BLOG DA BOITEMPO
Por Mauro Luis Iasi
Mais de três milhões
de pessoas infectadas. Mais de cem mil mortos. Os dados são estarrecedores por
si mesmos, ainda mais se somarmos a esse quadro macabro os vinte milhões de
casos e os mais de setecentos mil mortos pela pandemia no mundo todo. Nossa
reação, no entanto, é muito estranha. Parece-nos preocupar muito mais o
andamento da vida, a suposta volta à normalidade ou, pior, os efeitos
econômicos que podem se desencadear.
Os seres humanos
passaram a enterrar seus mortos, segundo os estudiosos1, há mais ou menos cento
e trinta mil anos, associando ao evento formas ritualísticas e o uso de adornos
corporais, urnas, artefatos e rituais fúnebres. Para a famosa antropóloga Margaret
Mead, a primeira evidência daquilo que seria a civilização humana poderia ser
encontrado no fóssil de um fêmur cicatrizado, uma vez que isso indicaria que o
grupo teria cuidado do ferido e não o abandonado para morrer.
Parece haver uma
relação entre quantidade e qualidade no que tange a nossa reação diante da
morte. A morte de um ser distante costuma nos afetar pouco. Uma quantidade
significativa, como em um acidente ou catástrofe, pode gerar uma comoção. No
entanto, essa constatação nos deixa ainda mais incomodado uma vez que a atual
pandemia parece indicar que em situações em que esse número ultrapassa cifras
assustadoras acabamos por ficar diante de uma reação de passividade e negação
anestesiante.
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A morte nos coloca
diante de uma ambivalência. Ela é vista como uma pura casualidade natural, como
parte inevitável da existência, mas ao mesmo tempo como ameaça inexorável de
destruição da pessoa, como ameaça suprema e aterrorizante. Freud tendia a
acreditar que a base de nossa atitude perante a morte residia nessa
ambivalência: isto é, um mecanismo de defesa diante de uma ameaça de nossa
própria morte que ora a naturaliza como mera casualidade, ora nos serve de
artifício para contornar a culpa que advém do desejo inconsciente da morte de
outra pessoa. Para ele, tal atitude desdobra-se no culto da separação do corpo
e da alma, fundamento de todo comportamento religioso.
Freud acreditava que
essa postura seria resultado de um processo civilizatório. Ou seja, seria
inexistente no ser pulsional “primitivo” movido por instintos e paixões, em
mais uma expressão da premissa freudiana da luta entre instinto (primitivo) e
razão (civilização). É, no entanto, essa premissa que leva o pai da psicanálise
ao espanto quando se defronta com a atitude dos povos que ele julgava
“civilizados” no exercício sistemático da matança na primeira grande guerra.
Vejamos em suas palavras:
“Estava-se, pois,
preparado para que a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em
guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre raças humanas
diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou
incultos da Europa. Mas das grandes nações da raça branca, dominadoras do
mundo, às quais coube a direção da humanidade, que sabia estarem ocupadas com
os interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio
da natureza e os valores culturais, artísticos e científicos, destes povos
esperava-se que saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e seus
conflitos de interesses.”
Sigmund Freud, “A
nossa atitude diante da morte”, Escritos sobre a guerra e a morte (Covilhã:
Universidade de Beira Interior, 2009), p. 5.
O texto é de 1915 e trata da primeira guerra. Freud morreu em setembro de 1939, no mesmo mês e ano que Hitler invadia a Polônia e dava início à Segunda Guerra Mundial, na qual as nações brancas a quem “coube a direção da humanidade” se mergulhariam de novo numa carnificina organizada a fim de resolver seus problemas na disputa dos “interesses mundiais”. Acreditamos que sua reação diante da Segunda Guerra não produziria no psicanalista o mesmo espanto que a primeira, ainda que o mesmo horror e aversão. Freud era um homem da ciência – e estes, como fica patente na frase apresentada, não são imunes ao preconceito.
O traço distintivo é que o
cientista não procura esconder os fatos sob o ataque de argumentos e
justificativas, mas se propõe a entender aquilo que o confronta de forma
incômoda. Diante da eclosão do conflito, Freud sentencia: “A guerra, em que não
queríamos acreditar, estalou e trouxe consigo a decepção”.
O problema, portanto,
é saber por que que as sociedades “civilizadas” se entregavam à barbárie da
guerra. O esforço das ditas nações civilizadas, prescrevendo aos indivíduos que
dela participavam “elevadas normas morais”, muitas vezes rigorosíssimos, acabam
por impor uma acentuada renúncia à satisfação das pulsões. Imerso nisto que
Freud denomina de “cultura”, o homem branco civilizado – contradizendo tudo
aquilo que Maquiavel afirmou sobre o fenômeno político moderno – estaria
disposto a aceitar a renúncia das “extraordinárias vantagens que o uso da
mentira e do engano proporcionam na luta contra os outros homens”. Na guerra,
no entanto, os mesmos Estados que se empenham em prescrever normas morais aos
seus cidadãos se empenham em matar, mentir e promover o ódio contra outros
povos, sobrepondo à condição de estrangeiro a de inimigo.
Para não nos
alongarmos em demasia na análise do autor, bastaria dizer que para Freud o que
a psicanálise chegou a constatar é que os ditos instintos primitivos não
desaparecem no ser civilizado, sendo antes, por assim dizer, canalizados em uma
direção positiva. Mais do que isso: que os seres humanos são constituídos de
instintos de natureza elementar, ligados às necessidades primordiais que em si
mesmos não são nem bons nem maus. Desta maneira, voltamos à ambivalência, isto
é, à coexistência numa mesma pessoa de um “imenso amor e um intenso ódio”. E,
como sabemos, para a psicanálise esses impulsos frequentemente tomam a mesma
pessoa por objeto – daí a ambivalência de amar quem tolhe seu desejo ou odiar
quem é objeto de seu afeto.
Não apenas os indivíduos como também as nações se edificam, segundo tal premissa, na renúncia dos instintos em nome da civilização. Ocorre que, diante das supostas vantagens de tal conduta, a sociedade torna-se o exercício sistemático de repressão dos impulsos fundamentais, forçando a maioria das pessoas a viver, nas palavras de Freud, “muito acima de seus meios”, aceitando formalmente as imposições morais e convivendo na prática com seus impulsos, tornando-se pessoas hipócritas. Tal constatação leva a Freud a acreditar que uma determinada sociedade é composta de fato muito mais por hipócritas do que por pessoas de cultura, de forma que chega a pensar se a hipocrisia não seria indispensável à cultura.
Quando vemos
os horrores da guerra, diante da decepção com que se esperava da conduta
civilizada, devemos nos lembrar que aqueles que praticam os horrores, de fato,
“não caíram tão baixo como temíamos, porque não tinham subido tão alto, como a
seu respeito julgávamos”.
Não apenas o fato de multidões se ocuparem em levar a cabo o horror da guerra, como também a constatação de que há multidões praticando uma espécie de “cegueira lógica” (o termo é do próprio Freud) faz com que cidadãos civilizados e cultos acabem por se apresentar com uma particular “obstinação e credulidade acrítica perante afirmações mais discutíveis”. Intervém aqui a racionalização, não como atitude científica, mas como mecanismo de defesa diante da emergência de impulsos que nos colocam diante de uma situação de ambivalência. Por exemplo, uma vez dirigido meu ódio a um outro povo ou país, o desejo é de sua aniquilação. No entanto, matar milhares de pessoas é moralmente condenável…
A menos que se
trate de um povo “perigoso”, “encarnação do mal”, munido de “armas de
destruição em massa” que podem atingir e pulverizar minha sala de estar e a
garagem onde guardo meu carro de último tipo (mas para o qual ainda falta pagar
quarenta e oito prestações) – aí sim, se torna justificável jogar bombas,
destruir cidades, assassinar milhares de pessoas incluindo crianças. Veja que o
próprio Freud estaria disposto a aceitar que a guerra fosse o meio utilizado
entre “os povos primitivos e os civilizados, entre raças humanas diferenciadas
pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da
Europa”, mas se espanta quando a beligerância se apresenta como recurso entre
os “civilizados”.
Aqui, no entanto,
entra de forma abrupta a morte na escala de um horror imensurável. Lembre-se
que um dos primeiros mecanismos de defesa seria a naturalização da morte como
mera casualidade inevitável, como parte da vida. Assim procedendo, todavia,
operamos na verdade no sentido de “eliminá-la da vida”, tentamos “silenciá-la”.
A antiga atitude diante da morte não mais nos serve, mas ainda não se
desenvolveu uma nova atitude, gerando desorientação e paralisia. A matança em
massa só pode ser racionalizada se for radicalmente atribuída a um outro,
distante e distinto. No fundo, segue Freud, nos comportamos como se ninguém
acreditasse na própria morte, ou, em outras palavras fosse imortal. A morte é
uma coisa que atinge os outros.
Guardamos nossa
atitude perante a morte para pessoas próximas e queridas, ou para figuras
heróicas que representam para nós a interrupção que a morte configura, um
aventureiro tentando subir ao cume de uma montanha, um time inteiro de
jogadores mortos em um acidente de avião, um navio que se julgava imune a
naufrágios. A morte desse outro nos atinge por que nos colocamos catarticamente
em seu lugar. A guerra e como veremos a pandemia, não comporta a atitude
convencional diante da morte. As pessoas morrem, não como antes, mas aos
milhares de forma que não podem ser consideradas acidente ou casualidade.
Apesar de fenômeno distinto por sua natureza, o ser humano não pode reagir a ele a não ser com os meios psicológicos que dispõe. A morte da pessoa amada ou próxima, daqueles com que o indivíduo se identifica, ou mesmo uma abstração qualquer que se coloque no lugar do objeto (como pátria, liberdade ou algum outro valor), produz uma reação que Freud descreve como luto. Em outras palavras, o trabalho psíquico que diante da constatação que o objeto amada não mais existe opera no sentido de retirar todo o investimento libidinal das ligações com este objeto3.
A noção
de trabalho aqui se apresenta uma vez que o psiquismo que tenta caminhar na
direção descrita enfrenta na verdade uma forte oposição, pois ninguém abandona
o investimento da libido no objeto ainda que agora ausente. Resiste, se afasta
da realidade, sofre, pode desenvolver o que Freud denomina de “psicose
alucinatória do desejo”. Mas o normal é que a realidade acabe por se impor e o
trabalho do luto está feito.
Existiria um outro
estado, que parte da mesma situação de perda mas se caracteriza por um profundo
esvaziamento do ego e um rebaixamento acentuado da autoestima, estado que Freud
nomeia de melancolia. Diferente do luto, no qual o mundo se torna pobre e
vazio, na melancolia é o próprio ego que se esvazia levando a quadros de um
profundo e doloroso desânimo, a suspensão do interesse pelo mundo externo, uma
sentida perda da capacidade de amar, um rebaixamento muito mais acentuado da
autoestima levando a autorrecriminação e em casos mais agudos à autopunição. Outra
diferença é que na melancolia a perda do objeto parece se deslocar da
consciência, ao passo que no luto nada na perda é propriamente inconsciente.
Por mais
interessantes que sejam as diferenças entre os dois estados e certamente as
implicações clínicas envolvidas, os que nos chama a atenção é que ambos
implicam num doloroso processo de desligamento do objeto. Ocorre, diz Freud em
um comentário marginal (mas que para nós assume caráter determinante), que tal
processo de desligamento envolve um custo psicológico muito grande, de tal
forma que:
“Se o objeto não
tiver para o ego um significado tão grande, reforçado por milhares de laços,
sua perda não se prestará a provocar um luto ou uma melancolia.”
A triste constatação que se nos impõe e que remete à primeira parte de nossa reflexão sobre a guerra, é que para boa parte de nossa população romperam-se os milhares de laços e vínculos que os unia aos seus semelhantes. Os outros são apenas isso, outros. Mais que isso, inimigos e ameaças que se tornam objeto do ódio e não da identidade. O país fraturado racionalizou uma guerra interna que dá vazão a um profundo ressentimento, como nos explicou Maria Rita Kehl em Ressentimento (Boitempo, 2020), de maneira que outro pode receber o investimento do ódio e sua aniquilação não se converter na ambiguidade que está na base tanto do luto como da melancolia. Sua morte é somente isso, sua morte, seu desaparecimento.
Não diz respeito àquele que odiava, não remete à sua própria morte, nem move
sua culpa por desejá-la. É uma radical negação da morte, o exercício supremo de
silenciá-la e, portanto, uma brutal afirmação de imortalidade para aquele que a
nega.
Não se trata de uma mera fratura política. Como imaginava Freud na defesa de sua desejada civilização, ela só poderia se impor por meio de um longo período de incidência de uma cultura e dos meios de apresentar-se forte o suficiente diante das pulsões primordiais. Mas aquilo que se impõe como civilização, já nos alertava Walter Benjamin, pode se apresentar como barbárie. Uma relação entre seres humanos que se apresenta como uma fantasmagórica relação entre coisas, seres humanos reificados e coisas fetichizadas.
Uma sociabilidade em que própria vida
não é mais que um meio de vida, em que os outros se degradam em meros meios de
realização individual a serem usados e descartados. Não nos surpreende,
portanto, que os “milhares e laços” que se obliteram sob o manto mercantil das
coisas acabem por fazer com que os outros não tenham um grande significado para
muitos e suas morte não os toquem de forma alguma como uma perda.
A pandemia, diferentemente da guerra, parece eliminar os traços incômodos da intencionalidade, da defesa dos sagrados interesses mundiais, da defesa da civilização ou dos direitos de certos povos se afirmarem como direção da humanidade. Na sua objetividade viral ela se espalha e mata, depois se espalha e volta a matar novamente. A racionalização possível é a conhecida casualidade incontrolável, natural e inevitável. O outro que morre é um ser descartável, não por ser o inimigo propriamente dito, mas por não ser aquele que se julga imortal. No início na pandemia da aids muitos a julgavam como um castigo que eliminaria os homossexuais, da mesma forma um rabino ortodoxo afirmou que a atual epidemia era a espada sagrada eliminando os pecadores até ser ceifado por ela.
Não nos esqueçamos da “cegueira lógica” e das extraordinárias vantagens
que a mentira proporciona na luta contra os outros. Nesse registro se inclui o
“vírus chinês”, os remédios milagrosos, a relativização da doença
(“gripezinha”, “resfriadinho”), a negação do isolamento, o combate ao uso de
máscaras e outras manifestações de irracionalidade (“E daí?”, “É a vida…”)
Mais de três milhões
de casos e mais de cem mil mortes. Do meu ser são arrancados milhares de
rostos, minhas mãos se tornam invisíveis diante de meus olhos e a noite é
tomada por um rio de murmúrios que escapam dos corpos sem vida quando deito em
minha cama. Hoje morreu uma pessoa que eu não conhecia, que nunca conhecerei e
isso abre em mim um abismo que nem todas as palavras do mundo podem preencher.
A indiferença e a negação me apunhalam como uma segunda morte que segue as milhares
de mortes e fico com a clara impressão de que a senhora que cobre seu esqueleto
com um manto escuro e segura a foice afiada em suas mãos levou muitas pessoas
que já não estavam vivas.
Não é a vida que
segue, é a morte que segue em seu macabro trabalho ajudada pelas hordas
daqueles que a amam mais do que a vida. Lutemos para que os arqueólogos do
futuro, quando escavarem os restos de nossa civilização não encontrem como
nossa principal realização a indiferença.
Mauro Iasi
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê
Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da
consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o
Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição
marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
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