domingo, 14 de junho de 2020

Ainda sobre manifestações populares na pandemia


Caio Andrade*

Intervenção na plenária de movimentos sociais de Duque de Caxias – RJ 

Companheir@s,

A conjuntura é extremamente complexa, combinando crise sanitária, econômica e política. Portanto, o debate sobre as táticas do nosso movimento frente aos desafios colocados não é simples. Inicialmente, temos que reconhecer que a polêmica sobre ir às ruas em meio a uma pandemia ou não é absolutamente legítima. Podemos tranquilamente travar essa discussão e, independentemente de cada posição, analisar os pontos em comum para a unidade de ação contra o projeto dominante.

Dito isso, penso que é importante refletirmos sobre a hegemonia histórica da ideologia liberal na sociedade brasileira, inclusive no imaginário da assim chamada esquerda. Trata-se de um fenômeno danoso para a luta dos trabalhadores. Basta lembrarmos os acontecimentos dos últimos cinco anos. A direita tomou as ruas, promoveu um golpe e, enquanto isso, grande parte da esquerda acreditou até o fim que as instituições respeitariam o pacto social e o mandato presidencial de Dilma Rousseff. O desfecho da história todos nós conhecemos.

O mesmo Parlamento e o mesmo STF que chancelaram um impeachment por “pedalada fiscal”, mantêm no poder um capitão escancaradamente criminoso, genocida, miliciano, fascista. O que devemos aprender com isso? Que não são as leis nem as instituições que definem os rumos políticos do país, mas sim a luta de classes.

Diante de uma grave pandemia, porém, vimos novamente a ideologia liberal entrando em ação e desarmando politicamente a classe trabalhadora. Muitos companheiros e companheiras abraçaram a ideia de que o combate ao coronavírus dependia essencialmente das “escolhas” de cada indivíduo e, deixando o papel do Estado em segundo plano, substituíram palavras de ordem e bandeiras políticas por frases como “lave as mãos” ou “fique em casa”. Nada mais equivocado.

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Um olhar minimamente atento para o mundo comprova isso. Não foram as nações em que cada um simplesmente fez a sua parte que conseguiram controlar o coronavírus. Foram os países nos quais o Estado fez a sua parte que tiveram sucesso no combate ao COVID-19. Ou seja, antes de ser uma responsabilidade individual dos cidadãos, o enfrentamento efetivo à pandemia é uma decisão política, fruto da correlação de forças das classes sociais em luta.

Nesse sentido, é importante fazer uma rápida comparação. As nações do Norte que, segundo as mentes colonizadas, seriam mais racionais e evoluídas, têm sido verdadeiros exemplos negativos na pandemia. Enquanto isso, entre os países que reivindicam o socialismo e o poder de Estado é exercido de outra forma, como Vietnã, Cuba e China, temos os melhores exemplos de como conter a disseminação do novo coronavírus.

E o Brasil? Temos um governo que, além de não trabalhar para proteger a população da praga biológica global, está há três meses em campanha aberta contra as recomendações da OMS. A sabotagem da renda emergencial, além de atrasar os pagamentos, transformou as filas nas agências da Caixa Econômica Federal em armadilhas sanitárias. Mesmo governadores e prefeitos que até agora buscavam se diferenciar de Bolsonaro começam a reabrir o comércio. Os patrões, que exigem o deslocamento dos trabalhadores de segunda a sábado, só criticam as aglomerações quando se trata dos protestos populares aos domingos.

Grande parte do autoproclamado campo progressista, infelizmente, embarcou nesse discurso. Mas por quê? Porque insiste-se na lógica da responsabilidade individual, abstraindo o fato de que o Estado brasileiro nunca criou as condições para que a maior parte do povo tivesse direito ao isolamento. Muitas favelas sequer têm água! Como se não bastasse, este mesmo Estado burguês recrudesceu sua violência contra o povo favelado, fuzilando voluntários que entregavam cestas básicas e famílias dentro de suas casas.

Bolsonaro apostava que o caos poderia ser o cenário perfeito para avançar em seu projeto fascista. Mas não contava que os assassinatos de João Pedro, George Floyd e tantas outras vítimas do racismo estrutural pudessem despertar as massas para as consequências do projeto da extrema direita e para a necessidade urgente de derrotá-lo no único terreno possível: as ruas.

Nós sempre fomos a favor do isolamento sanitário e das recomendações da OMS. Reivindicamos do Estado a adoção das medidas aconselhadas pelos profissionais da saúde, mas a resposta passou muito longe das nossas exigências. A questão concreta é que o poder de Estado não está conosco. A classe que detém este poder decidiu que deveríamos morrer de fome ou pelos tiros disparados contra nossas casas. E nós fomos às ruas porque, mais uma vez, decidimos não morrer sem lutar.

Se não é possível sobreviver ficando em casa, a luta pela vida volta a ser travada nas ruas, com restrições aos grupos de risco e todos os cuidados sanitários possíveis. Os governos a serviço do capital não nos deixaram outra opção. A divergência sobre a legitimidade dos atos populares não é meramente tática. Trata-se de uma divergência estratégica entre os que buscam ressuscitar, com diferentes nuances, o liberalismo de esquerda derrotado em 2016 e os que entendem a necessidade de se construir o poder popular e a alternativa socialista.

Ter plena consciência dessa diferença e expô-la de forma sincera não implica em subestimar a necessidade de ampla unidade de ação em defesa das liberdades democráticas, contra Bolsonaro, Mourão e Guedes. Aqueles que, se dizendo progressistas, se posicionaram contra as manifestações populares no domingo (07/06), amanhã poderão estar conosco em outras batalhas.
Não há problema, desde que tenhamos convicção dos nossos objetivos; desde que nossas decisões táticas estejam a serviço da nossa estratégia e não de estratégias estranhas aos interesses da classe trabalhadora. Se soubermos precisamente onde queremos chegar, saberemos também quem serão nossos aliados táticos em cada momento da conjuntura e comprovaremos, na prática, quem são nossos aliados estratégicos.

* Professor da rede estadual de educação do Rio de Janeiro e membro do Comitê Central do PCB.


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