30 de setembro de 2021
Foto: Arquivo Petrobras
– A tragédia
brasileira
Eduardo Costa Pinto
[*]
Se até no Reino
Unido, berço das práticas neoliberais, as privatizações e a regulação têm
perdido legitimidade em virtude de sua baixa efetividade, qual seria o motivo
que têm levado o governo Bolsonaro e os economistas de mercado brasileiro a
continuarem defendendo a mesma retórica de quarenta anos atrás?
A redução da atuação
do Estado brasileiro na economia, por meio da venda de ativos públicos e das
privatizações de suas empresas, tem sido alardeada pelo governo Bolsonaro como
o caminho do nirvana para o crescimento econômico e o desenvolvimento social.
Desde o início desse governo até fevereiro de 2020, já foram vendidos ativos no
valor de R$134,9 mil milhões [€21,56 mil milhões].
Desse total, somente
a Petrobras foi responsável com R$70,3 mil milhões [€11,23 mil milhões] em
virtude da privatização de suas empresas subsidiárias (BR distribuidora, TAG,
Liquigás, Belém Bioenergia, entre outras) e das vendas de campos de produção de
petróleo e gás (Enchova e Pampo; Tartaruga Verde, Pargo, entre outros).
O governo Bolsonaro
pretende avançar muito mais no processo de privatização com a venda dos
Correios, da Eletrobras e de subsidiárias da Caixa, do Banco do Brasil e da
Petrobras, que pretende vender oito de suas refinarias (RNEST, RLAM, REPAR,
REFAP, REGAP, REMAN, LUBNOR e SIX), cerca de 50% do seu parque de refinação.
Para a equipe
econômica do governo Bolsonaro, assim como para boa parte dos economistas de
corretoras e de grandes bancos, as vendas dos ativos do Estado proporcionariam
aumento da competição de mercado, atração de investimentos privados, redução da
dívida pública e a eliminação da corrupção. Isso tudo supostamente aumentaria a
eficiência econômica proporcionando ao consumidor adquirir produtos e serviços
com melhor qualidade e menores preços.
Esse argumento
defendido hoje pelo governo Bolsonaro é o mesmo adotado nas décadas 1980 e
1990, nos países centrais e no Brasil, para justificar a redução do papel do
Estado na atividade econômica. Aquele período fora marcado pelo triunfalismo da
ideologia e das práticas neoliberais. Assumiu-se como pressuposto que o Estado
seria por definição ineficiente em relação ao mercado, no que diz respeito ao
papel de planejador e produtor. Com isso, o Estado deveria adotar o papel de
regulador da atividade econômica privada (Estado-regulador), buscando criar
mercados competitivos e estimular e introduzir a concorrência.
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O programa de
privatizações do Reino Unido dos anos 1980-1990, comandado pela
primeira-ministra Margaret Thatcher, foi o caso paradigmático, que serviu de
modelo para diversos países. Inclusive para as privatizações brasileiras da
década de 1990 (das telecomunicações, da mineração, da siderurgia etc) e a
criação das agências reguladoras, tais como: a Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel), em 1996; a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em
1997; e a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), de
1998.
A onda de mercado, em
consonância com o “Consenso de Washington”, como dito por Jean Hansen e Jacques
Perceboais no livro Transition(s) électrique(s) de 2017, varreu o paradigma
anterior pautado [1] na atuação direta do Estado (produtor e planejador) e (2)
na necessidade de integração vertical, sob controle dos Estados, em setores
econômicos caracterizados por monopólio natural e/ou pela produção de
mercadorias que detém papel estratégico (energia elétrica, produção e
distribuição de petróleo e seus derivados etc.).
Com a primazia do
mercado, a questão central do Estado voltou-se à regulação que deveria ser
temporária, pois o regulador criaria as condições para o florescimento de um
mercado competitivo, como dito por Stevan Thomas em artigo denominado “A
perspective on the rise and fall of the energy regulator in Britain”, publicado
em 2016. Neste artigo, ele analisa os limites da regulação do Reino Unido no
que diz respeito aos objetivos propostos inicialmente.
Independente de
qualquer comprovação empírica a respeito da maior eficiência econômica do
mercado em relação ao Estado, os programas de privatização foram adotados. A
questão da segurança energética supostamente seria resolvida pelo mercado. E os
consumidores teriam o poder para escolher os seus fornecedores a um preço mais
barato. Alguns até poderiam acreditar nisso no passado, em virtude do annus
mirabilis de 1989 e da ideia de “fim da história”. Mas como a história não tem
fim, na verdade, essa retórica foi utilizada para avançar na redução do Estado
em virtude de questões ideológicas e, sobretudo, para criar espaços de
acumulação para o setor privado.
Passados mais de
trinta anos desse debate e dos impactos das privatizações, não dá para
continuar acreditando que a privatização e a atuação dos reguladores
proporcionarão preços mais baixos. Nem muito menos que no atual contexto de
transição energética, marcada por incertezas (tecnológicas, custos,
financiamento, etc.), o Estado-regulador seria capaz de direcionar o mercado
para o caminho da transição. O artigo de Stevan Thomas e o livro de Jean Hansen
e Jacques Perceboais deixam isso muito evidente, inclusive mostrando que as
agências reguladoras do Reino Unido e da França têm perdido espaço para uma
atuação mais direta do Estado, por meio de políticas discricionárias.
Se até no Reino
Unido, berço das práticas neoliberais, as privatizações e a regulação têm
perdido legitimidade em virtude de sua baixa efetividade, qual seria o motivo
que têm levado o governo Bolsonaro e os economistas de mercado brasileiro a
continuarem defendendo a mesma retórica de quarenta anos atrás?
Vejamos o caso da
venda das refinarias da Petrobras. O discurso é que essas privatizações (i)
aumentariam a competição/concorrência no mercado de combustíveis, pois
viabilizariam a entrada de novos agentes na refinação; (ii) ampliariam os
investimentos; e (iii) proporcionariam a queda dos preços dos derivados de
petróleo para os consumidores.
Os órgãos
regulatórios (ANP e Cade, Conselho Administrativo de Defesa Econômica), assim
como o Ministério de Minas e Energia (MME), partem da ideia de que
necessariamente uma menor concentração da estrutura de mercado de refinação
nacional proporcionará uma redução dos preços, com base em estudos empíricos do
mercado de derivados dos Estados Unidos[1].
Estudo recente sobre
o mercado de refinação da Europa [2] concluiu que “dividir a indústria em
players menores para incentivar mais concorrência pode levar a preços mais
altos para os consumidores”, pois grandes empresas podem ser mais eficientes do
que as pequenas em virtude das economias de escala da indústria de refinação.
Além disso, é preciso
levar em conta as especificidades da estrutura de mercado de refinados
brasileiro, haja vista que as refinarias (e infraestruturas logísticas) da
Petrobras foram localizadas com o objetivo de minimizar o custo de
investimento, evitando despesas redundantes. Com isso, os mercados relevantes,
de boa parte, das refinarias são regionais e, sim, podem ser considerados como
um monopólio natural de fato. Isso ficou evidente em estudo coordenado pela
PUC-Rio (denominado Competitividade no mercado de gasolina e diesel no Brasil:
uma nova era?) que apontou a elevada probabilidade de estabelecimento de
monopólio regional pelas refinarias privatizadas.
Nesse sentido, essas
refinarias privatizadas tenderão a estabelecer preços de monopólios. Com isso,
os preços para o consumidor final tendem a aumentar. Para conter isso, a ANP
teria que ter estabelecido marcos regulatórios claros. No entanto, o regulador
não tem a mínima ideia dos efeitos da privatização das refinarias sobre os
preços para o consumidor e sobre a coordenação do abastecimento.
Isso fica evidenciado
por essa fala, no dia 24 de junho publicada no Valor, da superintendente
adjunta de Fiscalização do Abastecimento da ANP, Patrícia Huguenin Baran: “Todo
arcabouço regulatório foi construído numa estrutura em que a Petrobrás tinha um
papel predominante. Agora o que se tem é um desafio de um novo cenário que
rompe essa estrutura”. Segue ela: “Então, a estrutura está dada, mas o contexto
é diferente. Fica realmente meio engessado. Você quer chegar num ponto, mas não
tem ainda o caminho feito”.
Esse é um exemplo do
que está acontecendo no setor de petróleo e gás, mas pode ser generalizado para
outros setores, como o elétrico (proposta de privatização da Eletrobras). Não
há nenhuma discussão a respeito dos impactos econômicos e sociais das privatizações,
nem muito mesmo a tentativa, pelos reguladores, de construir marcos
regulatórios para criação de mercados competitivos, como havia na década de
1990.
O mercado resolve
tudo (preços baixos, qualidade, segurança de abastecimento, investimentos), nem
precisa regulação! Na verdade, essa é a retórica atual que legitima um processo
de privatização que está associado à geração de novos espaços para ampliação do
capital privado nacional e internacional. Um verdadeiro botim em que o
patrimônio público é dilapidado com o objetivo de aumentar a lucratividade das
empresas financeiras e não financeiras no curto prazo, sem que isso proporcione
o aumento do bem-estar para os consumidores e cidadãos.
Vivemos hoje um
momento histórico em que o Estado brasileiro é a expressão direta dos
interesses dos empresários nacionais e estrangeiros. O público e o privado
foram fundidos da pior forma possível, em que os interesses dos lobbies
empresariais dominam toda a cena política e estatal. Isso sim é corrupção
estrutural.
Notas
Em Portugal, o
recente encerramento da refinaria de Matosinhos – a única do país com
capacidade para produzir óleos base para o blending de lubrificantes – mostra a
continuação do processo de desindustrialização em curso. Depois de sectores
inteiros da economia nacional terem sido destruídos (estaleiros navais,
metalomecânica pesada, siderurgia, adubos, frota pesqueira, etc) segue-se agora
o do petróleo. Mas um país que não tem indústria é apenas uma horta como dizia,
com razão, um antigo ministro de Salazar. Assim, restringir a discussão acerca
de Matosinhos apenas aos 1600 empregos agora destruídos pela administração da
Galp é minimizar a gravidade deste crime de lesa economia nacional.
Este processo de
desindustrialização é feito sob a égide da União Europeia e com a conivência da
classe dominante portuguesa. Ele confirma uma tendência inexorável do
capitalismo: a lei do desenvolvimento desigual [**], que tende a polarizar
países, regiões e continentes.
No caso da refinaria
de Matosinhos, em Leça da Palmeira, a sua destruição foi feita com a anuência
do governo PS presidido pelo sr. António Costa (o seu ministro Matos Fernandes
manifestou publicamente o seu beneplácito à liquidação deste importante activo
fixo).
Dessa forma, pode-se
afirmar que a “tragédia brasileira” mencionada por Eduardo Costa Pinto no
título deste artigo não é apenas brasileira – é também portuguesa e de qualquer
outro país do mundo (EUA inclusive). Esta tragédia é do próprio capitalismo,
independentemente das aldrabices ideológicas que tentam justificá-lo.
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