Foto: Michel Dantas / AFP. (via Getty Images) |
Yahoo Notícias, 3 de junho de 2020
“Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado o poder destruidor desse vírus. Então talvez esteja sendo potencializado até por questão econômica, mas acredito que o Brasil, não é que vai dar certo, já deu certo.”
Foi o que disse o presidente Jair
Bolsonaro em 9 de março de 2020, durante uma visita ao colega Donald Trump nos
EUA.
No dia seguinte (10/3), ele admitiu
que estava diante de uma crise. Mas “uma pequena crise”. “No meu entender,
muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande
mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.
No dia 11/3, ele voltou à carga:
“outras gripes mataram mais”
Logo na sequência foi confirmado que
seu secretário da Comunicação, Fabio Wajngarten, voltou ao país infectado pelo
coronavírus —ao todo, 23 pessoas da delegação do presidente contraíram a
doença.
Já no Brasil, Bolsonaro seguiu
mudando de assunto. Disse que não poderíamos “entrar numa neurose como se fosse
o fim do mundo” e que entre 2009 e 2010 houve uma crise “semelhante” mas, como
era o PT que estava no poder, “a reação não foi nem sequer perto do que está
acontecendo” (15/03).
Foi o primeiro dos muitos delírios persecutórios de quem afirmava que não dava para “querer jogar nas minhas costas uma possível disseminação do vírus”. Para ele, “tudo bem” que vai ter problemas, sobretudo a quem “é idoso e está com problemas ou deficiência”, mas era preciso lembrar que a doença “não é isso tudo que dizem”. (16/3).
No dia seguinte (17/03), um paciente
que estava internado em São Paulo morreu em decorrência da Covid-19. Era a
primeira vítima fatal da pandemia no Brasil.
No mesmo dia, o presidente apostou
que a situação no Brasil não chegaria ao que acontecia já Itália, um país que
ele comparou com o bairro de Copacabana, cheio de “velhinhos mais sensíveis”,
onde 400 pessoas morriam diariamente pela doença, e disse que o vírus era como
gravidez: uma hora ia passar.
“Tem locais em alguns países que já têm saques acontecendo, isso pode vir para o Brasil, pode ter aproveitamento político em cima disso, a gente não quer pensar nisso daí, mas tem que ter calma. Vai passar. Desculpa aqui, é como uma gravidez, um dia vai nascer a criança. E o vírus ia chegar aqui um dia, acabou chegando.”
Ele também disse que “esse vírus trouxe
uma certa histeria e alguns governadores, no meu entender, eu posso até estar
errado, estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa economia”.
Três dias e 11 mortos depois,
Bolsonaro desafiou: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me
derrubar” (20/3).
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No dia 21/3, quando completou 65
anos, quem ganhou o presente foram seus seguidores. De bermuda e camiseta em
uma área de lazer, Bolsonaro gravou um vídeo com os filhos para o Twitter
dizendo que a possível cura da Covid-19 estava na cloroquina, medicamento que
passaria a ser produzido em larga escala pelo Exército. “Agora há pouco,
os profissionais do hospital Alberto Einstein (sic) me informaram que iniciaram
protocolo de pesquisa para avaliar a eficácia da cloroquina nos pacientes com
Covid-19. (...) Tenhamos fé que em breve ficaremos livres desse vírus.”
Quando o Brasil se aproximava das
primeiras 50 vítimas fatais, em 24/3, ele disse que, caso fosse contaminado
pelo vírus, estaria salvo pelo seu “histórico de atleta”. “Não precisaria me
preocupar, nada sentiria ou seria acometido, quando muito, de uma gripezinha ou
um resfriadinho”.
O brasileiro, para Bolsonaro, deveria
ser estudado. “Ele não pega nada. Você vê o cara pulando esgoto ali. Ele sai,
mergulha e não acontece nada com ele” (26/03).
Para muitos, foi uma injeção de ânimo
não para pular no Tietê, mas para seguir circulando normalmente às ruas como se
não corresse riscos. A garantia era o presidente.
O país não havia completado ainda os
dez primeiros dias da quarentena recomendada pela Organização Mundial da Saúde.
No dia 27/3, quando o país somava 92
mortes, Bolsonaro mudou o tom e passou a desacreditar nos números divulgados
sobre a doença. Para ele, “tem um estado aí que orientou por decreto que, em
última análise, se não tivesse uma causa concreta do óbito, bota lá
(coronavírus)”.
O discurso estava alinhado com uma
fake news espalhada por boots pelas redes, segundo a qual o amigo borracheiro
de centenas de pessoas, entre elas a deputada Carla Zambelli, morreu tentando
trocar o pneu de um caminhão que estourou. No atestado de óbito estava a prova
da “conspiração-triste para derrubar o governo Bolsonaro”: “a maioria das
pessoas que estão morrendo no estado estão colocando no laudo que é
coronavírus. Eu tava lá, eu vi, o acidente foi um pneu que estourou na cara”.
Naquele dia, a Itália batia o recorde
global de mortes por Covid-19 em 24h, com 919 óbitos, e chocava o mundo ao
passar a marca de 10 mil vítimas fatais. O prefeito de Milão, Giuseppe Sala,
tinha acabado de admitir que cometera um erro ao apoiar a campanha "Milão não para" —
que, um mês antes, incentivou os habitantes da cidade a continuar com suas
atividades normais.
Com os 832 mortos na Espanha, a
Europa passava 20 mil mortes em razão da doença. Um restrito isolamento
começava naquele que era, então, o epicentro da doença — as medidas de
flexibilização iriam até meados de maio.
Enquanto isso, no Brasil, em 29/3,
quando as imagens de caixões enfileirados em Manaus (AM) ainda não haviam
corrido e chocado o planeta, Bolsonaro, em conversa com apoiadores, anunciou.
“Vem aí a cloroquina na área. Na região norte, (a quantidade de infectados) tá
pequena. Grande parte (da população) usa (cloroquina) pra malária. Está
vacinada (sic)”. Antes do fim de abril, o sistema de saúde da capital
amazonense, a maior cidade da região, entrou em colapso.
Do jejum ao ‘e daí?’
E então chegou abril, e, junto com as
primeiras 300 vítimas da doença em todo o país, veio a ideia salvadora de
Bolsonaro: juntar pastores e religiosos e “pedir um dia de jejum ao povo
brasileiro em nome de que o Brasil fique livre desse mal o mais rápido
possível” (2/4).
Dez dias depois (12/4), a fé na
própria corrente fez efeito, e Bolsonaro afirmou que o coronavírus “parece que
está começando a ir embora”.
Naquele dia o país chegava à marca de
1.223 mortos.
Em 16/4, após semanas de fritura,
caiu o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
O número de mortos dobrararia (2.575)
no dia 20 daquele mês, quando Bolsonaro, diante de uma pergunta sobre o avanço
da gripezinha”, declarou: “eu não sou coveiro”.
Dois dias depois, em 22/4, aconteceu
a sintomática reunião com ministros em que foi aventada a possibilidade de
prender prefeitos e governadores que uniam esforços para evitar aglomerações e
a expansão da pandemia no país. O vídeo, divulgado um mês depois, mostrou que o
presidente estava irritando com as medidas que considerava arbitrárias dos
gestores estaduais e municipais e pregava a distribuição de armas, com a
assinatura de um decreto que ampliou a cota de munição, para que povo lutasse
contra a “ditadura”. A frase lembrava uma sentença de Benito Mussolini em
agosto de 1937: “só um povo armado é forte e livre”.
Nos dias seguintes, a pandemia
praticamente desapareceu do noticiário político em meio às acusações de Sergio
Moro, ministro demitido da Justiça, sobre a interferência de Bolsonaro na
Polícia Federal.
Foi no dia 28/4, quando o Brasil
chegou aos 5.017 mortos oficiais por coronavírus, passando a China em número
oficiais, que Bolsonaro desdenhou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu
sou Messias, mas não faço milagre”.
Churrasco, tubaína e jet ski
O Brasil se aproximava das 10 mil
mortes da pandemia quando, no dia 7/5, Bolsonaro anunciou em uma coletiva que
faria um churrasco no Palácio do Alvorada no fim de semana com cerca de 30
pessoas. “Vamos bater um papo, quem sabe uma peladinha”, anunciou.
O churrasco não aconteceu; a ele foi
servido apenas um pedaço de carne enquanto passeava de jet ski em um lago da capital.
Em 16/5, um dia após a demissão do
segundo ministro da Saúde, Nelson Teich, o Brasil ultrapassou Itália e Espanha
em número de infectados e superou a marca dos 15 mil mortos na pandemia. No dia
seguinte, Bolsonaro reuniu ministros em frente ao Palácio para saudar a
multidão que se aglomerava na Praça dos Três Poderes em um protesto a seu
favor. Ele jurou que o governo federal dava “todo apoio para atender às pessoas
que contraíram o vírus, e esperamos brevemente ficar livre dessa questão.”
Em 19/5, o Brasil passou registrou,
pela primeira vez, mais de mil mortes em um mesmo dia (ao todo, 1.170 óbitos).
Horas após a divulgação dos números, o presidente apareceu sorridente em uma
live com um entrevistador amigo e fez a famosa piada: “quem for de direita,
tima cloroquina; quem for de esquerda, toma tubaína”.
Em 21/5, quando 20 mil pessoas já
haviam morrido pelo coronavírus no país, Bolsonaro se queixou, em uma
videoconferência com lideranças religiosas, que havia uma “propaganda muito
forte em cima” da doença e isso levava “pavor para o seio da família brasileira”.
Ele seguia afirmando que a doença causava problemas “apenas” para idosos e
pessoas com outras doenças.
“No meu entender, houve uma
propaganda muito forte em cima disso. Trouxe o pavor para o seio da família
brasileira. E obviamente nós sabemos da gravidade das pessoas idosas e daquelas
que têm algumas doenças, uma vez sendo acometido pelo vírus”.
Quando o Brasil chegou a 25 mil
mortos, em 25/05, só se falava de outra coisa no entorno presidencial. Ainda
sob a tensão da divulgação do vídeo da reunião ministerial, Bolsonaro evitou a
imprensa e se limitou a dizer: “No dia que vocês tiverem compromisso com a
verdade, eu falo com vocês de novo”.
30 mil mortes: o destino de todo mundo
Desde o começo de março, já são quase
três meses de gestos e declarações de um presidente em processo de
desmoralização por ter conseguido errar todas as “previsões” a respeito da
doença. As declarações, que segundo o médico e ex-ministro da Saúde Luiz
Henrique Mandetta (o primeiro a ser ceifado do cargo por discordar das orientações
médicas do presidente), mais confundiam do que orientavam a população.
Resultado: o país ultrapassou nesta
terça-feira, 3/6, os 30 mil mortos e 558 mil contaminados na pandemia, passando
antigos epicentros da doença como a Espanha (27 mil) e se aproximando a passos
largos da Itália (33 mil), que o presidente brasileiro comparou ao bairro de
Copacabana. Os números, porém, ainda estão longe dos registrados nos EUA, com
107 mil mortes e queda nos casos de contaminação.
Diante dos índices, Bolsonaro se manifestou
após uma apoiadora pedir que ele enviasse uma mensagem de conforto para as
famílias em luto: “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo
mundo”.
Morticínio acabava de mudar de nome.
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