Texto extraído do Blog do Magno Martins.
Com edição de Ítala Alves
A aproximação entre os militares e o governo
federal promovida pelo presidente Jair Bolsonaro começa a dar sinais de
desgaste para as Forças Armadas, e integrantes da caserna preocupados com seu
papel institucional já percebem o fenômeno e começam a fazer uma autocrítica
interna. A avaliação é do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal
(STF), que se reuniu na última semana com o comandante do Exército, general
Edson Leal Pujol, para "abrir um canal de conversa".
Em entrevista à DW Brasil, concedida em seu gabinete, ontem, o ministro disse
considerar possível que militares do Alto Comando venham a público afirmar seu
distanciamento do governo. "Saíram pesquisas que indicam que está havendo
uma identificação entre as Forças Armadas e o governo Bolsonaro, em tom
negativo. Acho que isso vai se perceber. No caso da Saúde, está sendo altamente
desgastante", diz. "Tenho dito que as Forças Armadas não são milícias
do presidente da República, nem de força política que o apoie."
Ao mesmo tempo, Mendes colocou em dúvida a
autoridade do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, para falar em nome dos
militares. Na última sexta-feira, Bolsonaro divulgou uma nota, também assinada
por Azevedo e pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmando que as Forças
Armadas "não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da
República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos" –
há ações sob análise do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pedem a cassação
da chapa eleita em 2018 e diversos pedidos de impeachment do presidente foram
apresentados à Câmara.
Continue lendo
"O que há de impróprio nessa nota é invocar as
Forças Armadas, cujos comandantes não têm falado, e quando sugerem alguma ação,
não é nesse sentido. […] A mim parece que aqui há uma impropriedade quando
dizem que as Forças Armadas não farão nenhuma intervenção, mas, ao mesmo tempo,
eles falam em nome das Forças Armadas. Com que autoridade? [...] Muitas das
interpretações que foram dadas pelo Ministério da Defesa não parecem que são
subscritas pelas Forças Armadas", diz.
Segundo Mendes, o presidente do STF, Dias Toffoli,
tentou construir um diálogo amistoso com o governo desde o final de 2018 para
evitar "rusgas" entre Executivo e Judiciário, mas percebeu a
necessidade de ser mais enfático após o ataque com fogos de artifício realizado
por apoiadores de Bolsonaro contra o prédio do Supremo no último sábado.
DW Brasil: As
instituições brasileiras passam por um processo de degradação ou estão
funcionando normalmente?
Gilmar Mendes: Estamos vivendo momentos de estresse
que não tínhamos experimentado sob a Constituição de 88. Passamos por várias
crises, dois impeachments presidenciais, julgamentos complexos como o mensalão,
mas não tivemos um estresse tão intenso como este. Isso decorre das
peculiaridades do governo eleito.
O presidente se elegeu numa onda, que somou pessoas
da direita, talvez da centro-esquerda, todos aqueles que queriam derrotar o PT,
e também alguns extremistas, que tinham mensagens de volta à ditadura, de
intervenção militar. Esse grupo tem sido um elemento perturbador. Cobra do
presidente, e o presidente os considera porque são ativistas da rede. Neste ano,
depois da pandemia, os atritos se agravaram muito, [assim como] a presença do
presidente em manifestações antidemocráticas.
Temos cumprido nosso papel, fazendo o controle de
constitucionalidade, aprovamos muitas medidas, também reprovamos algumas relevantes.
Tem havido também algum problema com o Congresso, como a medida provisória que
permitia a nomeação de reitores temporariamente enquanto durasse [a pandemia],
devolvida pelo presidente do Congresso.
Há uma decisão da qual o presidente reclama muito, que
é a questão do papel da União no concerto federativo [para o combate à
pandemia]. O Supremo sugeriu que houvesse um trabalho conjunto, como já
acontece hoje com o SUS, e enfatizou que a responsabilidade em cada local seria
dos governadores e dos prefeitos. Isso levou o presidente a dizer que
"vocês estão esvaziando a minha caneta", porque a preocupação dele
era a ideia de voltar com a economia, encerrar com o isolamento. Isso explica
muitos dos ataques que o tribunal tem sofrido, mas foi fundamental porque foi o
que ajudou a manter, ainda em grau razoável, o isolamento.
Temos também o inquérito das fake news, que vem
desde o ano passado e cujo responsável pela condução está tomando providência.
Isso bate em fraturas existentes no governo, na base governamental e no partido
do governo, porque sugere-se que há práticas de fake news, financiamentos,
indevidos de fake news e coisas do tipo.
O sr. não vê
degradação então?
As instituições estão funcionando, com esse
permanente estresse: ataques, manifestações, acampamentos, o episódio dos
fogos, a história das tochas. Mas estamos funcionando na normalidade. As ordens
judiciais estão sendo cumpridas. O Congresso Nacional tem aceitado medidas e
rejeitado medidas. As instituições não se atemorizaram por conta de ameaças, e
os órgãos de controle estão exercendo as suas funções.
O sr. tem postado
mensagens no Twitter com a hashtag #DitaduraNuncaMais. O sr. vê hoje alguma
ameaça à democracia?
Porque a toda hora nesses grupamentos há a defesa
da intervenção militar, artigo 142 [da Constituição]. Está no texto
constitucional que os militares podem atuar para preservar a lei e a ordem a
pedido de qualquer dos poderes. E isso tem sido utilizado ao longo dos anos, se
você olhar nas crises com as polícias dos estados, greves, motins. Agora, eles
passaram a dar uma interpretação do artigo 142 que tem a ver com uma abordagem
que não se coloca. O [ex-]presidente Fernando Henrique [Cardoso], que foi
autor, junto com o senador [José] Richa, desse texto, diz que não tem nenhuma
conotação de permitir que as Forças Armadas sejam árbitro no conflito entre
Poderes. Mas se usa isso para tentar amedrontar e constranger as instituições.
Houve aquele episódio em que o presidente foi a uma manifestação em frente ao
quartel-general [do Exército] e, em função disso, abriu-se um inquérito no
Supremo Tribunal Federal. E hoje o ministro Alexandre [de Moraes] tomou medidas
nesse sentido, quebrou o sigilo, está fazendo busca e apreensão.
Os alvos de buscas
e apreensões desta terça são pessoas próximas do presidente, que o apoiam e
financiam o partido que ele pretende criar. Qual a opinião do sr. sobre a
participação do presidente em atos considerados antidemocráticos?
Já tive oportunidade, numa conversa que tive com
ele, de dizer que ele não deveria comparecer a essas manifestações que ecoam
mensagens antidemocráticas, como de fechamento do Congresso ou do Supremo
Tribunal Federal. Mas ele acaba comparecendo, como vimos naquela em que ele
veio de helicóptero, desceu, tomou um cavalo da polícia para andar. Ele faz
para manter esse jogo de ambiguidade, de alguma forma quer cultivar os seus
aliados. Essas manifestações vêm tendo participação reduzida. Acaba tendo
repercussão na mídia porque o presidente participa, mas, a rigor, estão cada
vez mais esvaziadas. Por outro lado, estão surgindo movimentos de defesa da
democracia, como nós vimos há duas semanas em São Paulo, movimentos
expressivos. Entendo que as instituições são resilientes e vão se fortalecer.
Mas é inegável que há esse elemento de estresse.
Em decisão recente,
o ministro Fux afastou a interpretação de que o artigo 142 autorizaria as
Forças Armadas a atuarem como Poder Moderador. Depois disso, na sexta-feira
(12/06), Bolsonaro divulgou uma nota, também assinada pelo vice-presidente,
Hamilton Mourão, e pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo, afirmando que as
Forças Armadas "não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder
da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos".
Como o sr. interpretou essa nota?
Tenho a impressão de que se tenta constranger os
Poderes, mas isso não tem inibido nenhuma ação. Ainda há pouco, o ministro
[Luís Roberto] Barroso, que preside o TSE, disse que o TSE fará o que tem que
fazer. Não vejo nenhum efeito. O que há de impróprio nessa nota é invocar as
Forças Armadas, cujos comandantes não têm falado, e quando sugerem alguma ação,
não é nesse sentido. Tenho dito que as Forças Armadas não são milícias do
presidente da República, nem de força política que o apoie. A mim parece que
aqui há uma impropriedade quando dizem que as Forças Armadas não farão nenhuma
intervenção mas, ao mesmo tempo, eles falam em nome das Forças Armadas. Com que
autoridade?
O Ministro da
Defesa foi um dos que assinaram essa nota.
Pois é. Mas já tivemos casos em que o ministro da
Defesa assinou nota em nome das Forças Armadas e depois teve que dizer que
estava fazendo em nome próprio.
O sr. se encontrou
na semana passada com o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol. Como
foi a conversa?
Me preocupei porque há versões entre os militares
de que as instituições impedem o presidente de governar. Me preocupei em
explicar as decisões e porque têm sido tomadas. Temos uma relação com os
militares há muitos anos, e era importante explicar, por exemplo, sobre a questão
federativa, e abrir um canal de conversa nesse sentido. Muitas das
interpretações que foram dadas pelo Ministério da Defesa não parecem que são
subscritas pelas Forças Armadas.
Essa foi a
impressão do sr. dessa conversa?
A impressão geral é essa. O governo tem dificuldade
de dialogar, não só conosco, mas com o próprio Congresso Nacional. E gostaria
que as coisas funcionassem a partir de uma certa atemorização. Mas isso não
funciona. O país é muito complexo e tem uma economia muito diversificada. E tem
instituições fortes que vêm funcionando ao longo de anos, de uma maneira
normal.
Há cerca de três
mil militares atuando no governo. Como o senhor avalia essa aproximação das
Forças Armadas com o Executivo?
Num primeiro momento, isso era um pouco natural,
porque o Bolsonaro vocalizava os pleitos corporativos dos militares, era
natural que fosse buscar nos quadros das Forças Armadas pessoas para ajudar a
compor o governo. Em todos os governos temos tido militares, mas não nessa dimensão,
como hoje na cúpula do Ministério da Saúde. Isso obviamente passa a ser um
problema e traduz um tipo de identidade. No caso do Ministério da Saúde há uma
questão muito séria, o presidente teve dois ministros substituídos, tem este
que é provisório, general da ativa, que estava cumprindo ordens como a de
retirar as informações básicas sobre o número de mortes a cada dia, que
acabaram tendo que ser restabelecidas, por ordem judicial do Supremo.
Além do ministro
interino da Saúde, o general Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo,
também é da ativa. Nos Estados Unidos, o chefe do Estado Maior, general Mark
Milley, pediu na semana passada desculpas por ter participado de um ato com
Donald Trump, e deixou claro que as Forças Armadas não devem se envolver na
política interna daquele país. Devemos esperar que os generais da ativa no
Brasil façam o mesmo?
Acho que isso vai ocorrer, acho que que os próprios
militares estão percebendo isso. Estão fazendo uma autocrítica. Recentemente
saíram pesquisas que indicam que está havendo uma identificação entre as Forças
Armadas e o governo Bolsonaro, em tom negativo. Acho que isso vai se perceber.
No caso da Saúde, está sendo altamente desgastante. O governo federal está
tendo uma atuação claudicante no que diz respeito ao combate à covid-19, e a
responsabilidade irá para quem tem a gestão, para o próprio presidente da
República e para os militares que lá estão. Certamente aqueles que têm a
preocupação com o papel das Forças Armadas, com seu papel institucional, estão
vendo criticamente esse desenvolvimento.
O cientista
político Christian Lynch, professor da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, afirmou em entrevista ao jornal O Globo publicada nesta terça-feira
(16/06) que os militares no governo em breve se darão conta de que o projeto
que defendem só será viável sem Bolsonaro, e que, quando isso acontecer,
negociarão com parlamentares e juízes uma saída que passará pelo vice Mourão. O
sr. acha que isso pode acontecer?
Não sei se isso é cogitável. O nosso esforço é no
sentido de uma normalização institucional, redução dos conflitos. Vários
autores que estudam a ciência política dizem que Bolsonaro substituiu o chamado
presidencialismo de coalizão por um presidencialismo de colisão, de conflito. E
isso tem que ser reduzido.
Há relação entre a
Operação Lava Jato e a eleição de Bolsonaro?
As operações de combate à corrupção afetaram o
sistema político como um todo, e a Lava Jato teve papel de centralidade.
Permitiu que houvesse uma disputa entre o PT, que continuou forte e orgânico,
contra isto que se consolidou. A vitória de Bolsonaro se explica nesse sentido,
ele acabou galvanizando os grupos que já representava, mas certamente todos
aqueles que repudiavam o PT, os métodos, a corrupção. E é notório que o próprio
juiz [Sergio] Moro tomou medidas, por exemplo a revelação de depoimentos do
[Antonio] Palocci. A Lava Jato tomou partido. E se faltasse alguma explicação,
Moro veio a integrar o governo Bolsonaro. Se há um candidato do lava-jatismo,
certamente é Bolsonaro.
O presidente do
PSDB, Bruno Araújo, afirmou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo publicada
no sábado (13/06) que a vitória de Bolsonaro foi resultado do processo de
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, mas também da decisão do sr. que
impediu que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumisse a Casa Civil em
2016.
Ele está totalmente equivocado em relação a isso. É
o famoso "se" na história. Se Lula tivesse se tornado ministro, ele
teria conseguido reverter o impeachment? Ninguém sabe, muito provavelmente não.
Mas depois tivemos um governo bastante normal do presidente [Michel] Temer, até
de ampla coalizão, que sofreu ataques dessas forças de combate à corrupção, da
repressão, o episódio [Rodrigo] Janot, Joesley [Batista]. Mas que no ambiente
político aprovou uma PEC que colocou um limite para os gastos, normalizou a
economia, solucionou o problema da depressão econômica. Foi um governo que
conseguiu que o país voltasse a um estado de normalidade em termos econômicos e
políticos. Tem muito "se" na história. [Por exemplo] a facada. O
Bolsonaro tinha um minuto de televisão [por dia], talvez menos, e passou a ter
24 horas com a facada.
Como o sr. avalia
hoje essa decisão que tomou sobre Lula?
Foi a decisão correta tendo em vista as informações
distribuídas naquele momento, de que se estava nomeando o ex-presidente para
lhe dar o foro. Tem aquela conversa que é divulgada da Dilma com o Lula,
dizendo que sua posse estava sendo antecipada. Essa foi a apreensão que se
teve, que era notório que se estava usando a nomeação para protegê-lo do
processo criminal.
A presidência do
ministro Dias Toffoli no Supremo termina em setembro. Desde o final de 2018,
ele fez movimentos para se aproximar dos militares e do governo. Um deles foi
nomear o general da reserva Fernando Azevedo como seu assessor, que depois se
tornou ministro da Defesa, e recentemente sobrevoou a Praça dos Três Poderes ao
lado do presidente, em um helicóptero, para saudar uma manifestação com
bandeiras antidemocráticas. Mas no último domingo (15/06) Toffoli divulgou uma
nota dura, dizendo que "integrantes do próprio Estado" estão
estimulando ataques à Corte e que o Supremo "jamais se sujeitará" a
nenhum tipo de ameaça. Como o sr. avalia esses movimentos do presidente do Tribunal?
O ministro Toffoli tentou ter esse diálogo desde o
início, e tanto quanto possível evitar rusgas, estresse. Mas nesses últimos
tempos o estresse aumentou, e o próprio ministro Toffoli se viu na contingência
de ter que ser mais enfático. Certamente ele vinha tendo conversas de
bastidores, levando sua preocupação, porque ninguém está interessado num estado
de conflito permanente.
Eu mesmo estive com o presidente em março, quando
fiz um reparo sobre uma manifestação contra o isolamento social. E ele reclamou
da politização do debate, reclamou dos governadores. Ele estava atordoado.
Tinha um governo que aparentemente estava caminhando para um crescimento
econômico e se viu abalroado. Achava que o remédio, que era o isolamento
social, matava o doente. Eu o achei uma alma torturada, um indivíduo que
parecia muito só.
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