Por Mauro Luis Iasi
BLOG DA BOITEMPO
“Outrora, o bem dos
particulares produzia o tesouro público; agora, porém, o tesouro público
torna-se patrimônio dos particulares. A República é uma presa; sua força não
passa do poder de alguns cidadãos e da licença de todos.”
MONTESQUIEU
A teoria política
moderna se fundamenta em algumas premissas que a crise da sociedade burguesa
plenamente desenvolvida se encarrega de solapar. A ordem burguesa nascente
preocupava-se com o Estado – considerado como necessário e inevitável para a
existência da vida em sociedade –, mais precisamente, com as maneiras de evitar
que a forma política torna-se um poder que se volta contra os cidadãos
controlando-os ao invés destes o controlarem.
A teoria política,
desde Locke, Montesquieu e outros, buscava meios para garantir que o poder
político não se distanciasse dos cidadãos, impedindo o despotismo. Naquele
momento tratava-se da crítica à Monarquia Absoluta. Com o desenvolvimento da
sociedade capitalista e da ordem burguesa, contudo, tais mecanismos deslocam-se
para evitar a “tirania das massas”, tal como esta se apresenta de forma nítida
nas ideias defendidas pelo jornal O Federalista – notadamente na pena de
pensadores como John Jay, Alexander Hamilton e James Madison, também chamados
de “pais da Constituição” estadunidense.
Resumidamente,
podemos afirmar que o mecanismo essencial desse suposto controle se funda na
divisão de poderes. Ou seja, trata-se da premissa segundo a qual quem governa
não pode fazer a lei, quem faz a lei não governa e aquele que julga não pode
governar ou fazer leis. Nos clássicos como Locke e Montesquieu, esta divisão
assume uma forma funcional. Já os chamados federalistas estadunidenses e seu
pragmatismo vão além e estabelecem pesos e contrapesos de maneira que um poder
possa ser limitado pelo outro.
Os dirigentes dos
recém-criados Estados Unidos da América se embasam, além de Montesquieu, numa
velha máxima de Maquiavel segundo a qual só o poder pode limitar o poder.
Diferente da tradição política clássica, os estadunidenses compreendiam as
facções (quer representem a minoria ou a maioria da sociedade, impelidos por
sentimentos e interesses contrários em relação aos outros cidadãos e à
coletividade social, como pensava Madison) como fenômenos inevitáveis, uma vez
que derivariam da natureza humana (competitiva, cruel e brutal). Desta maneira,
defendem não o controle, mas a liberdade das facções, de forma que a luta entre
as muitas vontades fosse o meio pelo qual nenhuma delas poderia se impor às
demais. Como o próprio Madison afirmava, uma vez que as causas não podem ser
evitadas, é necessário controlar os efeitos.
O receio dos
federalistas não era a usurpação aristocrática, mas o risco de um governo
popular, de maneira que uma facção majoritária pudesse impor sua vontade aos
grupos isolados. O que está por trás dessa engenharia política é o “direito à
escravidão” das ex-colônias do sul em relação aos Estados industrializados do
Norte.
A forma encontrada
para tanto é um aprofundamento da divisão de poderes tal como descrita acima,
acrescida de freios e contra-freios a fim de evitar que a chegada ao governo de
uma facção não lhe conferisse poder de impor seus interesses sobre os demais.
Um presidente eleito por uma maioria teria de governar com a representação
parlamentar das outras facções, existirá uma câmara alta – o Senado – com outro
critério de formação e, em princípio, mais conservador. Mesmo em uma eventual
formação de maioria parlamentar, o executivo tem que se ater à ordem legal expressa
na Constituição e garantida por juízes de uma corte suprema que não são
eleitos, mas indicados por outros presidentes e com mandato vitalício (no caso
dos EUA).
Para garantir-se que
uma maioria popular nem sequer chegue à Presidência, as eleições são indiretas,
por um complexo processo que filtra o voto popular na formação de um colégio de
delegados que de fato escolhem o presidente.
É inegável que tal
engenharia deu aos EUA uma estabilidade, isto é, evitou a menor chance da
formação de uma “tirania popular”. No entanto, toda forma política só pode ser
a expressão da materialidade na qual repousa, de maneira que a estabilidade ou
instabilidade não se produz unicamente pela virtude ou coerência da formulação
política, mas também e fundamentalmente em função do bom andamento das formas
econômicas que a sustentam.
Diante do vendaval
político que assola nosso país, o partido das câmeras e seu maior representante
insistem que o risco de autoritarismo (que eles próprios ajudaram a criar e dar
asas) não têm chance de se estabelecer porque afinal “nossas instituições são
sólidas”. Caso uma peça se desvie, como é o caso do miliciano que atualmente
ocupa a cadeira presidencial, os outros poderes lhes imporiam o limite. É o
mesmo argumento utilizado quando do afastamento ilegal e casuístico da
presidente Dilma Rousseff. Entretanto, o bolsonarismo parece apresentar
problemas à aplicação do enredo normal do funcionamento das instituições.
O desqualificado na
Presidência explicita um projeto que se choca com os outros poderes e aponta
para uma alternativa ditatorial, por atos, palavras e convicções. A Rede Globo
prefere caracterizar tal comportamento como dúbio, seguindo as palavras do
presidente do STF. Entretanto, o comportamento do capitão expulso do Exército é
tudo menos dúbio. É evidente que ele prepara uma ruptura institucional e que
não considera possível governar sob o limite dos poderes constituídos, sejam
parlamentares ou judiciários.
Então, por que os
poderes que deveriam limitá-lo não agem? Comecemos pelo Parlamento. A forma de
operação da relação entre o Executivo e o Legislativo deixou de funcionar há
muito tempo. Para governar é preciso maioria, ou uma bancada de sustentação e
alianças. A maneira de garantir essa maioria é a distribuição de cargos e
outras facilidades, digamos assim. E isso vale para qualquer um – direita,
centro, com ou sem pretensões populares e mesmo a extrema direita como agora –
a despeito do prognóstico otimista de Merval Pereira, segundo o qual Bolsonaro
inauguraria uma saudável prática política de não negociar com facções
parlamentares.
O problema é que se
tal engenharia, chamada de “presidencialismo de coalizão”, funcionou bem em
tempos ditos normais, acabou por se transformar em uma constante ameaça aos
governantes, uma vez que se emancipou da legalidade e constitucionalidade para
afastar um mandatário. Quem deveria interferir aqui para zelar por tal suposta
constitucionalidade não o fez, pelo contrário, entrou no acordo, com o Supremo,
com tudo, dirigiu e ungiu de suposta legalidade o casuísmo.
Como os afastados
compunham um governo de centro esquerda (para ser generoso na classificação)
comprometido com um pacto social que desarmou a classe trabalhadora de sua
autonomia necessária, preferindo apoiar-se na mesma institucionalidade que se
movia para derrubá-los, caíram sem reação alguma. Tudo isso dava aos
porta-vozes da ordem a impressão segura de que as instituições estavam
funcionando. E estavam, para aquilo que foram criadas: evitar a menor
possibilidade de um governo popular (ainda que aquele governo que caía já não o
fosse).
Mas, então, o que
explica que esse mecanismo parece não funcionar agora, em um governo de extrema
direita? Neutralizado o parlamento, pelo menos por enquanto, graças ao trabalho
impecável da gelatina da República, o homem sem esqueleto Rodrigo Maia e a boa
e velha prática da formação de maiorias no mercado de cargos, verbas e
aparelhos por onde se opera a corrupção e o favoritismo eleitoral, restaria o
caminho judicial. Considerando a quantidade e natureza dos crimes de
responsabilidade cometidos e mesmo os indícios de crimes comuns, qualquer outro
já teria caído. O que afinal mantém o inominável miliciano em seu cargo?
Não é o poder que
dispõe como chefe do Executivo, pois como ele mesmo rosnou, parece que a Presidência
dá menos poder do que parece àqueles que a disputam. É aqui que a teoria
política burguesa encontra seu ocaso. Quando vemos o impasse entre os poderes,
cai a máscara e se revela que há poderes que não se submetem nem aos pesos, nem
aos contrapesos e que se movem sem freios.
O Judiciário afirma
que vai investigar esquemas que podem chegar ao presidente. O presidente e seus
ministros dizem que não reconhecem e não aceitaram o resultado de tal
julgamento. Primeiro, é preciso aclarar que esta crise só se estabelece porque
um dos poderes prevaricou: o Parlamento. É ele que por direito deveria
fiscalizar e, se fosse o caso, como é evidente que é, julgar o presidente. Caso
houvesse um impasse, caberia ao Judiciário entrar em cena para dizer de
competências e procedimentos. Como o Parlamento estava à venda e foi comprado,
restou outro poder que diante do impasse não pode recorrer a não ser a si
mesmo.
O que revela a
máscara que caiu? Se não é o próprio poder executivo, quem é esse poder que
cria o impasse diante do Judiciário? É aquele que a teoria política moderna, em
certo sentido sem que tenha ouvido de fato as bases da teoria clássica,
resolveu deixar do lado de fora do fenômeno político: a força.
O interessante é que
a teoria política moderna inaugurada com Maquiavel é aquela que exatamente
chama a atenção para esse fator. Este aspecto contudo foi sendo depurado até
que chegamos em Hannah Arendt e Jürgen Habermas, que consideram a força como um
recurso extra-político, de maneira que onde há política não há força e onde
entra a força cessa a política, num claro recuo em direção a Aristóteles.
Ocorre que uma força,
ainda que desconsiderada, existe. Os militares não estão, a não ser
formalmente, submetidos à Constituição, pois a força pode impor um novo
ordenamento jurídico, no velho dilema já descrito por Maquiavel entre o profeta
armado e o desarmado. Bolsonaro se mantém porque alega ter apoio dos militares
e seus generais no governo parecem não desmenti-lo.
Segundo declarações
recentes do fabricador de fake news no poder, estaríamos perto da hora do
acerto de contas. Seria mais um blefe? Pode ser e pode não ser. O blefe faz
parte do jogo político, mas a resolução do impasse não se realiza por blefes, e
sim quando as cartas são colocadas na mesa. O PT e seus aliados prometeram
parar o país ou incendiá-lo, mas nada parou e os próprios derrubados se
empenharam no papel de bombeiros.
O Judiciário está
colocando suas cartas na mesa e começa a fechar o cerco, principalmente com a
prisão do Queiróz e com o que pode vir daí até a família do presidente. Tudo
isso alimentando as investigações em curso poderia culminar na cassação da
chapa, o que não passa pelo Congresso. Os militares governistas (não sabemos se
com respaldo ou não dos militares na ativa) dizem que não aceitaram um
“julgamento político” (como se o último não o fosse).
O problema é que
Bolsonaro pode ou não ter o apoio das Forças Armadas, mas certamente tem o
respaldo de corporações militares e da milícia, podendo portanto reagir de
alguma forma. O Supremo não pode impor sua decisão a não ser pela força da lei,
que diante da força das armas vale tanto como o caráter de alguém contra a
munição de um fuzil ou a inocência diante da convicção de um juiz corrupto.
A dúvida que persiste
é a seguinte: se Bolsonaro não está blefando e tem apoio militar, por que não
desfecha seu golpe? A meu ver este impasse se resolve fora do campo visível e
remete a um outro poder, este determinante: o grande capital. A divisão que
agita a forma política é uma expressão de uma outra, a grande burguesia ainda
não se decidiu pela continuidade ou retirada de seu mais recente serviçal,
sobre a oportunidade e possibilidade de substituí-lo e o que colocar em seu
lugar.
Pela primeira vez,
concordo com Bolsonaro. Aproxima-se a hora que as cartas serão colocadas na
mesa. Nesta hora acaba a possibilidade de blefe e quem tiver o maior jogo leva
tudo.
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM
(Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê
Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da
consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o
Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição
marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
Área de anexos
Visualizar o vídeo Bolsonaro e o fetiche da mercadoria | Café Bolchevique #1,
com Mauro Iasi do YouTube
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