Um
ato de racismo extremo destampa a panela de pressão, reúne milhões contra Trump
e põe em xeque a ultradireita. Protestos alastram-se pelo mundo – mas a
resposta é crua e brutal. Nada está decidido. Dias decisivos vêm aí
OUTRAS PALAVRAS
Publicado 01/06/2020
Por William
River Pitt, no Truthout|
Tradução: Antonio Martins
Nunca houve um fim de semana, nos Estados Unidos,
como estes que acabamos de viver.
Muitas comparações com o momento atual foram feitas
– com a fúria que emergiu em 1968,
após o assassinato de Martin Luther King Jr e com os Dias de Raiva,
o levante civil contra a guerra do Vietnã que tomou Chicago em 1969.
Alguns lembram que
o “Verão vermelho” de 1919 é uma possível comparação, pois uma onda de
violência racista varreu o país, que se debatia com a devastação da pandemia de
gripe “espanhola”
Porém, nada na História corresponde com exatidão
aos eventos dos últimos dias. Uma epidemia letal que ainda começa destroçou as
ilusões de força que este país nutriu, durante décadas, para encobrir suas
misérias evidentes. Estas mesmas misérias permitiram a emergência de um
pretendente a tirano, um governante que se enfurece contra a extinção de sua
frágil luz, enquanto se esconde,
no bunker da Casa Branca, das consequências de suas própria negligência.
Graças ao advento da era das mídias sociais, quase
tudo isso foi gravado e difundido amplamente. A violência de um Estado policial
do supremacismo branco, uma verdade construída por séculos, foi explosiva
novamente. Desta vez, não houve uma volta ao antigo normal – como era sempre
comum –, nem um desaparecimento progressivo dos fatos, no oceano de notícias
banais. Desta vez, tudo está nas ruas, com punhos e vozes erguidas, e sem
conclusão à vista.
George Floyd morreu sob o joelho de um policial
cujo histórico de violência era notório. Uma garota de 17 anos registrou o
assassinato em vídeo e, em seguida, o mundo todo assistia. Como disse o ator
Will Smith num programa de TV, em 2016, “o racismo não está piorando – ele está
sendo filmado”.
Em Minneapolis, Louisville, Washington, Nova York,
Boston, Chicago, Atlanta, Birminghan, Sioux Falls, Sacramento, Oklahora,
Cleveland, Murfresboro, Longo Beach, Detroit, Denver, Philadelphia, Seattle,
Dallas, Milwaukee e muitas, muitas outras cidades dos EUA, a população se
leventou. Mais de 40 cidades assistiram a protestos pacíficos e a levantes
selvagens, em igual medida.
As vitrines despedaçadas e o fogo atraem, é claro, a
maior parte da atenção da mídia, o que despertou a ira daqueles que querem nos
distrair das razões pelas quais os levantes começaram. Há evidências
crescentes de que certos grupos, na extrema direita, estão
tentando usar um pouco do caos em favor de seus próprios fins, assim como
buscam atingir comunidades negras e atiçar uma guerra civil racial.
Muito da atenção da mídia está sendo desviado para
os “saques”. Imagens de cidadãos de todas as origens raciais levando comida,
produtos de beleza e outros bens das lojas, em meio ao caos, dominam os
círculos da mídia, ameaçando enterrar o tema central em debate
Mas a cobertura nos acontecimentos é incapaz de
compreender o verdadeiro contexto: milhões de pessoas enfrentando enorme
devastação econômica, estão, em meio à covid-19, sem trabalho e sem dinheiro.
Falo de milhões de pessoas que passaram a vida sob ameaça da polícia e cujo
desespero atual não é capaz de sensibilizar a consciência de homens como o
senador Mitch McConnell, que reluta em oferecer-lhes alívio, porque não vê o
gesto como ideologicamente são.
O alívio oferecido veio sob a forma de um cheque de
1,2 mil dólares, oferecido agora há muito tempo, e jamais recebido por muitos
dos que dele necessitavam – enquanto trilhões de dólares foram embolsados por
corporações poderosas e por amigos de Donald Trump.
Quem, então, são os verdadeiros saqueadores?
Há sempre outro forno de micro-ondas, ou outra TV,
para colocar na prateleira de uma loja. Mas não haverá jamais outro George
Floyd, outra Breonna Taylor, Eric Garner, Atatiana Jefferson, Botham Jean,
Sandra Bland, Tamir Rice, Philando Castile, Tanisha Anderson, Michael Brown ou
Freddie Gray – para citar alguns nomes das vítimas fatais da violência policial
racista.
Os mortos foram saqueados de nosso mundo por um
Estado policial racista que agora reage com violência sem limites contra o povo
que jurou proteger.
Em Minneapolis, uma mulher, que estava
pacificamente em seu terraço, é alvejada por
policiais vestidos para a guerra.
Em Nova York, um policial arranca a máscara de um
jovem negro que está com as mãos erguidas, para borrifar spray
de pimenta sobre sua face.
Em Grand Rapids, um manifestante desarmado e
sozinho é agredido a cassetete e golpeado no
rosto, com um cilindro de gás lacrimogênio, pela polícia.
Em Atlanta, a polícia arrebenta as
janelas de um carro onde estava um casal negro, arranca-os do
veículo e os agride.
Também em Minneapolis, o repórter Michael Adams,
da Vice News, recebe um jato
de gás da polícia, quando está deitado ao chão, em obediência
ao que lhe determinaram. A violência contra este repórter ecoou em todo o país,
enquanto os jornalistas eram agredidos
violentamente pela polícia.
O registro em vídeo de
cenas com esta está se multiplicando como os fardos de tijolos que aparecem
misteriosamente em locais distantes de qualquer área de
construção civil.
Ou estes policiais violentos fora de controle não
sabem que os telefones vêm agora com câmeras, ou eles simplesmente não se
importam. Esta última possibilidade – ou, melhor, probabilidade – é o elemento
mais inquietante.
Muitíssimas pessoas estão se debruçando sobre a
brecha para grandes mudanças que explodiu diante de nós, devido a uma
confluência letal de razões. Mais de 100 mil mortos e de 40 milhões de
desempregados, numa pandemia descontrolada, dirigida por um presidente
monstruoso mesmo quando negros são massacrados por policiais em nome do Estado
de poder branco. A grande revolta, vale lembrar, já está se formando
A polícia, em muitas cidades, está reagindo com um
arsenal de atos violentos. A ferocidade extrema da reação policial é evidência,
em prima facie do desejo de cometer virtualmente qualquer
atrocidade, em defesa do status quo racista.
Em resposta, precisamos continuar agindo. Se você
puder, sais ás ruas com os manifestantes, ou comece sua própria ação, ainda que
pequena, onde mora. Se as ruas não são possíveis, faço o que puder, em apoio,
porque tudo conta. Há muitas maneiras de se colocar e
lutar, neste momento de verdade.
Este é um momento crucial para o país, que pode ter
dois desfechos opostos. Ou garantimos um grau de justiça superior, por meio de
esforço muito persistente, ou, se nos enfraquecermos ou vacilarmos, a reação
autoritária que já começou irá nos afundar em escuridão desconhecida.
Não podemos. “Algum dia” é agora. Só poderemos
escrever um futuro decente se formos fiéis a nós mesmos, uns aos outros, e à
legião de vítimas que exigem justiça além deste vale de tristeza insuperável
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