Foto: Alan Santos/PR |
por Pedro Marin |
Revista Opera
A convocação de
manifestações para o próximo dia 15, contra o Supremo Tribunal Federal e o
Congresso, surpreendeu muitos.
Primeiro, surpreendeu
aqueles que, a despeito do evidente desmanchar do sistema político e da
economia nacional frente a nossos olhos, acreditavam em uma normalidade que por
milagre ou feitiçaria se mantinha inquebrantável. O concreto todo se
desmanchava, mas eles gritavam: “Tudo está normal!”, “Freios e contrapesos!”,
“A República se mantém”.
Depois, surpreendeu
aqueles que imaginavam mil cenários em que os militares, no passado senhores do
golpismo, também por uma espécie de magia, se transformaram em “democratas”,
“nacionalistas” e “profissionais”. Se sobressaltaram por ter sido o general
Augusto Heleno quem convocou os atos, logo após o governo ter sido reforçado
por uma nova rodada de trocas ministeriais que favoreciam os fardados.
De novo pegos de
surpresa e afeitos às esperanças vazias, como foram em 2016, passaram a
procurar um novo representante de sua imaginária tendência, depositando
imediatamente sua fé de Jó em um Judas: escolheram um pronunciamento de Santos
Cruz em seu perfil no Twitter, contra o uso de imagens de generais nas chamadas
de manifestação, como prova de uma “disputa” no seio militar, como no passado
imaginavam nos tweets de Villas-Bôas não uma expressão de golpismo mas, ao
contrário, de “contenção democrática”.
Não se perguntaram quais seriam os
interesses centrais da imaginada disputa, nem com quanta força cada um dos
lados conta, nem sequer se a disputa por si só seria um truque. À profissão de
fé não interessa motivos, números ou engenhosas artimanhas. Basta repetir o
fraseado quantas vezes for necessário para que o espírito catártico se imponha
e domine o corpo daquele indisposto à luta.
Por fim, surpreendeu
também aqueles que, como os últimos, creem em encantos, mas não acreditando que
sejam conjurados por acasos, os imaginam como obra de copiosa fé. Estes no
entanto depositavam-na não nos brucutus de coturno, mas nos finos presidentes
parlamentares e nos honoráveis juízes. Vibraram com o recatado pronunciamento
de Rodrigo Maia como se fosse uma convocação à guerra. Comemoraram a chegada da
ordem do dia “impeachment” nas revistas semanais.
A normalidade que
imaginam não é senão a sua capacidade de adaptação. Às oito da manhã leem o
jornal, infartam, preparam as malas e imaginam uma composição wagneriana como
trilha sonora de sua vida. Às oito da noite, constatando que o apocalipse ainda
não chegou, desfazem as malas e voltam a soprar as sinfonias corriqueiras em
seus clarins, para no dia seguinte repetir o roteiro. A eles, a cada novo
choque prossegue uma nova esperança. A conformidade se constrói dia a dia. A
alguns, a cada aproximação, outra que a sucede.
O poder se conquista a passos
pequenos. Aos outros, a cada nova batalha anunciada, uma frustração nova que
não é liberada. A radicalização é feita como cachaça, num alambique de ódio,
gota a gota.
A normalidade, como
muito convém, dia a dia se torna mais anormal. Agora, percebem que ela não pode
ser, como nada é, obra do acaso. A febre passou, e perdem também a fé nos seus
paladinos – até que a recuperem no próximo trote dos cavalos. O general
autoriza as manifestações. Só se incomodara com questões relativas a direitos
de imagem. O presidente da Câmara balbucia contra o presidente e Heleno,
tentando compor uma saída, mas dá um passo atrás sobre o motivo das reclamações
do general, negociando os termos do orçamento impositivo, e nenhum à frente
quanto à estratégia que traçara, a da convocação da população às manifestações.
Acuado, o Parlamento se deixa tutelar, tentando convocar, por meio das
declarações à imprensa, uma força da natureza que tome consciência dos “perigos
à democracia” e interceda contra o presidente, derrotando seu Exército. Os
santos da antiga fé tornam-se agora feiticeiros. É a isto que a força
parlamentar foi reduzida. O que mais poderia fazer?
Em agosto do ano
passado, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, revelou por meio da imprensa
uma grave crise ocorrida entre abril e maio, que só se teria resolvido depois
de dezenas de reuniões com militares e autoridades. Em meio a ela, um general
próximo do presidente teria consultado um dos ministros do STF sobre a possibilidade
de um golpe de estado. Desde agosto se vão agora oito meses, sem que o
presidente do Supremo tenha revelado o nome do general golpista, e sem que
tenha sido importunado por nenhum dos poderes constitucionais, pelo quarto
poder ou pelo poder da oposição para que revelasse o arquiteto da anormalidade
anticonstitucional. É daqueles que receiam a palavra que esperaremos a espada
derradeira contra o golpismo?
O Parlamento e o
Supremo foram participantes ativos do golpe de 2016. Um aprovou-o, o outro se calou,
o autorizando. Foi também sob seu domínio que foi aprovada, sem protestos em
tribunal, a PEC 241, apelidada PEC da Morte, que congela por 20 anos o
orçamento de um país cuja Constituição estabelece uma miríade de direitos
sociais, em um espaço de terra que deve ter mais 23 milhões de habitantes
quando a acabar a vigência da emenda à constituição. Ou seja: o acréscimo da
PEC à Constituição haveria de ser uma edição corrigida da Constituição, a
revogação completa de seu artigo sexto.
Mas não viram ali contradição nenhuma
os parlamentares que a votaram, nem o Supremo que se calou. Ao contrário,
festejaram: se a lei não se impõe na realidade, que a realidade se imponha na
lei! São desses costureiros da Constituição que se espera a sua defesa?
Espera-se que os golpistas de ontem hoje se convertam na ponta de lança da
defesa da democracia? Que os arquitetos da guerra econômica contra o povo se
voltem contra a sua efetiva aplicação?
Se não por princípio,
por razão prática; pergunto novamente: que mais poderiam fazer? Dentro de seu
regime constitucional, no máximo derrubar um presidente que “encontra na sua
própria debilidade a sua força, e a sua respeitabilidade no desprezo que
inspira”* para colocar em seu lugar um general. E, fora de tal regime, muito
mais: se colocariam em disputa com todos aqueles poderes cujos defensores são,
de acordo com o regime, os regimentos dos generais.
E, portanto, também e
principalmente com estes últimos. Se seguem a cartilha contra Bolsonaro, chegam
a aos generais. Se a rasgam contra Bolsonaro, topam com eles no caminho, e
dificilmente teriam os meios para deixá-los para trás. Que mais poderiam fazer,
além de se deterem imóveis, com togas e gravatas, no topo do altar dos
tutelados?
Não se sabe ainda ao
certo em qual dos cavalos a burguesia apostaria, se somente em um tivesse de
apostar. O que é certo é que, por ora, é o Parlamento quem tem consentido.
Também é certo que Bolsonaro é o homem que janta em Mar-a-Lago, que assina
acordos militares com os EUA, que presenteia os militares, sendo ainda bem
recebido nas ditas federações de industriais brasileiras. Enquanto se tenta
convencer o presidente, cala-se sobre a redoma verde no governo.
Sinal de que é
no primeiro que se reconhece a autoridade da decisão, e nos militares a efetiva
decisão da autoridade; melhor sequer pronunciar seus nomes para que não sejam
convocados a decidir. Os coturnos dos generais afinal são capazes de pisar mais
firme sobre um povo em um contexto de crise do que o púlpito e a caneta.
Há pouco uma cidade
era aterrorizada por policiais. Um senador foi alvejado no peito. 241 pessoas
morreram em nove dias. Silêncio, enquanto as instituições trabalham. Mas
efetivo trabalho, no Ceará, só foi visto pelo Exército, que mais uma vez, pela
Garantia da Lei e da Ordem, pôde ocupar um Estado. Sinal de que até não tendo
seus nomes pronunciados acabam por decidir. E as palavras que ecoaram depois do
silêncio foram proferidas pelo Comandante da Força Nacional, enviado para
combater o motim, em elogio aos policiais amotinados. “Os ratos ficam pelo
caminho”, disse, dando aos amotinados o adjetivo de “gigantes”.
A oposição enquanto
isso prepara suas próprias marchas. O Dia Internacional da Mulher foi marcado
pelo tom de repúdio ao governo. Haverá ainda marchas no dia 14 – data em que se
completam dois anos dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes – e
18. Não se pode ter ilusões quanto a elas. Tendo de contar em grande parte com
a mobilização de organizações que ansiosamente aguardam pelas eleições de
outubro, é difícil imaginar que sejam suficientes para impedir a marcha – não a
do dia 15, mas a que por detrás dela avança. Se até o gigante Comício da
Central da Brasil, que mobilizara 200 mil sob a figura de Jango em 1964, foi
sucedido por um golpe, o prognóstico hoje pode não ser dos melhores.
Mas é certo também
que se a maré que se avoluma não será impedida por uma pequena demonstração de
força, menos ainda se fará com demonstração de força nenhuma. Incapazes de por
si só barrar o presidente e os coturnos, que sirvam como prenúncio da
necessária organização e mobilização do povo. Que não figuremos também no altar
dos tutelados!
*Karl Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte.
EM TEMPO: O presidente Bolsonaro tende a atirar para tudo quanto é de lado para não ter Eleições em 2022, permanecendo o mesmo no Poder, numa Ditadura Pessoal/Militar/Empresarial. Vamos lutar para que isso não aconteça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário