Da esq. para a dir. Hamilton Mourão, Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. 19 ago. 2020. Foto: Andre Borges.
BLOG DA BOITEMPO
Quando o fogo ameaça
avançar na pradaria, o movimento dos ventos cria falsas premissas, levando o
bombeiro a considerar que o incêndio está sob controle, quando na verdade eles
está cercado ou faz parte do incêndio.
Por Milton Pinheiro
Quando o fogo ameaça
avançar na pradaria, o movimento dos ventos cria falsas premissas, levando o
bombeiro a considerar que o incêndio está sob controle, quando na verdade ele
está cercado ou faz parte do incêndio. A complexidade da conjuntura, em sua
espiral dialética, com a contradição principal e questões secundárias,
apresenta variantes que nos informam que precisamos estabelecer um conjunto
tático na cena política de crise marcada pela pandemia que, na presente relação
de forças na luta de classes, elenque a ordem das contradições.
O bolsonarismo ainda mantém a iniciativa política, fora e dentro do governo. Reafirma o projeto de poder pautado no caos controlado. Articula no balcão do parlamento. Modifica, talvez temporariamente, sua relação com os cercadinhos da política. Continua alimentando – mas de forma discreta – a ação das hordas racistas e neopentecostais. Coloca outros agentes para animar o espetáculo-ódio-neofascismo que consegue resgatar o que tem de pior no senso comum.
E reafirma o conjunto complexo das formas organizativas que permitem o
avanço do golpe por dentro das instituições da democracia formal que, paulatinamente,
encontra-se em erosão. Essa estrutura política mantém a forma original da
interrelação com os agrupamentos paramilitares e os grupos fascistas que, em
momento de ruptura, podem agir violentamente no apoio ao processo de autogolpe.
O recuo tático no
papel midiático do militar-presidente, enquanto agitador fascista, não se
consolidou nas pautas que alimentam o cercadinho da política que ainda clama
pelo golpe clássico. Contudo, esse recuo tático, avançou na relação com a mídia
e dissimulou-se na perspectiva de construir uma saída da pandemia, embora ainda
exista a sugestão reiterada do uso de um remédio sem comprovação científica.
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Esse processo que
mitigou as bravatas golpistas e acentuou a dissimulação no ambiente político da
pandemia foi impactado pela prisão do Queiroz e também pela falta de apoio para
a palavra de ordem “vou intervir” e pela queda de braço, sem maior repercussão
político-social, a respeito do dossiê policial-fascista preparado pelo sistema
de informação do governo.
O recuo tático do
agitador fascista e a operação do governo nos bastidores possibilitaram que uma
parte do partido da ordem (Justiça) colocasse de forma desavergonhada o Queiroz
em casa, mesmo com nova perspectiva de prisão. Essa operação não teria sido
desenvolvida se o aparato militar-burocrático não tivesse concordância com o
recuo tático nos termos aqui colocado. Essa fração da burocracia de Estado
continua com presença protagonista na articulação comandada pelo agitador
fascista, amplia sua presença dentro do governo e torna muito complexa qualquer
saída para a crise política.
Outras dinâmicas estão sendo operadas na crise da relação de força. A base social de Bolsonaro tende a aumentar diante da crise e da pandemia, em especial nos setores do comércio varejista. Sua popularidade vai crescer, em especial por conta do temporário aparato da renda mínima. É nítido o funcionamento do aparato que constrói o golpe por dentro das instituições. O STF claudica ao não atacar a centralidade da questão Bolsonaro.
O parlamento confirma um acordão de não
tocar em Bolsonaro antes dos dois anos de mandato (tese defendida por Sofia
Manzano) e os aparatos de coerção estão em processo de insubordinação contra as
instituições da democracia formal: PM, setores da PF, militares, áreas do Ministério
Público, etc. A base eleitoral dos 30% de bolsonaristas, neste momento, está
sendo dirigida pelo recuo tático, contudo, ao se desvelar a cena política o
setor minoritário, que quer abrir pistas a céu aberto para afirmar o processo
de ruptura, agirá.
Em outra frente da
luta política, na disputa conjuntural, a defesa da democracia está sendo
configurada e pautada pela abstração da democracia formal. O que não está sendo
percebido, na ampla unidade de forças liberais e sociais democratas é que essa
lógica de disputa político-jurídica não consegue ter repercussão social e, algo
mais grave, ela já foi ocupada pela ação do agitador fascista, Jair Bolsonaro.
Portanto, afirmou-se
uma ação política que se estruturou na anomia que se consolidou com a leniência
deliberada da justiça e com a domesticação do parlamento. Essa lógica que
perpassa o ataque às instituições construídas pelo pacto burguês de 1988,
contido com a pressão organizada dos trabalhadores, está sendo destruída desde
2013. O Estado está celeremente sendo modificado para atender aos ditames da
burguesia e, em especial, a partir de 2016, está destruindo os direitos da
classe trabalhadora.
O lavajatismo na
ordem jurídica brasileira abriu comportas para se reinterpretar a constituição
e a legalidade institucional, conformou partidos dentro da ordem ( polícia,
Ministério Público, Poder Judiciário, militares, burocracia do Estado em pacto
com a mídia corporativa), permitindo-se, inclusive, que militares, enquanto
burocracia do Estado, pretensamente apresentem-se como “poder moderador”.
Portanto, sendo assim, o quadro de anomia, tão importante para o caos
controlado enquanto projeto de poder, avança. Tudo isso em uma conjuntura de
pandemia que se afirma pela ausência de política pública de saúde e consolida-se
com extrema letalidade. Estamos, miseravelmente, circunstanciados numa questão
de vida ou morte.
O dissenso burguês e as contradições entre suas frações ainda determinam a centralidade da crise política, contudo, a articulação bolsonarista está operando para diminuir o litígio e situá-los nos projetos de governo. A pauta burguesa, pode ser manuseada a partir de uma lógica bonapartista pelo militar-presidente. A grande questão para a burguesia, em especial para as frações que estão fora do bloco no poder, é a dimensão da instabilidade política e da rearrumação do bloco.
Nesse confronto intestino entre os setores da burguesia, a Globo representa
aquelas frações que estão fora do Bloco no poder, mas, no entanto, ainda pensam
o Estado como um espaço da revalorização do capital em crise. O ataque a partir
da mitigação da pandemia será brutal sobre os trabalhadores: a reforma
administrativa, novos ajustes trabalhistas e mudança no perfil do Estado é a
pauta do acordão da burguesia.
Mas, na ordem da luta
política, nem sempre no projeto de caos controlado tudo está sob controle.
Algumas questões avançam no fogo da conjuntura e podem atiçar focos de incêndio
na pradaria da política e que poderá fugir ao controle do bolsonarismo: a
questão do impedimento do militar-presidente depois dos dois anos de mandato, o
debate sobre a cassação da chapa no TSE, os processos sobre fake news, a nova
possibilidade de prisão do Queiroz (que é comparsa da família Bolsonaro), os
escândalos da família Bolsonaro, etc. Questões que são suspeitas, contudo, não
comprovadas, podem, a qualquer momento, servir de faísca para incendiar a
pradaria.
No entanto, na
relação de força que baliza a conjuntura neste momento fica muito difícil a
retirada do Bolsonaro da presidência. Até a perspectiva de autogolpe está bem
situada no exercício de força que pode impactar a cena política em algum
momento de impasse. Porém, precisamos ficar atentos para a possibilidade de
Bolsonaro, ao consolidar as reformas burguesas no parlamento, trabalhar para
afirmar situações de emergência ao estilo de Viktor Orbán (Hungria). E, nesse
quadro político cinzento, é importante saber que os militares estão ao lado de
Bolsonaro em qualquer aviso de incêndio.
O governo e os
militares articulam, na incapacidade e falta de interesse em desenvolver uma
política pública de combate à covid-19, o extermínio de segmentos da população
que são vulneráveis e que se encontram extremamente precarizados na vida
social. Essa postura oficial contribuiu para o avanço, em marcha forçada, da mortandade
da população indígena e o crescimento do total de mortes no Brasil, que já
passam dos mais de 110 mil brasileiros/as.
Enquanto isso, os
militares estacionados no Palácio do Planalto, articulam uma desenfreada
nomeação de militares para cargos comissionados no governo. Conformando, assim,
uma burocracia de Estado com iniciativa política e que age ideologicamente em
defesa do obscurantismo. Essa fração da burocracia de Estado é antinacional,
extremamente corporativa, ataca o fundo público atrás de privilégios e sua
conduta confirma uma nítida presença no avanço do golpe por dentro das
instituições da República.
O golpe aprofunda-se,
agora numa nova perspectiva, caminha para um acordão de ampla articulação
política. Reafirma o completo esvaziamento da democracia formal, tendo como
recorte agitativo seu caráter “antisistêmico” e uma construção política que
corrói a institucionalidade liberal e agiganta-se no ódio à democracia, em
completa consonância com as manifestações das hordas neofascistas em via pública.
A pauta da conjuntura
avoluma-se: é o caso Queiroz, fica nítido a corrupção da família Bolsonaro com
a situação criminosa do senador Flávio Bolsonaro, são depósitos na conta da
primeira dama, é o descaso com a pandemia, contudo, a proposta de renda mínima
do governo pode consolidar crescimento de popularidade no nordeste,
consolida-se uma soldagem no campo militar, pesquisas confirmam que as PMs são
base de apoio nacional, aumenta a política de desemprego executada pela
burguesia (vide a Latam), cresce a expulsão de populações em terras e moradias
ocupadas, etc.
Mas, no entanto, não
se pode ficar no varejo da cena política. O recuo tático de Bolsonaro é o
avanço no reforço político na articulação com o Centrão, na construção das
articulações do capital financeiro e do capital monopolista na ampliação do
bloco no poder. O “novo” pacto, o Acordão, tem como eixo central o projeto de
destruição do Estado de mínimas garantias e direitos, virá violento com o
ataque ao trabalhador público através da reforma administrativa e outras ações
sinalizadas pelos operadores do novo golpe: governo, parlamento e instituições
públicas em profunda erosão.
O recuo tático será
interrompido, em alguns momentos, para animar as hordas neofascistas, gerar o
espetáculo dos cercadinhos da política, alimentar o caldo de cultura do
racismo, machismo, lgbtfobia e o preconceito de classe. Esse será o duplo
complexo da ação política por onde trilhará o agitador fascista. Portanto, na
operação da política há que se ter uma tensa preocupação: haverá um cenário de
retorno a institucionalidade, como quer sugerir os lenientes, ou está em
realimentação a operação do golpe por dentro das instituições? O caos
controlado está taticamente sobre controle, para que?
No cenário da
conjuntura, a relação com a contradição principal deve ser operada em duas
frentes: construção da frente única da esquerda socialista em articulação
estratégica com o bloco proletário para operar na luta contra a destruição do
Estado e as contrarreformas administrativas e as diversas ações da burguesia
interna e, por outro lado, agir e somar-se, com vigor popular, na organização
da frente ampla (liberais, sociais-democratas, desamparados do bloco no poder,
militares descontentes, etc.) na frente ampla para construir a queda de
Bolsonaro-Mourão e Paulo Guedes. Contudo, essa dupla ação no centro da
contradição principal terá que afirmar, na luta concreta, a palavra de ordem
que poderá mobilizar a classe trabalhadora e o povo pobre das periferias.
***
Milton Pinheiro é
Cientista Político e professor titular de história política da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB). Pesquisador na USP, editor-geral da revista Novos Temas
e autor/organizador de oito livros, entres eles, Ditadura: o que resta da transição
(Boitempo, São Paulo, 2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente. É
membro do Comitê Central do PCB.
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