domingo, 3 de janeiro de 2021

MULHER, MERCADO DE TRABALHO E ASSÉDIO

 

Por Márcia Lemos

O Momento – PCB da Bahia

Reprodução da imagem: Justificando

A voz de Conceição Evaristo [Poema: Vozes Mulheres] ecoa dor e humilhação, ecoa resiliência e resistência, ecoa morte e vida, ecoa alto e forte as vozes das mulheres vilipendiadas na senzala e no pelourinho, no eito e no serviço “doméstico”, na fábrica e no “doce lar”, na terceirização e na informalidade. Ontem, exploradas no mercado de escravas; hoje, exploradas no mercado de trabalho, sem proteção ou direitos sociais, reificadas tanto pelo senhor da casa grande, homem branco e colonizador, quanto pelos “donos da República”, os senhores do agronegócio, dos bancos, do grande comércio varejista, da indústria, dos monopólios de importação e exportação e das mineradoras.

Essas mulheres, pobres, negras, indígenas ou imigrantes, há muito conhecem o mercado de pessoas reduzidas a sua força de trabalho, silenciadas pela imposição do chicote e pela premência da necessidade também o são pelo amálgama conjugal. As mulheres negras escravizadas labutavam nos serviços pesados de forma indiscriminada, grávidas ou lactantes realizavam o que havia para ser feito, punidas com brutalidade, constantemente lembradas da sua condição de mulher pela violência sexual e imposição da maternidade para reprodução da força de trabalho.

As mulheres pobres desde o Brasil colonial laboram para sobreviver, desempenham o trabalho reprodutivo e as funções do cuidar, consideradas femininas ou aquelas socialmente desprestigiadas, que exigem baixa instrução formal e pagam exígua remuneração. As mulheres que trabalhavam nas fábricas no inicio do século XX, entre elas muitas imigrantes, estavam submetidas a jornadas de até 16 horas diárias, assim como homens e crianças.

Não bastasse a expropriação da força de trabalho, a elas ainda era reservado o constrangimento moral, abuso sexual e salários inferiores aos dos operários. Mais de cem anos depois, continuamos a reivindicar “salário igual para trabalho igual” e o fim dos abusos praticados pelos chefes imediatos e patrões.

No século XXI, as relações de sexo, raça e classe têm condenado as mulheres a transitar entre a exploração e apropriação de suas vidas. A “feminização” do mercado de trabalho, estimulada pela globalização neoliberal, consolida-se como uma estratégia do capital para ampliar a acumulação privada da burguesia, pois o trabalho de reprodução social e os postos mais precarizados continuam a ser relegados às mulheres empobrecidas e racializadas, que têm acesso desigual aos meios de produção e ao processo de escolarização, conforme indicadores do IBGE.

Pois bem, o mercado de trabalho, sob a ficção jurídico-constitucional do estado burguês, é o “*locus* do livre acordo entre patrão e empregada”; sob a inexorável realidade, é o *locus* de expropriação máxima e de alienação das trabalhadoras, que se exerce de forma sutil e brutal ao mesmo tempo, que subordina o ser mulher ao capital e a reduz a sua condição única de reprodutora e força de trabalho, que a transforma em pura necessidade, subsumida aos valores, ideias e representações daqueles que continuam a segurar o açoite e a assediar na rua, na escola e no trabalho.

É importante observar que, em conjunturas de grave crise econômica, tal qual se vivencia sob a pandemia do Covid-19, crescem os índices de violência contra a mulher. No Brasil, soma-se a essa conjuntura o ascenso da extrema-direita reacionária e das políticas ultraliberais. Essas determinações criam uma situação de extrema vulnerabilidade para as mulheres, especialmente as negras, imigrantes, indígenas e pobres. Patrões e chefes usam o temor da mulher em perder seu meio de subsistência para coagi-la a cumprir jornadas de trabalho extenuantes, a tolerar ofensas, constrangimentos e humilhação, além dos abusos relativos ao corpo.

O assédio no local de trabalho envolve uma relação de poder, na qual a mulher está, conforme padrões socioeconômicos e históricos, em posição hierarquicamente inferior e sente-se vulnerável, humilhada, culpada e com medo de reagir. De modo geral, o assédio sexual caracteriza-se por comentários insistentes e constrangedores sobre o aspecto físico, roupas e comportamento; convites reiterados e coercitivos; contato permanente e indesejado por meio das redes sociais; toque no corpo sem consentimento; proposta ou chantagem de natureza sexual manifestada por palavras, gestos ou outros meios, como o whatsapp; exigência de sexo em troca de benefícios ou para evitar prejuízos. Já o assédio moral implica em humilhações, desqualificação do trabalho e aspecto físico e, em muitas situações, as mulheres são fragilizadas, apontadas como péssimas mães enquanto laboram como únicas provedoras do lar, geralmente abandonado pelo homem.

Contudo, o assédio moral e sexual não pode ser reduzido a uma prática isolada a ser combatida nos homens, mas como um fenômeno social engendrado pelo patriarcado, pelo racismo estrutural e pelas desigualdades inerentes a uma sociedade de classes, como a brasileira. A reestruturação das forças produtivas e a constituição do novo proletariado intensificam a exploração-dominação-opressão das mulheres que, sob a aparência da conquista do mercado de trabalho, as mantém submetidas ao “poder do macho” nas suas diversas expressões.

Em que pese a necessidade imediata de políticas de combate ao assédio, com aparelhos que permitam proteger as mulheres; escolas que discutam o tema; campanhas informativas e espaços de acolhimento, preparados para acompanhar as situações sem julgamento moral ou punitivismo, é preciso reconhecer que o capitalismo não liberta as mulheres, apenas “reorganiza o equilíbrio entre apropriação e exploração”.

Observadas as determinações aqui apresentadas, a transformação dessa realidade não se fará pelo direito burguês ou pelo via do “empoderamento individual”, como o movimento feminista liberal e a mídia hegemônica buscam convencer. A causa histórica da emancipação das mulheres impõe desafiar a sociedade de classes, racista e patriarcal, implica em superar as condições de hierarquia e dominação, tanto da família nuclear quanto das relações de produção, para fazer ecoar as vozes de milhões de trabalhadoras organizadas contra o capital, que reivindicam não só políticas de reconhecimento, mas de redistribuição.

BAHIA | Dezembro de 2020

O MOMENTO

Edição nº 005

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