Paula Adamo Idoeta - Da BBC News Brasil em São Paulo
qui., 1 de abril de 2021
Em foto de 2018,
Bolsonaro em cerimônia de graduação das Agulhas Negras; episódio da última
terça indicou cisão do presidente com a cúpula militar.
A tensão do governo de Jair Bolsonaro
com a cúpula das Forças Armadas, que pediu demissão na terça-feira (30/3) e foi
substituída no dia seguinte, pode forçar uma recalibragem no discurso da
máquina de propaganda bolsonarista.
Essa é uma das avaliações do
pesquisador Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas
da USP e pesquisador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da mesma
universidade, que analisa como os temas da política nacional são difundidos e
comentados na internet.
Essa máquina de propaganda nas redes
sociais é um importante pilar de sustentação da popularidade do governo - e
frequentemente se apoia na exaltação aos militares para instigar os
simpatizantes do presidente.
"Os militares são essa força que
vem de fora do jogo político e que (no imaginário bolsonarista) poderia
resolver as coisas, mas agora (no episódio de terça-feira) a liderança militar
marcou uma separação" com o governo ao entregar seus cargos, analisa
Ortellado.
O poder militar sempre fez parte do
imaginário coletivo dos apoiadores do presidente, que não raro defenderam
golpes militares no país em contraposição ao Congresso e ao Judiciário. Como então
conciliar, dentro do discurso bolsonarista, as rusgas com esse grupo?
"Isso é curioso. Dentro da ideia
de 'somos o povo e temos de derrotar a elite', a esperança da retórica
bolsonarista dependia muito dos militares", explica Pablo Ortellado à BBC
News Brasil.
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"Isso inclusive precede o
próprio Bolsonaro - é algo que apareceu, por exemplo, na greve dos
caminhoneiros (em 2018), quando teve muito o expediente de fazer manifestação
na porta de quartéis no interior do Brasil pedindo intervenção militar. Nem era
uma coisa de direita, mas tinha uma espécie de crença na impotência da vontade
popular e que ela precisava de um poder que liderasse e expressasse esse anseio
popular."
Sendo assim, a aparente cisão com ao
menos parte dos militares "abala muito o discurso populista, porque é
neles que reside a esperança", prossegue Ortellado.
Sobre a crise que eclodiu na
terça-feira, informações de bastidores sugerem que haveria uma insatisfação
mútua: de um lado, Bolsonaro queria demonstrações mais explícitas da cúpula
militar contra medidas de restrição que vêm sendo implementadas pelos Estados
contra a covid-19; de outro, a liderança militar estaria insatisfeita com a
condução do governo federal no combate à pandemia.
Na terça-feira, a surpresa da
demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi seguida pela
entrega de cargos, em conjunto, dos líderes do Exército, da Marinha e da
Aeronáutica - algo inédito neste período da redemocratização do Brasil.
Protesto pró-Bolsonaro nesta quinta-feira; alusões às Forças Armadas são frequentes nas manifestações de simpatizantes do presidente
Ortellado e sua equipe estão agora
analisando como os eventos desses dois dias estão sendo interpretados dentro de
grupos de WhatsApp e contas de YouTube bolsonaristas, redes sociais onde esse
grupo tem mais expressividade. Por enquanto, diz ele, reina uma certa
"indefinição" na apresentação do episódio aos simpatizantes do
presidente.
O exemplo de Sergio
Moro
Uma possibilidade é que se repita o
que aconteceu com o ex-ministro Sergio Moro, quando este rompeu com o governo
acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal.
Rapidamente, os grupos de apoio ao
governo nas redes sociais pintaram o ex-juiz da Lava Jato como
"traidor" de Bolsonaro, explica Ortellado, "e assim conseguiram
sobreviver dispensando o Moro e também outras pessoas do PSL (ex-partido do
presidente)".
Por um lado, é mais difícil construir
essa narrativa de traição envolvendo figuras das Forças Armadas, justamente
pelo papel importante que essa instituição tem no discurso bolsonarista.
"Essa cisão compromete o coração
da estratégia discursiva deles (simpatizantes do governo), e vão ter que
redesenhar isso. O jeito mais fácil é tratar chefes militares como traidores do
povo e do verdadeiro Exército brasileiro, e idealizar o 'soldado insatisfeito'.
É um nó que vão ter que desatar."
Moro e a lavajatismo foram "sacrificados" sem grandes prejuízos de popularidade para Bolsonaro, explica Pablo Ortellado
Por outro lado, explica Ortellado,
"a capacidade de sobrevivência do bolsonarismo é muito grande. A gente
achava muito difícil ele se desvencilhar sem grandes perdas do lavajatismo, mas
ele conseguiu facilmente, de modo praticamente indolor (em termos de
popularidade)".
"Então eu esperaria para ver a
capacidade dessa resposta que vão articular para ver se ela funciona - porque
ela já funcionou diante de perdas mais fundamentais. Me parecia que o
lavajatismo era um componente essencial (do bolsonarismo), e ele foi
sacrificado sem problemas, não houve prejuízo na aprovação (do presidente). O
bolsonarismo mexeu com coisas profundas na sociedade brasileira, algo que a
gente ainda está investigando."
Uma coisa que chamou a atenção de
Ortellado e sua equipe foi o fato de que a máquina de propaganda bolsonarista
nas redes parece ter sido pega de surpresa pela crise com os militares.
"Porque muitas vezes esse
movimento, essa máquina de propaganda, está sabendo (com antecedência das rupturas
envolvendo o governo). Quando aconteceu com Moro, a resposta de chamá-lo de
traidor foi imediata. Agora não. Não sei o que aconteceu, mas deu para ver que
a máquina de propaganda foi surpreendida."
'Limites' do
discurso populista
Ortellado aponta que a crise com a
cúpula militar ocorre em meio, também, a uma "fissura na retórica
populista" de Bolsonaro, diante do agravamento da pandemia do novo
coronavírus e de embates cada vez mais duros com os governadores dos Estados,
que têm implementado medidas de isolamento social.
Em coluna recente no jornal O Globo,
Ortellado observou que, em ao menos três ocasiões recentes, o presidente da
República disse (em lives ou conversas públicas com simpatizantes) que não
pretende adotar políticas de lockdown como "a maioria" pede.
A palavra "maioria" chamou
a atenção de Ortellado por não ser comum a Bolsonaro se referir aos adversários
com essa palavra.
"É algo muito diferente: o
governo Bolsonaro sempre se apresentou como um governo de maioria, porque é
algo que faz parte da retórica populista, mesmo que efetivamente nunca tenha
sido um governo de maioria (em referência ao fato de que o presidente teve,
55,1% dos votos válidos, mas recebeu o apoio efetivo de 39% do eleitorado em
2018, se levados em conta os votos brancos, nulos e abstenções) e seu projeto
nunca tenha sido majoritário do ponto de vista estatístico", diz o
pesquisador.
Bolsonaro com o novo comando das Forças Armadas; cúpula anterior havia entregado os cargos
"Mas ele se apresenta assim. Sua
capacidade de criar comunhão em torno desse projeto político é da crença, da
ilusão de que 'somos uma maioria lutando contra uma minoria' - uma pequena
elite corrupta que nessa retórica inclui os governadores, o STF e os meios de
comunicação. Acontece que quando ele começa a se referir aos outros como
maioria, ele não a representa mais. E acredito que isso não tenha sido de
propósito, mas me chamou a atenção essa expressão ter escapado mais de uma vez,
sinalizando a dificuldade dele de apresentar essa postura muito radical e
negacionista em uma linguagem populista."
Caso confirme-se que a tensão com os
militares teve a ver com as dificuldades em lidar com a pandemia, "também
mostraria esse enfraquecimento - ele no fundo adotou uma postura (negacionista)
e não consegue convencer ninguém de que ela é majoritária. Quando ele diz 'o
povo quer trabalhar', as pesquisas mostram que o povo está percebendo a
gravidade da situação e quer ficar em casa (em referência uma pesquisa do
Datafolha que apontou, em 18 de março, apontando que 71% da população apoia
medidas de restrição ao comércio e serviços para controlar o avanço do
coronavírus). Fica muito difícil criar uma estratégia retórica populista
funcional."
Embora não seja necessário, de fato,
ter uma maioria para mobilizar seus apoiadores, é preciso "construir a
ilusão da maioria", explica Ortellado.
"As pessoas que estão indo às
portas do quartel ou protestar contra o (governador de São Paulo João) Doria
precisam estar convencidas de que são a vanguarda de uma maioria, ter essa
ilusão de que são porta-vozes de uma maioria. Mas quando as evidências falam
mais alto, quando elas estão isoladas na família, que é o que tem acontecido, a
ideia de que são uma maioria é difícil de ser sustentada. E acho que essa é uma
crise que ele está enfrentando, porque essa aposta não está vingando."
A força do discurso
'nós contra eles'
Isso é importante uma vez que a força
do discurso é peça central do populismo, em que políticos como Bolsonaro se
apoiam, sejam eles de esquerda ou direita.
"De fato esse discurso 'nós
contra eles', 'o povo contra as elites' é muito mobilizador - é uma força que,
quando você consegue ativá-la por meio do discurso, tem efeitos eleitorais
poderosos", prossegue Ortellado.
"E Bolsonaro soube mobilizar
isso muito bem nas eleições de 2018, e essa máquina de antagonismo não desligou
desde então. Ela está sempre criando antagonismos anti-elite."
Seja de esquerda ou direita, o
discurso populista em todo o mundo se sustenta, diz o pesquisador, na ideia de
que o poder foi cooptado por outros grupos políticos - "pela alta
burocracia, pelos meios de comunicação, pelo mercado financeiro", por
exemplo.
É um pouco o que faz Bolsonaro quando
diz que "o STF me proibiu de fazer qualquer coisa contra a pandemia"
- quando na verdade a Corte Suprema apenas reafirmou a autonomia de Estados e
municípios para tomar medidas de isolamento social, mas não isentou o governo
federal de suas responsabilidades no tema.
"O (ex-presidente dos EUA
Donald) Trump também usava muito a ideia de 'deep state' (Estado profundo), de
que ele tinha que fazer uma espécie de luta interna contra o poder, que está
alhures, não naquela cadeira em que ele estava sentado", aponta Ortellado.
"O Bolsonaro fez isso: disse que o poder está
no STF, nos governadores, na 'globolixo'. Por isso que esse antagonismo
anti-elite consegue ser ativado mesmo ele sendo parte da elite política -
afinal, ele está sentado no cargo político mais importante. É um discurso da
impotência do poder político. E é uma luta infinita. Se a gente pegar um caso
muito antigo de populismo, como o venezuelano, (o inimigo) é o 'Imperialismo
americano' que nunca acaba. tem sempre um inimigo que nunca vai ser
derrotado."
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