Por Gabriel Landi Fazzio
A recente
proliferação do chamado Coronavírus levanta uma série de dilemas que extravasam
o terreno das ciências médicas e adentram imediatamente o terreno das questões
sociais.
Isso já está evidente para cada trabalhador que observa as
desigualdades de classe em torno das quarentenas: enquanto os patrões se
refugiam em suas casas, as massas mais precarizadas da classe trabalhadora são
mantidas em aglomeração compulsória (as trabalhadoras e trabalhadores da
limpeza urbana, por exemplo, e outros milhares forçados a pegar transporte
público diariamente).
Mas há também uma
série de questões políticas em torno dos isolamentos e quarentenas – questões
que, quando não são negligenciadas, são exageradas. Um perfeito exemplo do
exagero a que nos referimos pode ser encontrado no artigo de Giorgio Agamben,
devidamente respondido por Slavoj Žižek, que sintetiza o problema:
“A reação de Agamben
é a forma extrema de uma postura generalizada da esquerda de ler o ‘pânico
exagerado’ causado pela propagação do vírus como uma mistura de exercícios de
poder de controle social e elementos de racismo total (‘culpar a natureza ou a
China’). No entanto, essa interpretação social não faz desaparecer a realidade
da ameaça. Essa realidade nos obriga a reduzir efetivamente nossas liberdades?”
[1]
Acredito, como Žižek,
que sim, precisamos restringir nossa liberdade em nome da quarentena. Se, por
um lado, isso significa rechaçar o exagerado temor conspiratório (que vê na
proliferação do coronavírus um plano dos poderosos para justificar o fechamento
autoritário de regimes políticos); por outro lado, é preciso manter um estado
de alerta ao longo dos meses que virão. Em um contexto de restrição voluntária
da liberdade civil (liberdade de ir e vir e se reunir, cedida voluntariamente
antes mesmo de qualquer decreto impondo toques de recolher e estados de
exceção), não é impossível conceber tentativas por parte da extrema-direita de
“aproveitar a oportunidade”, contando com a ausência de disposição das massas
em se reunir para protestar.
Mas, caso a situação evolua para patamares mais
críticos, tendentes ao fechamento do regime, a massa oprimida será posta diante
de uma opção, entre dois riscos: o risco político ou o risco médico; protestar
podendo adoecer, ou silenciar podendo acordar saudavelmente sob um regime de
força.
Žižek não parece
levar em conta essa possibilidade, e por isso afirma apenas vagamente:
“Quarentenas e
medidas similares, é claro, limitam nossa liberdade, e novos Assanges são
necessários aqui para revelar seus possíveis usos indevidos”. [1]
O exemplo de Assange
é confortável, pois permite a Žižek contornar o nó contraditório: Assange obtém
e ventila suas informações por computador, da segurança asséptica de sua casa.
Mas e depois disso? Revelado um uso abusivo da imposição de quarentenas,
bastará sua revelação para que ela se reverta? É evidente que não: será
necessário que tal informação revolte massas dispostas a reverter, pela sua
mobilização, tal quadro – mesmo que sob risco de contágio.
Ou até mesmo será
preciso conceber a resistência para que se realize sob métodos diversos das
manifestações de massas, que minimizem riscos de contágio em massa – métodos de
luta que correspondam à restrição da liberdade de ir e vir e da liberdade de
reunião, com a aplicação de métodos “de guerrilha” – ou seja: baseados em
pequenos grupos dispersos, com maior ou menor grau de centralização a depender
da forma de luta adotada (protestos, ocupações, pichações, etc…)
Mas, ao mesmo tempo,
o atual cenário de contágios e quarentena não pode ser apenas um momento para
temermos o avanço da ditadura dos proprietários e dos militares: deve ser,
também, uma oportunidade para a defesa intransigente da ditadura dos
despossuídos contra o desmando dos grandes proprietários. Só um poder baseado
na própria iniciativa das massas, e não na legalidade dos políticos burgueses,
poderá assegurar o direito dos trabalhadores à quarentena, em detrimento do
direito dos burgueses à mais-valia dos trabalhadores.
É o que perceberam os
portuários de Santos, decretando greve e paralisando suas atividades para
evitar o contágio. [2] Assim, sem esperar o bom senso dos representantes dos
capitalistas, tomaram em suas próprias mãos a decisão sensata de paralisar suas
atividades, transformando seu sindicato e sua greve em instrumentos de
exercício do seu poder.
O mesmo acontece com
o aumento especulativo dos preços: enquanto ao governos burgueses se recusam a
tabelar preços, só as associações de bairro e outras organizações populares
desse tipo pode exercer o papel de fiscalizar e coibir, pela sua própria
iniciativa, a especulação – confiscando, se necessário, os produtos dos
especuladores e distribuindo-os à população necessitada. [3]
Só esse Poder Popular
dos trabalhadores e camadas oprimidas da sociedade poderá, a curto prazo, impôr
aos governos burgueses que priorizem as vidas das massas aos lucros da minoria
de grandes proprietários. Só esse Poder Popular poderá, a longo prazo,
organizar uma sociedade cujas instituições reajam de modo planejado e sem
hesitar a calamidades desse tipo, porque não precisarão mais se equilibrar
entre os interesses mesquinhos dos grandes empresários e a demagogia social com
as massas populares.
O sucesso do governo
chinês no combate ao coronavírus [4] e o retumbante fracasso do liberalismo
diante desta pandemia são, cada vez mais, evidentes. Enquanto o mercado
especula com os preços, em países nos quais o mercado da saúde é menos
regulado, deixando povos inteiros à mercê da sanha burguesa por lucro; em
outros países, serviços públicos de saúde asseguram atendimento gratuito às
massas.
Mesmo tímidos governos de conciliação de classes, como o espanhol, já
são empurrados em direção à realização de “intervenções despóticas sobre o
direito de propriedade” (como diriam Marx e Engels no “Manifesto do Partido Comunista”),
requisitando à força a utilização da infraestrutura e da maquinaria de
hospitais privados para sua utilização pública, planejada e coordenada. [5]
Também nesse sentido se evidencia que apenas pela coerção (ou seja, pela
ditadura dos trabalhadores contra a burguesia, pela supressão da liberdade
absoluta da propriedade privada) será possível obter uma ação racional e
unificada no combate à pandemia.
A grande indústria farmacêutica, os grupos
hospitalares particulares, todos que especulam e lucram com o adoecimento e a
cura do povo, não darão nada de mão beijada, por puro bom-senso: ou serão
forçados a ceder, ou apenas verão na crise e na pandemia uma fonte de lucros
extraordinários.
Todos esses
episódios, que evidenciam a superioridade do planejamento público em detrimento
da especulação privada (que já se faz sentir nos preços de máscaras, álcool em
gel, vitamina C, entre outros produtos) nos oferecem um riquíssimo material a
partir do qual podemos amplificar nossa agitação contra a anarquia dos mercados
e nossa propaganda em defesa da reorganização socialista da sociedade.
Devemos
e podemos apontar reformas, medidas de urgência a serem adotadas – mas é
justamente a gravidade da situação que, colocando entre essas medidas de
urgência a necessidade da estatização imediata (mesmo que temporária) da
infraestrutura hospitalar, nos impõe a necessidade de uma agitação e uma
propaganda que ultrapassem o reformismo e apontem para os limites estruturais
do capitalismo no trato com a vida humana. É preciso escancarar essa verdade em
todas suas nuances. Apoiando-nos sobre a máxima de que a vida deve vir antes do
lucro [6], caminhamos para sua conclusão lógica: a necessidade de estatizar a
grande indústria farmacêutica e pôr sob controle democrático dos trabalhadores
toda infraestrutura e maquinaria indispensável ao tratamento médico.
[1]
https://tradutoresproletarios.wordpress.com/2020/03/17/zizek-monitorar-e-punir-sim-por-favor/
[2]
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/trabalhadores-do-porto-de-santos-podem-decretar-greve-por-conta-do-coronavirus.shtml
[3] Um bom exemplo
deste tipo de iniciativa é o caso chileno das Juntas de Abastecimento Popular:
https://lavrapalavra.com/2015/09/22/poder-popular-os-cordoes-industriais-e-comandos-comunais-no-chile/
[4] https://veja.abril.com.br/mundo/pela-primeira-vez-china-nao-registra-nenhum-caso-interno-de-coronavirus/
[5]
https://exame.abril.com.br/mundo/contra-coronavirus-espanha-estatiza-hospitais-privados/
[6]
https://ujc.org.br/a-vida-vem-antes-do-lucro-derrotar-bolsonaro-e-garantir-a-saude-dos-trabalhadores/
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