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9 de junho de 2021
Enquanto os tomadores de decisão não cumprem o
papel de garantir vida para a população mais pobre e vulnerável do país,
assistimos, atônitos, a bala acertar em cheio nossos corpos e sanidade. (Foto:
Reprodução/Instagram)
Texto: Lenne Ferreira
É
sempre o mesmo corpo, da mesma cor, no mesmo endereço. Quantas vezes ouvimos
falar que uma “bala perdida” invadiu uma cobertura no Leblon ou na Barra da
Tijuca? A mídia hegemônica acostumou-se a nomear de “perdida” a bala que tem
sempre o mesmo destino. Na tarde da terça-feira (8), ela acertou a designer de
interiores Kathlen Romeu, mais uma vítima da bala que só chega em áreas como a
que ela cresceu, na Comunidade do Lins, Região Norte do Rio de Janeiro. Um tiro
certeiro que devasta não só os familiares da modelo de 24 anos como a toda a
população negra, que vive constantemente na mira das armas da polícia.
Grávida
de quatro meses, segundo moradores, Kathlen foi atingida durante confronto
entre criminosos e policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Lins. A
jovem, que aparece feliz no último ensaio fotográfico feito para comemorar a
gestação, havia ido visitar a avó. Há um mês, ela se mudou da comunidade para
fugir da violência. Queria criar Maya ou Zion longe das balas “perdidas” que já
tiraram a vida de 100 pessoas no Rio só em 2020. Desse total, 25 eram crianças
e adolescentes, segundo dados da plataforma Fogo Cruzado. O perfil é o mesmo:
pretos e pobres.
A
“bala perdida”, como repetem na TV, atingiu Kathlen, sua família e toda
comunidade, que não teve sequer o direito de expressar repúdio pelo ocorrido.
No início da noite, após constatarem a morte, moradores fecharam a estrada
Grajaú-Jacarepaguá, que liga as zonas Oeste e Norte da cidade, mas foram
dispersados pela polícia com bombas de gás lacrimogêneo. No Brasil que
naturaliza a violência contra homens e mulheres negras, um ato de indignação é
fortemente reprimido pelos mesmos agentes que semeiam mortes.
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“Uma
garota que trabalha, que estuda, formada”, declarou aos prantos a avó em
entrevista concedida aos mesmo programas de TV que insistem: foi “bala
perdida”. O uso constante do termo parece ocultar o que vem antes. Quem aperta
o gatilho? Quem dá ordem? As respostas, embora óbvias, exigem um aprofundamento
de questões que o Brasil ainda não debate com seriedade como a política de
guerra às drogas que dão o aval para que agentes da segurança pública ajam de
forma irresponsável, sem o menor respeito à vida.
De acordo com os dados da plataforma Fogo Cruzado, em 67 dos 100 casos contabilizados de vítimas por bala “perdida”, as pessoas foram atingidas em situações que contavam com a presença de agentes de segurança. Nem mesmo o contexto de pandemia, onde tantas vulnerabilidades vieram à tona, cessou fogo. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu operações nas favelas durante a pandemia do novo coronavírus, exceto "hipóteses absolutamente excepcionais". A extensão da determinação é motivo de debates que ainda estão em curso no STF.
Enquanto os
tomadores de decisão não cumprem o papel de garantir vida para a população mais
pobre e vulnerável do país, assistimos, atônitos, a bala acertar em cheio
nossos corpos e sanidade. Ágatha Félix, 8 anos; João Pedro, 14; Kaio Guilherme,
2; Janaína Santos, 39; Viviane Cristina, 40; Maria Célia, 73; Kathlen Romeu
fazem parte de uma longa e triste lista que expõe a vulnerabilidade da
população negra. Idades e histórias distintas interseccionalizadas por raça e
classe. Todos vítimas da bala atirada na mesma direção por um estado
genocida.
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