ESTADÃO - Vinícius Valfré
BRASÍLIA – Celebridade gospel em João Pessoa, o pastor César Augusto, da Associação Fé Perfeita, aproveitou um culto transmitido pela internet, em 17 de março, para profetizar o fim da pandemia do novo coronavírus. “O que eu vejo é que daqui para frente pessoas que estavam sendo analisadas como suspeitas (de ter covid-19) vão começar a dar negativo”, disse aos seus seguidores. “O diabo pode colocar a viola no saco”, sacramentou. Um dia antes, o País registrava a primeira morte pela doença. De lá para cá, mais de 2 milhões de brasileiros foram infectados e 76 mil morreram.
Ele é um dos líderes evangélicos simpáticos ao presidente Jair Bolsonaro que, nos canais e aplicativos de
mensagens, minimizam a pandemia e divulgam histórias de curas mirabolantes e
prevenções caseiras que têm o poder de tirar o foco de ações efetivas contra a
doença. Um estudo sobre a desinformação no YouTube apontou que uma rede
formada por outros religiosos atingiu, em 47 dias, 11 milhões de visualizações
só em vídeos que citavam o novo coronavírus.
Os conteúdos
incluíam sermões que minimizavam a doença, pregações de teorias conspiratórias,
informações enviesadas e de desqualificação da ciência. O levantamento foi
feito entre 1.º de fevereiro e 17 de março, numa etapa antes das primeiras
mortes. No dia 11 de março, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta,
já anunciava que o Brasil viveria pelo menos “20 semanas duras”.
O dossiê foi
elaborado por pesquisadores do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito
Sanitário (Cepedisa) da USP, do Centro de Análise
da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). “É comum que autoridades não
científicas se valham de suas posições hierárquicas dentro da sua rede (religiosa,
por exemplo) para questionar orientações do sistema de peritos (mídia,
universidades, organizações internacionais, agências especializadas) e
respaldarem teorias conspiratórias”, diz o texto.
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A atuação dos
pastores é protegida pela liberdade religiosa e cumpre papel consolador em
tempos de crise, mas em alguns casos ultrapassa a fronteira da fé, avaliam
especialistas. Em Porto Alegre, um cartaz que ganhou as redes sociais, da
Igreja Catedral Global do Espírito Santo, do pastor Silvio Ribeiro, virou caso
de polícia por prometer um “óleo consagrado para imunizar contra qualquer tipo
de pandemia, vírus ou doença”. O evangélico pediu desculpas. A polícia apura o
crime de charlatanismo.
“É uma questão de
saúde pública. Ninguém está desmerecendo a fé de nenhuma religião. Sabemos que
a fé ajuda as pessoas, mas a saúde e a medicina devem prevalecer”, afirmou a
delegada gaúcha Laura Rodrigues Lopes.
Diante das
recomendações de isolamento social, o pastor Renê Terra Nova, do Ministério
Internacional da Restauração, de Manaus, atuou contra o recolhimento e foi às
ruas engrossar manifestações de apoio a Bolsonaro. Ele defendeu que, neste tempo
de pandemia, os fiéis deviam procurar os templos. Em junho, Terra Nova integrou
um grupo de pastores que viajou a Brasília para encontro com o presidente.
Distorção e ‘terrorismo emocional’
Com mais de um
milhão de inscritos em seu canal no YouTube, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, é
mencionado pelos pesquisadores como um líder religioso que disseminou
informações distorcidas. Em um vídeo visto mais de 500 mil vezes, o aliado de
Bolsonaro cita nota da Sociedade Brasileira de Infectologia para corroborar seu
ponto de vista, segundo o qual apenas cidades com mais de mil casos confirmados
da doença deveriam ser submetidas a isolamento social. Para ele, há “terrorismo
emocional” nos alertas sobre a doença e os evangélicos precisam usar a “arma”
do “poder da oração e da fé”.
Contudo, Malafaia
recorre, segundo os pesquisadores, a um “uso seletivo” da ciência ao ignorar
que a mesma nota fazia recomendação contrária à cloroquina, droga propagandeada
por governistas, e alertava para o fato de 15% dos casos da doença evoluírem
para um patamar de gravidade. Ao Estadão,
Malafaia rechaçou seletividade e imperícia em seus pronunciamentos.
“A ciência não
disse assim: ‘A doença vem por aqui e para combater é assim’. Doutores, PhDs,
dizem ‘quarentena funciona, não funciona, cloroquina funciona, não funciona’. A
bagunça não vem das autoridades. Vem da própria ciência”, disse.
O canal de
inspiração católica do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, com vídeos que
passam de 150 mil acessos, sugere que o vírus seria um grande laboratório
social no qual a humanidade foi propositalmente metida. “Esse canal hoje vai
mostrar (...) uma verdadeira manobra de engenharia social, de guerra
psicológica, revolucionária”, afirma, no vídeo, Frederico Viotti. À reportagem,
ele disse que todas as opiniões que emite são “fundamentadas em estudos”,
embora o canal “não tenha viés acadêmico”. Ele atribuiu a citação no estudo a
“nítida perseguição ao pensamento conservador”.
A minimização da
pandemia não é unânime entre evangélicos. Pastor em São José dos Campos,
Franklin Ferreira dirige um seminário que forma religiosos e preside a Coalizão
pelo Evangelho, cujo conselho é formado por 18 representantes de diferentes
igrejas. Ele suspendeu suas atividades presenciais em 14 de março. “A Bíblia
ensina que a prudência é filha da sabedoria. Isso significa que a postura do
cristão não é norteada por credulidade ou incredulidade, arrogância ou
desprezo. Diante de um discernimento cuidadoso da realidade e das vítimas da
pandemia, o cristão é chamado a atuar com maturidade, habilidade e bom
julgamento”, disse.
‘Profecias’ são sucesso de audiência
Vídeos em que
líderes religiosos falam de catástrofes são sucessos de audiência. Publicado em
18 de março, o vídeo Deus avisou, profecia para 2020, produção com
o pastor Gilmar Fiuza, da União de Mocidades da Assembleia de Deus de Brasília,
tem 800 mil visualizações. Com orações que conjugam palavras incompreensíveis,
pulos e olhos fechados, ele e a pastora Carla Teixeira transmitem o que seria
uma mensagem divina: “Estou revestindo meu povo porque será um ano de
dificuldade, mas o meu espírito vai fortalecer a minha Igreja”.
Fiuza mandou dizer
que não se manifestaria. Silvio Ribeiro não foi localizado. Renê Terra Nova foi
acionado por meio de telefone e e-mail que exibe em suas páginas, mas não houve
retorno. O Palácio do Planalto não comentou a atuação de pastores. O pastor
César Augusto afirmou que sempre seguiu orientações sanitárias e explicou que
ao sacramentar a “derrota do demônio”, em março, preocupava-se com a “saúde
mental” dos fiéis num momento em que “informações desencontradas” e “pânico” bombardeavam
os lares.
EM TEMPO: Povo sem cultura só serve de massa de manobra. Agora durmam com essa bronca, mas usem máscaras e mantenham o distanciamento social.
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