domingo, 19 de julho de 2020

Concessões aos EUA, risco para quilombolas, promessa de empregos: O que envolve a expansão de Alcântara

Debora Álvares

HuffPost Brasil

Centro de Lançamento de Alcântara foi inaugurado em 1983, mas governo diz que ele representa apenas duas das quatro fases da criação do Centro Espacial Brasileiro. (Photo: Divulgação AEB)

Com suas construções antigas, Alcântara, no norte do Maranhão, está no centro de uma batalha política, comercial e espacial. Um acordo de salvaguarda assinado pelo presidente Jair Bolsonaro com os EUA em 2019 garante aos norte-americanos lançamentos em solo brasileiro sem prever, contudo, o compartilhamento de tecnologia. O governo brasileiro afirma que, em contrapartida, será beneficiado com a ampliação dos negócios e atração de investidores, o que influenciaria diretamente o comércio e turismo da região vizinha a São Luís.  

Há várias divergências sobre o acordo, que passam pela discussão entre soberania nacional e mercado. Trechos do documento destacam que as empresas poderão proibir autoridades brasileiras de acessar locais em que haja tecnologia americana em operação – mais de 80% das empresas do setor aeroespacial utiliza inteligência dos EUA em seus equipamentos.

Para o líder da oposição na Câmara, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), os principais pontos que prejudicariam os interesses nacionais são justamente o controle dos Estados Unidos sobre o acesso a áreas restritas e a não transferência de tecnologia. “Não haverá transferência de tecnologia. O Brasil abdica de seu programa espacial. Não se paga aluguel pela base, só se paga por lançamento”, afirmou.

O governo brasileiro rebate as críticas afirmando que o mundo todo implementa acordo de salvaguarda em negociações deste porte. 

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O AST (Acordo de Salvaguardas Tecnológicas) de Alcântara foi aprovado no Senado em novembro, e um grupo que reúne 13 ministérios trabalha para sua implementação. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso, o Executivo tentava tirar o acordo do papel. Na ocasião, o Congresso rejeitou as tratativas –Jair Bolsonaro, à época deputado federal, votou contra, inclusive–, sob o mesmo argumento de ferir a soberania nacional.

A diferença é que o texto da época criava uma área totalmente sigilosa para pesquisadores americanos. O acordo desta vez também destaca com veemência os “fins pacíficos” do uso da base – ou seja, a impossibilidade para fins militares. 

A implementação do acordo, no entanto, envolve outra polêmica, com impacto sobre os direitos dos povos originários da terra, os quilombolas. 

Datado do século XVII, o município de Alcântara, separado de São Luís pela Baía de São Marco, abriga uma das maiores comunidades de quilombos do País – são 3.350 famílias em mais de 78 mil hectares, de acordo com dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

A história que é passada entre gerações é que Ismendia, uma escrava do Engenho Gerijó, no interior do estado, fugiu e se abrigou em uma comunidade onde havia apenas três casas. Ela teria “batizado” o local com o nome de Samucangaua, “terra de Santo”. Esse é um dos quilombos mais antigos da região, com mais de 400 anos. Negros que fugiam mata adentro foram fundando os povoados – Alcântara tem 156 quilombos ao todo.

Samucangaua não está no centro da polêmica atual. Não completamente, já que não consta na lista do que precisará ser removido, nos planos do governo, para uma ampliação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) ou para implantação do Centro Espacial de Alcântara (CEA). 

O quilombo já sofre, contudo, os impactos da instalação da base, que ocorreu na década de 80, assim como as demais comunidades próximas. 

O centro ocupa atualmente uma área de cerca de 8.000 hectares. Contudo, o governo afirma que, nos anos 80, quando foi construído – o prédio central foi inaugurado em 1983 –, a intenção era trabalhar em quatro fases e ocupar um território total de 12 mil hectares para instalar o Centro Espacial de Alcântara (incialmente eram 52 mil hectares, mas uma longa batalha judicial reduziu este tamanho). 

Ampliação do centro de lançamento e o impacto local

São duas as fases que restam para transformar Alcântara em um centro espacial, e é neste ponto que reside a divergência atual. 

Para fazer o que a população local chama de ampliação do CLA – o governo diz ser apenas a implementação da proposta original –, mais de 700 famílias serão afetadas. A ideia é repetir os reassentamentos que se deram na década de 80. O mesmo processo. 

Para uns, a movimentação é muito positiva. Para outros, nem tanto. Para quem está prestes a perder sua casa ou pode ter que dividir o espaço com os “irmãos quilombos” das comunidades reassentadas, a perspectiva é trágica. Mas há quem esteja ansioso por isso, vendo no centro espacial uma oportunidade de trabalho. 

O HuffPost esteve em Alcântara. Ouviu relatos de quem se viu obrigado a reconstruir a vida após ver sua casa ficar pequena no horizonte e precisar reaprender a plantar em nova terra. Escutou jovens que não querem deixar suas casas e a vida de acordar cedo, roçar e pescar, e dormir com o pôr do sol. 

“Estamos plantados aqui, enraizados. Eles falam em indenizações. Vai dar dinheiro pra pobre? Vamos fazer o que com o dinheiro? O pobre fica feliz em ter o pé de laranja”, disse à reportagem Marilene Gonçalves Nogueira, de 37 anos, moradora do quilombo Canelatiua.

Foram três dias andando por estradas e ruas esburacadas a caminho dos quilombos, que ficam na zona rural. Na cidade, que é tombada e, por isso, não pode ser asfaltada – há ruas com pedras e paralelepípedos, mas a maioria é de terra batida –, a reportagem conversou com comerciantes e moradores para entender a sua expectativa. Uma parte aguarda e geração de empregos, como promete o governo. 

Dono da Panificadora Silva, localizada na rua principal de Alcântara, Valdeci Alves da Silva, o Maguim, está há 12 anos aguardando a chegada de mais gente na cidade “como foi prometido com a chegada da base” – e já planeja reformas. “Eles dizem que vão fazer hoteis, que vai ter turista, mais movimento. Vamos ter que ampliar, melhorar a qualidade, quem sabe até contratar mais gente. Vai ser muito bom pra cidade”, diz.

 

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Centro de lançamento visto do alto: próximo à praia de Alcântara, sem moradias por perto. (Photo: Divulgação AEB)

O que Alcântara tem de especial? 

“Se não for em Alcântara, vamos para o Amapá”. O HuffPost ouviu essa frase do brigadeiro do ar Rogério Veríssimo duas vezes: a primeira, em novembro de 2019, a outra, em julho de 2020. Ele já dirigiu o CLA na década de 80, no primeiro processo de reassentamento, e hoje coordena o grupo responsável pela implementação do centro espacial na região, que ficou conhecido como G13.

Após falar em deixar Alcântara, ele se recompõe e complementa: “Lá já temos toda uma estrutura. Seria um desperdício de dinheiro, tempo, esforço. Mas se a população não quiser o desenvolvimento que temos a oferecer, podemos ir para outro lugar. Condições para isso há em outras regiões”. 

A afirmação do coordenador do G13 se deu, em ambas as vezes, após questionamentos sobre o andamento das negociações do governo com os quilombolas.

Segundo Veríssimo, a baixa densidade populacional foi um dos fatores que fizeram Alcântara ser eleita para a construção do centro de lançamento na década de 80. 

Um ponto extremamente favorável e já conhecido de Alcântara é a economia de combustível nos lançamentos. Por estar próximo à linha do Equador, o centro proporciona um gasto que pode ser cerca de 30% menor, a depender do ângulo de lançamento.

Há, no entanto, outras bases no mundo com as mesmas condições, como a vizinha Kourou, na Guiana Francesa. O centro espacial, contudo, está em posse da Europa e não é utilizado pelos EUA. Além disso, segundo o presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), Carlos Moura, Kourou fica localizada “no meio da floresta”. 

O interesse dos Estados Unidos em Alcântara, contudo, vai além de economizar combustível e se deve às mudanças no mercado aeroespacial mundial. Segundo Moura, hoje em dia o investimento é em satélites de menor porte, os nano – esse será o foco inicial do CLA, o lançamento de pequenos satélites, de até 200 kg, que operem em órbita baixa a média, em torno de 600 km de altitude. “Uma série de aplicações que antes precisava de satélites grandes, hoje se consegue com menores”, explica. 

Desde o início das tratativas com os EUA no ano passado, o Brasil vinha conversando com a SpaceX e Boeing. Esta última, inclusive, já apresentou, conforme apuração do HuffPost, intenção de lançar ao menos quatro satélites a partir de Alcântara. O governo afirma que o uso comercial da base, com aluguel para lançamento de satélites, pode render até US$ 10 bilhões (cerca de R$ 53,5 bilhões) por ano. 

Moura ressalta que as bases norte-americanas, como as famosas estações da Califórnia ou de Oklahoma, estão preparadas para lançar foguetes de grande porte e tripulados, e há um nicho do mercado de olho nisso. “Nós também queremos nos preparar para isso com as terceira e quarta etapas do Centro Espacial de Alcântara”, destacou. 

Para ele, porém, misturar grandes lançamentos com pequenos pode complicar o processo, e vem daí o grande interesse de empresas norte-americanas em Alcântara: ”É como uma estrada movimentada com carros e caminhões e vem uma motinho. Atrapalha o fluxo.”

Para Veríssimo e Moura, Alcântara é um “conjunto”. Ambos destacam como um ponto que pesa muito a favor da base a localização à beira-mar, em local com pouco fluxo de barcos e voos. Segundo eles, isso reforça aspectos de segurança, uma vez que, após lançados os foguetes, não há risco de as peças caírem sobre casas ou ilhas, nem sobre embarcações. 

“Os centros de lançamento envolvem veículos carregados com muita energia e velocidade, com operações em que se tem um nível de risco elevado. Tem que ser em terra favorável, não pode ter construções por perto, mesmo depois do sobrevoo. O fato de ser à beira-mar, não ter ilhas e ser em rota de baixa densidade de embarcações coloca o CLA como altamente competitivo”, diz Moura. 

O brigadeiro ressalta também a estabilidade geológica. “Não houve abalos sísmicos nos últimos 500 anos na região, além de não haver vulcões. Quando você olha toda a obra, a economia de combustível é o menos importante.” 

 

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Um lançamento-teste foi realizado em 25 de junho do Centro de Lançamento de Alcântara. Ao menos um é feito por semestre. (Photo: Divulgação AEB)

Detalhes do acordo de salvaguardas tecnológicas

O acordo de salvaguardas tecnológicas com os EUA foi aprovado pelo Congresso em 12 de novembro de 2019 e promulgado em fevereiro deste ano. Logo no primeiro artigo, há destaque para os objetivos: “Evitar o acesso ou a transferência não autorizados de tecnologias relacionadas com o lançamento (...) de veículos de lançamento dos Estados Unidos e de espaçonaves dos Estados Unidos, do Brasil ou estrangeiras, por meio de veículos de lançamento (...)  que incluam ou transportem qualquer equipamento que tenha sido autorizado para exportação pelo governo dos Estados Unidos.”

Uma das críticas de oposicionistas é quanto à impossibilidade de o Brasil acessar a tecnologia dos Estados Unidos. “Assegurar que nenhum representante brasileiro se aproprie de quaisquer equipamentos ou tecnologias sendo importados para dar suporte a atividades de lançamento”, diz trecho do documento. Isso é frisado de outras formas em vários pontos do texto. 

À época da tramitação na Câmara, deputados falaram ainda em riscos para a soberania nacional. No artigo VI, que trata dos “controles de acesso”, o documento afirma que o Brasil deve permitir que servidores dos EUA no CLA “que estejam ligados a atividades de lançamento tenham livre acesso, a qualquer tempo, para inspecionar”, nas áreas restritas os equipamentos “sem sejam fornecidos por licenciados norte-americanos a representantes brasileiros” quaisquer informações. 

Ao votar no plenário, em 22 de outubro, o deputado petista Arlindo Chinaglia (SP) destacou que as exigências para o Brasil são muitas e nenhuma para os EUA. Para ele, entre os pontos que ferem a soberania nacional está a proibição de cooperar com países que não sejam membros do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, conhecido por MTCR. “A China não é membro. Imaginem que a China daqui a pouco será a maior economia mundial e nós não podemos fazer acordo diferente com a China”, afirmou.

Para Rogério Veríssimo, o acordo de salvaguardas é necessário para desenvolver a indústria espacial no País e “só serve para proteger a tecnologia”. Ele exemplificou: “Se eu tenho um foguete japonês para ser lançado daqui que usa tecnologia americana, então tenho que ter um acordo com os EUA para poder lançar o japonês. Mas vamos supor que seja todo japonês [o foguete]. Ai traz para cá. Mas e o satélite? Americano. Tenho que ter o acordo do mesmo jeito.”

Em audiência pública na Câmara em agosto do ano passado, o tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Júnior, que representou o Ministério da Defesa, rechaçou as críticas sobre impactos à soberania. 

“Não estamos falando sobre acordo comercial. É de salvaguarda. É possível que, no futuro, um outro país nos exija um acordo de salvaguarda para tecnologia deles. Só há acordo vinculante quando se utilizar tecnologia norte-americana. No caso de outros países que vão fazer comércio conosco, se não estivermos falando de tecnologia norte-americana, não há o que se falar neste acordo aqui”, declarou.

O acordo desobriga os EUA de informar sobre inspeções, ao contrário do que prevê ao Brasil. Os brasileiros não poderão “em nenhuma hipótese” ter acesso a áreas restritas ou controladas enquanto veículos de lançamento, espaçonaves ou equipamentos afins estiverem sendo montados e tampouco desmontados. Além disso, o abastecimento somente poderá ser feito por norte-americanos. 

Em defesa do acordo, um documento produzido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia assinado pelo ministro Marcos Pontes afirma que “toda a região adjacente ao Centro Espacial será beneficiada pelo incremento imediato do desenvolvimento social e econômico, que refletirá na geração de empregos, criação de novas empresas e ampliação do empreendedorismo e negócios de base local”.

O texto fala em “uso comercial” do CLA e estima que, em mais de três décadas de desuso, o Brasil perdeu mais de R$ 15 bilhões . “O benefício do Brasil nesse acordo é potencializar o uso comercial do Centro Espacial de Alcântara. Em 20 anos, estima-se que, devido à não aprovação do AST, o Brasil perdeu aproximadamente US$ 3,9 bilhões (cerca de R$ 15 bilhões) em receitas de lançamentos não realizados, considerando-se apenas 5% dos lançamentos ocorridos no mundo neste período, além de não desenvolver o potencial tecnológico e de turismo regional”, afirma o documento do Ministério da Ciência e Tecnologia. 

Após a aprovação e promulgação do texto, apesar da pandemia do coronavírus, o governo não paralisou as operações. Pelo contrário: corre para que, em 2021, já haja empresas usando a estrutura atual do Centro de Lançamento de Alcântara. 

A AEB lançou no fim de maio um edital para atrair empresas interessadas em lançar a partir de lá. Segundo o presidente da agência, Carlos Moura, já são seis os interessados - sob contrato de confidencialidade -, mas o resultado só será divulgado após finalizadas as propostas, que podem ser feitas até o fim de julho.

Também houve um lançamento-teste no dia 25 de junho do foguete de treinamento básico para averiguar o funcionamento dos equipamentos do CLA. De acordo com Veríssimo, isso ocorre a cada seis meses para conferir os equipamentos. A ideia é manter o centro em funcionamento até solucionar a questão quilombola. 

Colaborou Antonio Azevedo, especial para o HuffPost em Alcântara.

EM TEMPO: O que se sabe é que no governo do ex-presidente Lula, nossa soberania não estava sendo afetada como está sendo agora no governo do entreguista Bolsonaro.  O certo é o Congresso se posicionar  contra o acordo, uma vez que coloca em risco nossa soberania e será muito difícil que os EUA devolva, no futuro, à Base Militar de Alcântara no Maranhão para o Brasil.  O acordo é uma "caixa preta" e impede a inspeção do Brasil. É claro que os EUA tem fins militares nesse  acordo. Agora durma com essa bomba. 

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