Centro de Lançamento de Alcântara foi inaugurado em 1983, mas governo diz que ele representa apenas duas das quatro fases da criação do Centro Espacial Brasileiro. (Photo: Divulgação AEB)
Com suas construções antigas, Alcântara, no norte do
Maranhão, está no centro de uma batalha política, comercial e espacial. Um
acordo de salvaguarda assinado pelo presidente Jair Bolsonaro com os EUA em 2019 garante aos
norte-americanos lançamentos em solo brasileiro sem prever, contudo, o
compartilhamento de tecnologia. O governo brasileiro afirma que, em
contrapartida, será beneficiado com a ampliação dos negócios e atração de
investidores, o que influenciaria diretamente o comércio e turismo da região
vizinha a São Luís.
Há várias divergências sobre o
acordo, que passam pela discussão entre soberania nacional e mercado. Trechos
do documento destacam que as empresas poderão proibir autoridades brasileiras
de acessar locais em que haja tecnologia americana em operação – mais de 80%
das empresas do setor aeroespacial utiliza inteligência dos EUA em seus
equipamentos.
Para o líder da oposição na Câmara,
deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), os principais pontos que prejudicariam os
interesses nacionais são justamente o controle dos Estados Unidos sobre o
acesso a áreas restritas e a não transferência de tecnologia. “Não haverá
transferência de tecnologia. O Brasil abdica de seu programa espacial. Não se
paga aluguel pela base, só se paga por lançamento”, afirmou.
O governo brasileiro rebate as
críticas afirmando que o mundo todo implementa acordo de salvaguarda em
negociações deste porte.
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O AST (Acordo de Salvaguardas
Tecnológicas) de Alcântara foi aprovado no Senado
em novembro, e um grupo que
reúne 13 ministérios trabalha para sua implementação. Desde o governo Fernando
Henrique Cardoso, o Executivo tentava tirar o acordo do papel. Na ocasião, o
Congresso rejeitou as tratativas –Jair Bolsonaro, à época deputado federal,
votou contra, inclusive–, sob o mesmo argumento de ferir a soberania nacional.
A diferença é que o texto da época
criava uma área totalmente sigilosa para pesquisadores americanos. O
acordo desta vez também destaca com veemência os “fins pacíficos” do uso da
base – ou seja, a impossibilidade para fins militares.
A implementação do acordo, no
entanto, envolve outra polêmica, com impacto sobre os direitos dos povos
originários da terra, os quilombolas.
Datado do século XVII, o município de
Alcântara, separado de São Luís pela Baía de São Marco, abriga uma das maiores
comunidades de quilombos do País – são 3.350 famílias em mais de 78 mil
hectares, de acordo com dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária).
A história que é passada entre
gerações é que Ismendia, uma escrava do Engenho Gerijó, no interior do estado,
fugiu e se abrigou em uma comunidade onde havia apenas três casas. Ela teria
“batizado” o local com o nome de Samucangaua, “terra de Santo”. Esse é um dos
quilombos mais antigos da região, com mais de 400 anos. Negros que fugiam mata
adentro foram fundando os povoados – Alcântara tem 156 quilombos ao todo.
Samucangaua não está no centro da
polêmica atual. Não completamente, já que não consta na lista do que precisará
ser removido, nos planos do governo, para uma ampliação do Centro de Lançamento
de Alcântara (CLA) ou para implantação do Centro Espacial de Alcântara
(CEA).
O quilombo já sofre, contudo, os
impactos da instalação da base, que ocorreu na década de 80, assim como as
demais comunidades próximas.
O centro ocupa atualmente uma área de
cerca de 8.000 hectares. Contudo, o governo afirma que, nos anos 80, quando foi
construído – o prédio central foi inaugurado em 1983 –, a intenção era
trabalhar em quatro fases e ocupar um território total de 12 mil hectares para
instalar o Centro Espacial de Alcântara (incialmente eram 52 mil hectares, mas
uma longa batalha judicial reduziu este tamanho).
Ampliação do centro
de lançamento e o impacto local
São duas as fases que restam para
transformar Alcântara em um centro espacial, e é neste ponto que reside a
divergência atual.
Para fazer o que a população local
chama de ampliação do CLA – o governo diz ser apenas a implementação da
proposta original –, mais de 700 famílias
serão afetadas. A ideia é repetir
os reassentamentos que se deram na década de 80. O mesmo processo.
Para uns, a movimentação é muito
positiva. Para outros, nem tanto. Para quem está prestes a perder sua casa ou
pode ter que dividir o espaço com os “irmãos quilombos” das comunidades
reassentadas, a perspectiva é trágica. Mas há quem esteja ansioso por isso,
vendo no centro espacial uma oportunidade de trabalho.
O HuffPost esteve em Alcântara. Ouviu
relatos de quem se viu obrigado a reconstruir a vida após ver sua casa ficar
pequena no horizonte e precisar reaprender a plantar em nova terra. Escutou
jovens que não querem deixar suas casas e a vida de acordar cedo, roçar e
pescar, e dormir com o pôr do sol.
“Estamos plantados aqui, enraizados.
Eles falam em indenizações. Vai dar dinheiro pra pobre? Vamos fazer o que com o
dinheiro? O pobre fica feliz em ter o pé de laranja”, disse à reportagem
Marilene Gonçalves Nogueira, de 37 anos, moradora do quilombo Canelatiua.
Foram três dias andando por estradas
e ruas esburacadas a caminho dos quilombos, que ficam na zona rural. Na cidade,
que é tombada e, por isso, não pode ser asfaltada – há ruas com pedras e
paralelepípedos, mas a maioria é de terra batida –, a reportagem conversou com
comerciantes e moradores para entender a sua expectativa. Uma parte
aguarda e geração de empregos, como promete o governo.
Dono da Panificadora Silva,
localizada na rua principal de Alcântara, Valdeci Alves da Silva, o Maguim,
está há 12 anos aguardando a chegada de mais gente na cidade “como foi
prometido com a chegada da base” – e já planeja reformas. “Eles dizem que
vão fazer hoteis, que vai ter turista, mais movimento. Vamos ter que ampliar,
melhorar a qualidade, quem sabe até contratar mais gente. Vai ser muito bom pra
cidade”, diz.
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Centro de
lançamento visto do alto: próximo à praia de Alcântara, sem moradias por perto.
(Photo: Divulgação AEB)
O que Alcântara tem
de especial?
“Se não for em Alcântara, vamos para
o Amapá”. O HuffPost ouviu essa frase do brigadeiro do ar Rogério Veríssimo
duas vezes: a primeira, em novembro de 2019, a outra, em julho de 2020. Ele já
dirigiu o CLA na década de 80, no primeiro processo de reassentamento, e hoje
coordena o grupo responsável pela implementação do centro espacial na região,
que ficou conhecido como G13.
Após falar em deixar Alcântara, ele
se recompõe e complementa: “Lá já temos toda uma estrutura. Seria um
desperdício de dinheiro, tempo, esforço. Mas se a população não quiser o
desenvolvimento que temos a oferecer, podemos ir para outro lugar. Condições
para isso há em outras regiões”.
A afirmação do coordenador do G13 se
deu, em ambas as vezes, após questionamentos sobre o andamento das negociações
do governo com os quilombolas.
Segundo Veríssimo, a baixa densidade
populacional foi um dos fatores que fizeram Alcântara ser eleita para a
construção do centro de lançamento na década de 80.
Um ponto extremamente favorável e já
conhecido de Alcântara é a economia de combustível nos lançamentos. Por estar
próximo à linha do Equador, o centro proporciona um gasto que pode ser cerca de
30% menor, a depender do ângulo de lançamento.
Há, no entanto, outras bases no mundo com as mesmas condições, como a vizinha
Kourou, na Guiana Francesa. O centro espacial, contudo, está em posse da Europa
e não é utilizado pelos EUA. Além disso, segundo o presidente da Agência
Espacial Brasileira (AEB), Carlos Moura, Kourou fica localizada “no meio da
floresta”.
O interesse dos Estados Unidos em
Alcântara, contudo, vai além de economizar combustível e se deve às mudanças no
mercado aeroespacial mundial. Segundo Moura, hoje em dia o investimento é em
satélites de menor porte, os nano – esse será o foco inicial do CLA, o
lançamento de pequenos satélites, de até 200 kg, que operem em órbita baixa a
média, em torno de 600 km de altitude. “Uma série de aplicações que antes
precisava de satélites grandes, hoje se consegue com menores”, explica.
Desde o início das tratativas com os
EUA no ano passado, o Brasil vinha conversando com a SpaceX e Boeing. Esta
última, inclusive, já apresentou, conforme apuração do HuffPost, intenção de
lançar ao menos quatro satélites a partir de Alcântara. O governo afirma
que o uso comercial da base, com aluguel para lançamento de satélites, pode
render até US$ 10 bilhões (cerca de R$ 53,5 bilhões) por ano.
Moura ressalta que as bases
norte-americanas, como as famosas estações da Califórnia ou de Oklahoma, estão preparadas
para lançar foguetes de grande porte e tripulados, e há um nicho do mercado de
olho nisso. “Nós também queremos nos preparar para isso com as terceira e
quarta etapas do Centro Espacial de Alcântara”, destacou.
Para ele, porém, misturar grandes
lançamentos com pequenos pode complicar o processo, e vem daí o grande
interesse de empresas norte-americanas em Alcântara: ”É como uma estrada
movimentada com carros e caminhões e vem uma motinho. Atrapalha o fluxo.”
Para Veríssimo e Moura, Alcântara é um
“conjunto”. Ambos destacam como um ponto que pesa muito a favor da base a
localização à beira-mar, em local com pouco fluxo de barcos e voos. Segundo
eles, isso reforça aspectos de segurança, uma vez que, após lançados os
foguetes, não há risco de as peças caírem sobre casas ou ilhas, nem sobre
embarcações.
“Os centros de lançamento envolvem
veículos carregados com muita energia e velocidade, com operações em que se tem
um nível de risco elevado. Tem que ser em terra favorável, não pode ter
construções por perto, mesmo depois do sobrevoo. O fato de ser à beira-mar, não
ter ilhas e ser em rota de baixa densidade de embarcações coloca o CLA como
altamente competitivo”, diz Moura.
O brigadeiro ressalta também a
estabilidade geológica. “Não houve abalos sísmicos nos últimos 500 anos na
região, além de não haver vulcões. Quando você olha toda a obra, a economia de
combustível é o menos importante.”
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Um lançamento-teste
foi realizado em 25 de junho do Centro de Lançamento de Alcântara. Ao menos um
é feito por semestre. (Photo: Divulgação AEB)
Detalhes do acordo de salvaguardas tecnológicas
O acordo de salvaguardas tecnológicas
com os EUA foi aprovado pelo Congresso em 12 de novembro de 2019 e promulgado
em fevereiro deste ano. Logo no primeiro artigo, há destaque para os objetivos:
“Evitar o acesso ou a transferência não autorizados de tecnologias relacionadas
com o lançamento (...) de veículos de lançamento dos Estados Unidos e de
espaçonaves dos Estados Unidos, do Brasil ou estrangeiras, por meio de
veículos de lançamento (...) que incluam ou transportem qualquer
equipamento que tenha sido autorizado para exportação pelo governo dos
Estados Unidos.”
Uma das críticas de oposicionistas é
quanto à impossibilidade de o Brasil acessar a tecnologia dos Estados Unidos.
“Assegurar que nenhum representante brasileiro se aproprie de quaisquer
equipamentos ou tecnologias sendo importados para dar suporte a atividades de
lançamento”, diz trecho do documento. Isso é frisado de outras formas em vários
pontos do texto.
À época da tramitação na Câmara,
deputados falaram ainda em riscos para a soberania nacional. No artigo VI, que
trata dos “controles de acesso”, o documento afirma que o Brasil deve permitir
que servidores dos EUA no CLA “que estejam ligados a atividades de lançamento
tenham livre acesso, a qualquer tempo, para inspecionar”, nas áreas restritas
os equipamentos “sem sejam fornecidos por licenciados norte-americanos a
representantes brasileiros” quaisquer informações.
Ao votar no plenário, em 22 de
outubro, o deputado petista Arlindo Chinaglia (SP) destacou que as exigências
para o Brasil são muitas e nenhuma para os EUA. Para ele, entre os pontos que
ferem a soberania nacional está a proibição de cooperar com países que não
sejam membros do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, conhecido por
MTCR. “A China não é membro. Imaginem que a China daqui a pouco será a maior
economia mundial e nós não podemos fazer acordo diferente com a China”,
afirmou.
Para Rogério Veríssimo, o acordo de
salvaguardas é necessário para desenvolver a indústria espacial no País e “só
serve para proteger a tecnologia”. Ele exemplificou: “Se eu tenho um foguete
japonês para ser lançado daqui que usa tecnologia americana, então tenho que
ter um acordo com os EUA para poder lançar o japonês. Mas vamos supor que seja
todo japonês [o foguete]. Ai traz para cá. Mas e o satélite? Americano. Tenho
que ter o acordo do mesmo jeito.”
Em audiência pública na Câmara em
agosto do ano passado, o tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida
Júnior, que representou o
Ministério da Defesa, rechaçou as
críticas sobre impactos à soberania.
“Não estamos falando sobre acordo
comercial. É de salvaguarda. É possível que, no futuro, um outro país nos exija
um acordo de salvaguarda para tecnologia deles. Só há acordo vinculante quando
se utilizar tecnologia norte-americana. No caso de outros países que vão fazer
comércio conosco, se não estivermos falando de tecnologia norte-americana, não
há o que se falar neste acordo aqui”, declarou.
O acordo desobriga os EUA de informar
sobre inspeções, ao contrário do que prevê ao Brasil. Os brasileiros não
poderão “em nenhuma hipótese” ter acesso a áreas restritas ou controladas
enquanto veículos de lançamento, espaçonaves ou equipamentos afins estiverem
sendo montados e tampouco desmontados. Além disso, o abastecimento somente
poderá ser feito por norte-americanos.
Em defesa do acordo, um documento produzido pelo Ministério da Ciência e
Tecnologia assinado pelo ministro Marcos Pontes afirma que “toda a região
adjacente ao Centro Espacial será beneficiada pelo incremento imediato do
desenvolvimento social e econômico, que refletirá na geração de empregos,
criação de novas empresas e ampliação do empreendedorismo e negócios de base
local”.
O texto fala em “uso comercial” do
CLA e estima que, em mais de três décadas de desuso, o Brasil perdeu mais de R$
15 bilhões . “O benefício do Brasil nesse acordo é potencializar o uso
comercial do Centro Espacial de Alcântara. Em 20 anos, estima-se que, devido à
não aprovação do AST, o Brasil perdeu aproximadamente US$ 3,9 bilhões (cerca de
R$ 15 bilhões) em receitas de lançamentos não realizados, considerando-se
apenas 5% dos lançamentos ocorridos no mundo neste período, além de não desenvolver
o potencial tecnológico e de turismo regional”, afirma o documento do
Ministério da Ciência e Tecnologia.
Após a aprovação e promulgação do
texto, apesar da pandemia do coronavírus, o governo não paralisou as operações.
Pelo contrário: corre para que, em 2021, já haja empresas usando a estrutura
atual do Centro de Lançamento de Alcântara.
A AEB lançou no fim de maio um edital para atrair empresas interessadas em lançar a
partir de lá. Segundo o presidente da agência, Carlos Moura, já são seis os
interessados - sob contrato de confidencialidade -, mas o resultado só será
divulgado após finalizadas as propostas, que podem ser feitas até o fim de
julho.
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