacionais do golpe, distribuíam biscoitos
aos manifestantes na Praça Maidan, por onde também perambulavam vistosas
figuras de instituições europeias, designadamente membros «progressistas» do
Parlamento Europeu.
Uma vez imposta a
«democracia» na Ucrânia e instalada uma administração sob controle paramilitar
nazista em Kiev, o novo regime instaurou uma guerra civil contra as regiões
Leste do país, habitadas maioritariamente por ucranianos de origem e língua
russa. Tratava-se de eliminar a influência russa no país para impor um
nacionalismo de índole fascista trabalhando pela integração na União Europeia e
na OTAN.
As tropas de assalto
nazistas, proclamando-se herdeiras dos terroristas ucranianos que tiveram a seu
cargo as chacinas ordenadas por Hitler no início dos anos quarenta do século
passado, distinguiram-se pela crueldade nas operações no Leste ucraniano,
atuando como esquadrões da morte, onde as populações criaram dispositivos de
autodefesa e acabaram por proclamar as Repúblicas Populares de Donetsk e
Lugansk.
O regime de Kiev
perdeu a guerra, que foi suspensa através dos Acordos de Minsk, assinados em
2015 pelo governo ucraniano e os representantes das recém-criadas repúblicas,
sob a égide da Alemanha, da França e da Rússia. Os documentos previam o
cessar-fogo, o desarmamento das partes envolvidas e a autonomia dos territórios
do Donbass de acordo com leis ucranianas a serem elaboradas de modo a permitir
essa solução.
Os cidadãos de origem
russa na Ucrânia são considerados de segunda ordem: não podem ensinar nem
aprender a sua língua e são discriminados social e administrativamente por
falarem russo; meios de comunicação em língua russa são encerrados. A
combinação de xenofobia com nazismo na atuação do regime ucraniano nunca
preocupou os Estados Unidos, a OTAN e a União Europeia1.
Com a cumplicidade
dos Estados Unidos, o governo de Kiev recusou-se sempre a aplicar os acordos,
por terem sido assinados «sob a força das armas russas». No entanto, logo que
Moscou reconheceu as repúblicas no Donbass e iniciou as operações militares, o
regime ucraniano apressou-se a apelar ao regresso à diplomacia.
Simultaneamente, o presidente Zelensky iniciou a série de sucessivos e
pungentes apelos aos Estados Unidos, à OTAN e à União Europeia para que lhe
enviassem ajuda militar. Isso não aconteceu: o dirigente ucraniano ficou
sabendo, da pior maneira, como os seus «amigos» ocidentais tratam aqueles de
quem se servem para depois pularem fora. Ou de como o povo ucraniano não foi
mais do que carne para canhão na grande operação de cerco à Rússia pela OTAN.
Respeito pelos direitos humanos?
Guerra de ideologias?
Muitos politólogos,
essa casta que parece ter recebido o privilégio único de interpretar uma
ciência oculta como é a política, asseguram que a crise ucraniana e, numa
perspectiva mais ampla, o frente-a-frente entre a OTAN e a Rússia é fruto de
uma luta ideológica.
Ignorância,
incompetência, má-fé, de tudo um pouco? Problemas de quem estuda por cartilha
única e nada mais existe debaixo do sol.
Uma luta ideológica?
Quais são as ideologias que se confrontam quando de um lado estão forças do
capitalismo neoliberal e, do outro, forças do capitalismo neoliberal ainda que
convivendo com um sistema de arraigadas tonalidades nacionalistas – reforçadas
pelo acossamento propagandístico e militar estrangeiro?
Trata-se de um
confronto entre forças anticomunistas dos dois lados da barricada, como os mais
recentes discursos de Vladimir Putin bem demonstram. O Ocidente vê-se no
espelho quando olha para a Rússia de Putin, mas a arrogância e o ego elitista
fazem com que não se reconheça.
O que move estas
forças não são ideologias mas interesses, a necessidade de ter acesso a um bolo
planetário que uma parte, a colonial, exige na íntegra; e a que a outra
pretende igualmente chegar, traduzindo afinal o confronto entre unipolaridade e
multipolaridade – a que a China se junta.
O que está na raiz
dos momentos que o mundo atravessa, e que representam uma ruptura com o passado
recente, de poder tendencialmente globalista, é a quebra da unipolaridade
Estados Unidos/OTAN/União Europeia através do aparecimento de mais duas
potências com uma escala de intervenção crescente e rivalizando na capacidade
de estar presentes através do mundo na disputa de vias de comunicação, matérias-primas,
mecanismos regionais e continentais de integração, desenvolvimento tecnológico
e militar. Neste quadro não existem hoje dúvidas de que os donos disto tudo
estão perdendo privilégios que supunham eternos.
Os movimentos em
curso arrasam também a chamada doutrina Wolfowitz, do então secretário da
Defesa norte-americano, Paul Wolfowitz, que em 1992, logo imediatamente na
sequência do desaparecimento da União Soviética, postulou a necessidade de
impedir que surgisse uma outra grande potência capaz de rivalizar com os
Estados Unidos. Naquela altura, a formulação visava, imagine-se, a União
Europeia, que não poderia jamais atingir condições que lhe permitissem disputar
espaços, bens e poder com a potência imperial. A União cresceu, chegou até aos
28 membros, mas nunca deu qualquer razão para os receios de Wolfowitz. Os
súditos continuam no curral, mais mansos e obedientes hoje do que nunca.
Afinal os oligarcas
russos que manobram o poder em Moscou entendem que não podem ficar atrás dos
oligarcas ocidentais como Gates, Bezzos, Musk e vários outros que tais,
enriquecendo a um ritmo cada vez mais vertiginoso.
Uma coisa parece
certa: a Europa pagará a fatura mais elevada do efeito de boomerang das sanções
à Rússia e ainda as consequências das contra-sanções que Moscou diz estar
preparando. Como sempre, da mesma maneira que nos casos de guerra, os Estados
Unidos serão menos prejudicados pela situação e ainda farão excelentes negócios
com a venda de gás natural liquefeito (GNL) aos países europeus submetidos à crise
energética e alegremente conformados – até satisfeitos – com a extinção do
projeto, já concluído, do gasoduto Nord Stream 2 entre a Rússia e a Alemanha.
Situação que o vice-presidente russo Medvedev comentou assim dirigindo-se aos
europeus: «Bem-vindos ao corajoso mundo novo: dois mil euros por mil metros
cúbicos de gás».
Extinção de mitos
Dois mitos que servem
de pilares à propaganda ocidental ruíram fragorosamente nestes dias.
Um deles dizia-nos
que Putin, oriundo no seu passado das fileiras do KGB, pretenderia recriar a
União Soviética, pelo que os seus comportamentos se inseriam nessa estratégia.
Se dúvidas houvesse, o seu famoso discurso sobre o reconhecimento das
repúblicas do Donbass deixou tudo em pratos limpos. A Rússia é a campeã da
«descomunização» e tem muito a ensinar à Ucrânia nessa matéria, foi mais ou
menos o que Putin disse. Recorda-se que a oligarquia russa no poder condena de
maneira veemente a submissão «a ideologias estrangeiras» no período soviético e
o fato de, nessa altura, a Rússia ter sido governada por «não-russos» que
obrigaram o país a sustentar as outras repúblicas da União, designadamente a
Ucrânia.
Daí que sejam
completamente destituídas de sentido as teorias sobre a suposta intenção de
Moscou de restaurar «o imperialismo soviético». De fato, o que inspira Putin e
os círculos oligárquicos que gerem o seu país é a velha «alma russa», a herança
cultural, religiosa e social da Grande Rússia, a Grã-Rússia imperial de matriz
czarista. Uma espécie de neoconservadorismo rendido ao neoliberalismo econômico
e com um elitismo recuperado susceptível de degenerar em arrogância, sobretudo
quando sente necessidade de responder à arrogância ocidental.
Dizer que Putin «tem
nostalgia da URSS», como escreveram estenógrafos burocratas atuando como
«jornalistas», é um disparate até como meio de agitação e propaganda porque só
consegue enganar quem deseja mesmo ser enganado.
A oligarquia
transnacional globalista entrou em estado de choque porque percebeu que tem na
Rússia um rival à altura, o qual, como agora deixou claro, não está disponível
para se submeter. Um rival bem mais imprevisível que a União Soviética, o que
nada tem de tranquilizador quando do outro lado está gente em posições de
comando e para quem a utilização de armas de extermínio massivo não é tabu.
O desastre ambulante
que é o ministro português Santos Silva diz-se alarmado porque a intervenção
russa na Ucrânia «põe em causa a ordem mundial».
Por uma vez, exceção
que confirma a regra, o senhor das Necessidades que parece ter gabinete em
Washington está cheio de razão.
Há uma nova ordem
mundial em gestação, de caráter multilateral, mas Portugal e os portugueses
parecem condenados, pelo alinhamento internacional dos seus dirigentes e apesar
da Constituição da República, a ficar amarrados à velha ordem e a políticas que
se viram contra os interesses do país. Por isso lá vão mais 1500 militares
portugueses para cenários envolventes de uma guerra com a qual Portugal nada
tem a ver, contribuindo com mais carne para canhão a serviço de interesses
alheios, além de pagar os custos de sanções e contra-sanções de um antagonismo
alimentado artificialmente.
Existe muito mais
mundo para lá da Europa. Entidades de integração regional como a União
Econômica Euroasiática, inicialmente dinamizada pela Rússia, a Organização do
Tratado de Segurança Coletiva, a Organização de Cooperação de Xangai, os BRIC
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a recentemente instituída União
Comercial do Sudeste Asiático, a Iniciativa Cintura e Estrada – chamada também
«a nova rota da seda» – promovida pela China são exemplos de convergências que
envolvem a esmagadora maioria da população do mundo e que têm incidência
crescente em regiões até muito distantes, sobretudo do imenso Sul Global ainda
em déficit de desenvolvimento. E que funcionam muito mais em sistemas de
cooperação do que de dependência e submissão.
Esta poderosa
realidade, que é inexistente para quem vive sob a tutela da informação
corporativa, tem uma dinâmica inimaginável e poderá ser preponderante na
economia mundial talvez mais cedo do que seria de supor.
A partir de agora a
Rússia orientar-se-á muito mais para Oriente, virando gradualmente as costas ao
Ocidente, o que nada terá de favorável para a Europa apesar de o comportamento
irresponsável e arrogante dos dirigentes continentais fazer crer o contrário.
O fiel do equilíbrio
de forças está se deslocando para o Oriente, num ritmo notável, enquanto a
Europa, arrastada por um militarismo sugando recursos que existem e mesmo os
que não existem, mergulha cada vez mais fundo na crise econômica, energética,
tecnológica, ambiental e, inevitavelmente, social.
A Europa pode estar
caminhando para um destino inquietante para todos os que nela vivem: o de se
transformar numa península ocidental quase irrelevante da grande massa
continental euroasiática.
1 – Veja-se a
investigação de Oleksiy Kuzmenko, publicada no Illiberalism Studies Program da
Universidade de Washington (EUA), sobre a formação, na principal academia
militar da Ucrânia, prestada por militares da organização internacional nazista
Centúria, com ramificações em escolas militares de países da OTAN como a
Alemanha, o Reino Unido e o Canadá.
José Goulão,
Exclusivo AbrilAbril
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