EL PAÍS - Flávia Marreiro
© Rodrigo Juste Duarte (UFPR - O professor Adriano Massuda, especialista em SUS).
Adriano Massuda, 41 anos, não economiza termos
fortes para descrever os desacertos do Governo Bolsonaro e de parte das gestões
estaduais no enfrentamento da maior crise sanitária do século. “Faltou a
organização de uma resposta nacional com a dimensão que essa pandemia exige. E
não tem desculpa! A gente teve tempo para se preparar”, lamenta o ex-secretário
de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e
especialista em gestão em saúde, lembrando que o novo coronavírus surgiu na
Ásia e levou quase três meses para
chegar até aqui.
“Só não estamos em
situação pior justamente porque nós temos o SUS [Sistema
Único de Saúde] e porque o Brasil tem uma tradição em programas de saúde
pública”, diz o professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante na
Escola de Saúde Pública de Harvard. O problema, afirma Massuda, é que
justamente essa tradição de saúde pública está sendo ameaçada com a profusão de militares e
profissionais sem experiência instalados em cargos-chave na
atual configuração do Ministério da Saúde. O pior, segundo o professor, é que
mudanças nas engrenagens do sistema que foram construídas ao longo dos últimos
30 anos podem fazer um “estrago” muito além da pandemia.
Pergunta. Como o senhor avaliou essa tentativa do
Ministério da Saúde, revertida pelo STF, de mudar a forma de divulgar os
números da covid-19?
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Resposta. Isso demonstra uma degradação cada vez maior na capacidade do Governo Federal em lidar com uma ameaça tão grave como essa pandemia. Podemos dividir a resposta em três tempos. Primeiro a gestão de Luiz Henrique Mandetta. Apesar das críticas ao atraso na tomada de medidas para preparar o país, houve iniciativas de alerta a população sobre a gravidade da situação. O segundo tempo foi Nelson Teich, o Breve. Aí o ministério praticamente parou, deixando de exercer um papel de coordenação nacional do sistema. E agora o ministério atrapalha a resposta à pandemia.
Nessa terceira fase é pior, com ministro
interino há mais de um mês, a tentativa de negar informação, como se isso fosse
diminuir o problema —uma atitude insana que é muito a cara desse Governo— cria
um conflito com Estados e municípios. O Conass [Conselho Nacional de
Secretários de Saúde] publicou uma carta histórica bastante dura, com o
posicionamento dos secretários estaduais de Saúde contra a possível maquiagem
dos números, de dizer que os números estão inflados por Estados e municípios.
Isso cria um conflito federativo bastante perigoso para governança do sistema
de saúde, que antes estava restrito aos governadores e ao presidente.
Pergunta. Como senhor vê essa profusão de militares na pasta?
R. O Exército está ocupando cargos técnicos quando o Brasil tem
profissionais extremamente competentes na área da saúde coletiva brasileira.
Poucos países têm a inteligência que nós temos neste setor. Essa inteligência
não está no Exército. Junto com a piora da pandemia, pode haver piora em outros
problemas de saúde negligenciados por causa dela. Há inúmeros outros
programas de saúde que dependem da coordenação técnica do ministério. Como é
que vai ficar a coordenação nacional do câncer? Como é que vai ficar a política
nacional do HIV, do sangue e hemoderivados, e as vacinas que dependem da ação
do Ministério da Saúde? É algo muito arriscado e a sociedade tem que ficar
bastante atenta. O problema não é só a covid-19.
Pergunta. Por que o senhor acha essa presença dos militares
tão perigosa?
R. O volume de ocupação de cargos técnicos por militares e por indicações
políticas sem qualificação necessária na estrutura do Ministério da Saúde tem
ocorrido como nunca antes desde que o SUS foi criado. Nem o pior ministro da
Saúde fez o que está acontecendo agora. Há áreas técnicas do Ministério da
Saúde, fundamentais a manutenção de programas de saúde, que já passaram por
diferentes governos, de diferentes bandeiras políticas, e nunca foram
modificadas, devido ao saber acumulado. Pode haver um processo de desmonte da
engrenagem que fez o sistema de saúde funcionar nos últimos 30 anos que é muito
perigoso. O Exército pode estar puxando pro
seu colo a responsabilidade de desmontar o sistema de saúde
brasileiro. Esse sistema que é essencial para garantir a segurança sanitária do
nosso país.
Pergunta. Que estruturas estão sendo modificadas?
R. Além da coordenação de programas técnicos, mudanças na estrutura
da secretaria executiva do Ministério da Saúde são preocupantes, pois é a área
faz o planejamento orçamentário e que coordenada o repasse de recursos para
Estados e municípios por meio do Fundo Nacional de Saúde. Não sou o primeiro a
alertar isso na imprensa. Isso pode trazer vários problemas futuros para para
Estados e municípios. De imediato, ajuda a entender a baixíssima capacidade de execução
orçamentária na pandemia, em que menos de um terço do recurso
extraordinário aprovado foi executado após três meses do seu início. Os
militares tem competência em muitas áreas, mas não tem experiência na gestão do
sistema de saúde brasileiro, que é muito complexo. Se eles conhecessem, não
fariam as modificações em áreas extremamente sensíveis como estão fazendo.
Pergunta. Apesar dos problemas, o SUS é tido, consensualmente, como uma
fortaleza de que o Brasil dispõe para lutar contra pandemia. Mas, mesmo no
Estado mais rico do país, São Paulo, há hospitais que precisam de doação
para funcionar bem. Como vê as condições do SUS para enfrentar o
problema?
R. Primeiro, um sistema de saúde não deve depender de doações. Isso
revela uma série de fragilidades estruturais do sistema. Por outro lado, só não
estamos em situação pior porque nós temos o SUS. O Brasil tem experiência de
resposta em epidemias anteriores, que foram razoavelmente bem sucedidas. O país
poderia estar utilizando a sua estrutura de vigilância epidemiológica e de
atenção primária à saúde, que cobre 75% da população brasileira. A vigilância e
atenção primária poderiam jogar um papel muito importante na identificação
precoce de casos, monitoramento de grupos de risco e rastreamento de contatos
—pessoas que tiveram próximas de infectados. Se a gente tivesse
utilizando adequadamente essa estrutura que o Brasil dispõe, talvez não
precisaríamos de um isolamento tão radical por tanto tempo.
Pergunta. Por que não estamos conseguindo usar o potencial a nosso favor?
R. O sistema tem várias problemas estruturais que se agravaram nos últimos anos, como o subfinanciamento, a fragilidade de governança e má distribuição de recursos. Se conseguimos promover uma boa expansão de atenção primária, não conseguimos fazer uma reforma na atenção hospitalar: 70% das Regiões de Saúde têm o número de leitos de UTI abaixo do que seria recomendado para situação de normalidade. E estamos falando só do número de leitos. Se formos falar de qualidade da atenção hospitalar... Os doentes graves de covid-19 exigem equipes técnicas extremamente qualificadas pra lidar com a complexidade dos casos, e no Brasil há grande carência nesse aspecto. E por que razão isso acontece? O percentual do gasto público em saúde no Brasil é um dos menores do mundo.
O maior gasto concentra-se no setor privado: 56% do total que dirige-se
a menos de 25% da população. Ou seja, é um gasto que não ajuda a fortalecer o
SUS. Nos últimos anos isso piorou, pelas medidas de austeridade fiscal, que
agravaram o subfinanciamento. O Brasil perdeu de 20 a 30 bilhões de reais desde
que, em 2016, foi aprovado o congelamento de gastos
públicos federais. E aí agora, diante situação com a pandemia, não
conseguimos utilizar adequadamente o que temos de bom, e por outro temos uma
rede hospitalar tão precária que depende de doações.
Pergunta. E a questão da governança? Isso vem de antes do Governo Bolsonaro,
certo?
R. Temos no sistema de saúde com áreas de excelência no SUS. Você pode cair num hospital público e pode ter um excelente atendimento, num Incor, num Hospital de Clínicas da USP [ambos em São Paulo]. Agora, são ilhas. A realidade é que a grande parte dos hospitais não é assim, e a gente está falando de São Paulo. Se formos para o interior do Brasil ou mesmo outras capitais, o problema na atenção hospitalar é ainda maior. A descentralização da gestão do SUS para os municípios, sem organizar adequadamente regiões de saúde, criou problema de governança do sistema, pois as capacidades gerenciais são muito distintas.
Esse
problema é agravado por iniciativas de terceirização que aumentaram a
precarização, pois atribuíram responsabilidade a gestores sem nenhum
compromisso com o SUS. Apesar de haver algumas boas organizações sociais,
existem outras em que o interesse não é produzir saúde. Esse problema
ficou mais evidente com o caso dos
hospitais de campanha do Rio de Janeiro. Tem hospital que é só
tenda, não tem equipamento. Às vezes tem equipamento, mas não tem profissional.
Ao mesmo tempo tem um número grande de leitos em hospitais públicos que estão
fechados: tem estrutura, mas não tem pessoal. E tem leitos privados ociosos:
uma alternativa poderia ser o poder público contratar leito privado e pagar
adequadamente para isso. Seria mais econômico do que montar hospital de campanha.
Pergunta. E como vê a situação nos Estados e municípios?
R. Os problemas na coordenação nacional afetaram a capacidade de resposta de governos estaduais e municipais. Entretanto, apesar dos problemas, o SUS conseguiu abrir mais de 7.000 novos leitos de UTI em grande medida por iniciativa de Estados e municípios. Tem alguns Estados e municípios fazendo um bom trabalho técnico, mas vemos que infelizmente predomina a falta de capacidade de planejamento e gestão. Só para dar um exemplo do problema da governança do sistema de saúde brasileiro, em vários Estados já houve troca de secretários.
O Acre já mudou duas vezes, Amazonas duas vezes,
Amapá duas vezes, Rio de Janeiro duas vezes, Distrito Federal uma vez, Minas
Gerais uma vez, Paraíba uma vez, Roraima cinco vezes, Santa Catarina uma vez,
Sergipe uma vez, Tocantins uma vez. Estamos no terceiro ministro da saúde desde
o começo da pandemia. Como governar um sistema de saúde com tanta troca? Isso
expõe fragilidades que precisarão ser enfrentadas se quisermos ter melhor
capacidade de defesa a desafios como a pandemia da covid-19 nos apresenta.
EM TEMPO: A política do desgoverno Bolsonaro é a de sucatear os serviços públicos, inclusive o SUS, para privatizá-los. Agora durmam com essa bronca ou levem o Bolsonaro para terminar de criá-lo, pois esse foi escolhido "a dedo" para destruir o Brasil aqui e no exterior.
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