Por Márcia Lemos
O Momento – PCB da
Bahia
Reprodução da imagem:
Justificando
A voz de Conceição
Evaristo [Poema: Vozes Mulheres] ecoa dor e humilhação, ecoa resiliência e
resistência, ecoa morte e vida, ecoa alto e forte as vozes das mulheres
vilipendiadas na senzala e no pelourinho, no eito e no serviço “doméstico”, na
fábrica e no “doce lar”, na terceirização e na informalidade. Ontem, exploradas
no mercado de escravas; hoje, exploradas no mercado de trabalho, sem proteção ou
direitos sociais, reificadas tanto pelo senhor da casa grande, homem branco e
colonizador, quanto pelos “donos da República”, os senhores do agronegócio, dos
bancos, do grande comércio varejista, da indústria, dos monopólios de
importação e exportação e das mineradoras.
Essas mulheres,
pobres, negras, indígenas ou imigrantes, há muito conhecem o mercado de pessoas
reduzidas a sua força de trabalho, silenciadas pela imposição do chicote e pela
premência da necessidade também o são pelo amálgama conjugal. As mulheres
negras escravizadas labutavam nos serviços pesados de forma indiscriminada,
grávidas ou lactantes realizavam o que havia para ser feito, punidas com
brutalidade, constantemente lembradas da sua condição de mulher pela violência
sexual e imposição da maternidade para reprodução da força de trabalho.
As mulheres pobres
desde o Brasil colonial laboram para sobreviver, desempenham o trabalho
reprodutivo e as funções do cuidar, consideradas femininas ou aquelas socialmente desprestigiadas, que exigem baixa instrução formal e pagam exígua
remuneração. As mulheres que trabalhavam nas fábricas no inicio do século XX,
entre elas muitas imigrantes, estavam submetidas a jornadas de até 16 horas diárias, assim como homens e crianças.
Não bastasse a
expropriação da força de trabalho, a elas ainda era reservado o constrangimento
moral, abuso sexual e salários inferiores aos dos operários. Mais de cem anos
depois, continuamos a reivindicar “salário igual para trabalho igual” e o fim
dos abusos praticados pelos chefes imediatos e patrões.
No século XXI, as
relações de sexo, raça e classe têm condenado as mulheres a transitar entre a exploração e apropriação
de suas vidas. A “feminização” do mercado de trabalho, estimulada pela
globalização neoliberal, consolida-se como uma estratégia do capital para
ampliar a acumulação privada da burguesia, pois o trabalho de reprodução social e os postos mais precarizados continuam a ser
relegados às mulheres empobrecidas e racializadas, que têm acesso desigual aos
meios de produção e ao processo de escolarização, conforme indicadores do IBGE.
Pois bem, o mercado
de trabalho, sob a ficção jurídico-constitucional do estado burguês, é o “*locus* do livre
acordo entre patrão e empregada”; sob a inexorável realidade, é o *locus* de
expropriação máxima e de alienação das trabalhadoras, que se exerce de forma
sutil e brutal ao mesmo tempo, que subordina o ser mulher ao capital e a reduz
a sua condição única de reprodutora e força de trabalho, que a transforma em
pura necessidade, subsumida aos valores, ideias e representações daqueles que
continuam a segurar o açoite e a assediar na rua, na escola e no trabalho.
É importante observar
que, em conjunturas de grave crise econômica, tal qual se vivencia sob a
pandemia do Covid-19, crescem os índices de violência contra a mulher. No
Brasil, soma-se a essa conjuntura o ascenso da extrema-direita reacionária e das políticas ultraliberais. Essas determinações criam uma
situação de extrema vulnerabilidade para as mulheres, especialmente as negras,
imigrantes, indígenas e pobres. Patrões e chefes usam o temor da mulher em
perder seu meio de subsistência para coagi-la a cumprir jornadas de trabalho
extenuantes, a tolerar ofensas, constrangimentos e humilhação, além dos abusos
relativos ao corpo.
O assédio no local de
trabalho envolve uma relação de poder, na qual a mulher está, conforme padrões
socioeconômicos e históricos, em posição hierarquicamente inferior e sente-se
vulnerável, humilhada, culpada e com medo de reagir. De modo geral, o assédio
sexual caracteriza-se por comentários insistentes e constrangedores sobre o
aspecto físico, roupas e comportamento; convites reiterados e coercitivos;
contato permanente e indesejado por meio das redes sociais; toque no corpo sem
consentimento; proposta ou chantagem de natureza sexual manifestada por
palavras, gestos ou outros meios, como o whatsapp; exigência de sexo em troca
de benefícios ou para evitar prejuízos. Já o assédio moral implica em
humilhações, desqualificação do trabalho e aspecto físico e, em muitas
situações, as mulheres são fragilizadas, apontadas como péssimas mães enquanto
laboram como únicas provedoras do lar, geralmente abandonado pelo homem.
Contudo, o assédio
moral e sexual não pode ser reduzido a uma prática isolada a ser combatida nos
homens, mas como um fenômeno social engendrado pelo patriarcado, pelo racismo
estrutural e pelas desigualdades inerentes a uma sociedade de classes, como a
brasileira. A reestruturação das forças produtivas e a constituição do novo proletariado intensificam a
exploração-dominação-opressão das mulheres que, sob a aparência da conquista do
mercado de trabalho, as mantém submetidas ao “poder do macho” nas suas diversas
expressões.
Em que pese a
necessidade imediata de políticas de combate ao assédio, com aparelhos que permitam proteger as
mulheres; escolas que discutam o tema; campanhas informativas e espaços de
acolhimento, preparados para acompanhar as situações sem julgamento moral ou
punitivismo, é preciso reconhecer que o capitalismo não liberta as mulheres, apenas “reorganiza o equilíbrio entre
apropriação e exploração”.
Observadas as
determinações aqui apresentadas, a transformação dessa realidade não se fará
pelo direito burguês ou pelo via do “empoderamento individual”, como o
movimento feminista liberal e a mídia hegemônica buscam convencer. A causa
histórica da emancipação das mulheres impõe desafiar a sociedade de classes, racista e patriarcal, implica em superar as condições de hierarquia e
dominação, tanto da família nuclear quanto das relações de produção, para fazer
ecoar as vozes de milhões de trabalhadoras organizadas contra o capital, que reivindicam não só políticas de
reconhecimento, mas de redistribuição.
BAHIA | Dezembro de
2020
O MOMENTO
Edição nº 005
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