segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Com o SUS, para além do SUS, superar a mercantilização!

Coletivo LGBT Comunista de São Paulo

Em uma suposta reação à vigência de um sistema público de saúde no Brasil, cujo acesso foi inegavelmente ampliado e melhorado desde a criação do SUS, presenciamos cotidianamente o seu desmonte nos últimos anos. 

Na maior ou menor esfera do Poder Executivo e no Legislativo, sempre sob o mantra da responsabilidade fiscal e de outras falácias da política de austeridade (como aquela de que “o dinheiro acabou”), são aplicadas medidas que fortalecem o negócio privado da saúde, estabelecidas portarias que encerram contratos e serviços fundamentais para a população, decretadas privatizações na atenção primária e, ainda, promulgadas Emendas Constitucionais (EC) que impedem o investimento público nas próximas décadas, como a EC 95 do Teto de Gastos (ou PEC da Morte). 

No entanto, o que apresentam como argumentos não chega no cerne da questão, encobrindo o verdadeiro motivo: a necessidade de aumentar as taxas de lucro da burguesia, em queda há cerca de uma década, e de ampliar o Capital, sendo “imperativo transformar cada vez mais setores em áreas capazes de gerar lucro”. (UJC, 2013, p. 20) E ainda que seja concreto o crescente avanço do setor privado sobre a saúde, este não se contrapõe em essência ao sistema público de saúde.

Para verificar esta afirmação, vale traçarmos um histórico recente da saúde no país – além de já partirmos da compreensão do Brasil como um país caracterizado por relações capitalistas hegemônicas de produção e do papel do Estado como representante do poder da classe dominante, legitimando e defendendo seus interesses.

Ainda no período da ditadura empresarial-militar, as universidades brasileiras começaram a elaborar uma nova política sanitária que se contrapunha às péssimas condições de vida e de saúde às quais grandes parcelas da população estavam submetidas por conta da política econômica imposta pelo regime. Devido à repressão sofrida pela classe trabalhadora e às lutas mais imediatas que enfrentava, relacionadas ao emprego, salário e moradia, este projeto foi desenvolvido pelos intelectuais de maneira apartada das massas. E somente com a eclosão dos movimentos sociais em prol da democracia, no início dos anos 1980, é que ele começa a ser pautado como possibilidade para uma nova fase da República brasileira, mas ainda sem a necessária participação popular direta.

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Talvez por isso, o incipiente movimento sanitário limitava suas propostas – e, depois, seu horizonte de atuação – apenas às pautas da saúde, sem as relacionar com o rompimento da atual estrutura social e econômica e com a edificação de um novo modelo de sociedade. Inserido num contexto maior da estratégia política de sua época – a Estratégia Democrático-Popular –, o movimento considerava necessário realizar conquistas dentro da legalidade burguesa e garanti-las através da aliança com setores da burguesia, alçando primeiro uma ampla democratização da sociedade. Só aí, então, superar o modo de produção capitalista. Isso se mostra insuficiente, pois:

[…] a Saúde, sendo determinada socialmente, depende mais de como se dá o acesso à totalidade do que foi produzido pela sociedade e não só da organização dos Serviços de Saúde, ou seja, para além da luta por melhoria dos serviços públicos de saúde faz-se necessária à luta por mudança na estrutura da sociedade. Partindo-se dessa concepção, entendemos que o acesso a serviços de saúde públicos representa apenas uma parcela das mercadorias produzidas socialmente. Porém ainda seria necessário tornar públicos o acesso à comida, roupas, educação, moradia, produtos eletrônicos, transporte, lazer etc., o que só seria possível a partir da socialização dos meios de produção capazes de produzir todas essas riquezas que o gênero humano já desenvolveu. (ibid., p. 12)

A vinculação do movimento sanitário à estratégia política mencionada implica em mais um dos seus aspectos: a sua relação com a institucionalidade. Não contando com a participação dos trabalhadores e dentro dos limites da luta pela democratização da sociedade – e não pela sua transformação radical – , o movimento restringiu – e restringe – a sua atuação aos espaços institucionais. E também, diante das dificuldades de inserção no Estado Burguês, sobretudo sob uma ditadura (ainda que em suas horas finais), limitaram-se a um pragmatismo político e a almejar “o possível” dentro daquele período histórico. 

Afinal, não se deveria assustar as classes dominantes com um projeto de reforma subversivo. Deste modo, perdendo de vista o horizonte socialista e apostando num etapismo (a democratização nos marcos do capitalismo permitiria o acúmulo de forças dos movimentos sociais e das organizações da classe trabalhadora para sua ascensão sem rupturas ao socialismo), a criação do Sistema Único de Saúde no final da década de 1980 passou pela escolha não de um sistema integralmente público, mas sim pela sua coexistência com o setor privado – e com as diversas iniquidades sociais. Apesar dos movimentos e das organizações trabalhistas terem se fortalecido de fato nesse período, seu programa foi rebaixado em função da aliança com a burguesia e sua atuação se circunscreveu ao “possível” dentro dos limites do Estado.

Se dissemos anteriormente que o Estado age como representante do poder da classe dominante, podemos afirmar que um serviço público não desviaria dos objetivos dela, que são a manutenção e reprodução da sociedade capitalista. Assim, não podemos entender o sistema público de saúde brasileiro como contraposição ao setor privado.

Ainda mais, se considerarmos algumas informações e práticas correntes deste sistema. O Brasil é o único país do mundo com um sistema universal público em que se gasta mais com a saúde privada: em 2007, este gasto correspondia a 56,8% do total despendido em saúde (ibid., p. 20); em dados de 2018, o investimento público em saúde foi de 45%, ou cerca de 3,8% do PIB¹, frente aos 4,4% destinados ao setor privado² (PAÍSES…, 2019). Por aqui, o poder público compra e aluga leitos em hospitais privados, prática intensificada durante a pandemia do Covid-19³ (ao contrário de países que neste período estatizaram leitos e hospitais⁴). 

A privatização se encaixa nesta relação, por exemplo, através da venda para o setor privado de toda uma infraestrutura ou de equipamentos a preços muito abaixo de quando foram adquiridos pelo poder público. Há ainda a terceirização de serviços públicos essenciais, tidos como ineficientes, que consiste na transferência de recursos públicos para gestão dos então “equipamentos” por meio das Organizações Sociais (OSs), Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OCIPs), etc.. Deste modo, a saúde assume uma lógica de produtividade empresarial, priorizando a captação de recursos e ofertando piores condições de trabalho, e o serviço público é cada vez mais precarizado.

Cabe destacar que na virada da democratização esse “modelo de gestão” foi importante para a institucionalização dos movimentos sociais, que passaram a atuar – e ainda atuam – no Estado através de ONGs e empresas propriamente ditas. E é aqui que está a relevância da presente discussão para as LGBTs trabalhadoras. Quando o nosso horizonte político se encontrou com o da estratégia política hegemônica da esquerda após a ditadura, a nossa atuação se limitou a política do possível e a gestão do Estado Burguês. 

Por exemplo, em São Paulo, serviços de saúde e da assistência social são administrados por ONGs que tiveram relevância nas lutas pela democratização, e hoje executam serviços que deveriam ser públicos e têm como prioridade planos de metas e orçamentos. Não podemos dizer que o projeto era bom, mas foi desvirtuado. Do mesmo modo, não podemos dizer isso para a Estratégia Democrático-Popular como um todo e para o próprio projeto do SUS. O desmonte do sistema público e o avanço do setor privado são intrínsecos a ele, como demonstramos acima.

Focados em gerir o Estado ou negócios privados, os movimentos sociais não atuaram onde deveriam, nas ruas, com e para a nossa classe. E apesar de inegáveis conquistas, da ampliação do acesso à assistência básica ou do pioneiro atendimento ao HIV/Aids, a atuação foi limitada a determinadas áreas, sem ter no escopo suas relações mais gerais. Deste modo, não houve a organização da nossa classe para ter força necessária de barrar os interesses da classe dominante ou assegurar o conquistado. Logo, não se combateu as demais determinações da nossa condição inferiorizada na sociedade.

Oportunidade muito bem aproveitada hoje, quando enfrentamos a pior administração da pandemia, cortes de serviços fundamentais para o início do tratamento do HIV⁵, fechamento de Unidades Básicas de Saúde⁶ e centros de referências voltados ao atendimento da população LGBT⁷, a enorme revogação de portarias da política de saúde mental (o que possibilita o ressurgimento de hospitais de internação)⁸. Ao contrário do acúmulo de forças previsto, cada vez mais temos que garantir o mínimo para a gente, enquanto a burguesia faz o possível para ampliar ainda mais suas taxas de lucro – ainda que às custas de nossas vidas.

Temos que nos mobilizar contra o sucateamento do sistema público de saúde e em favor da estatização do setor privado. Devemos fazê-lo compreendendo o papel do Estado e sem rebaixar nosso programa ou nos contentar com políticas públicas do “possível”. Que esta luta parcial, nos marcos do capitalismo, esteja atrelada à luta que possibilite superar de vez a mercantilização da saúde, o que só acontecerá com a superação das relações de produção desta sociedade. Com o SUS, para além do SUS! 

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