terça-feira, 10 de março de 2020

A marcha de Bolsonaro e o altar dos tutelados

Foto: Alan Santos/PR


por Pedro Marin | Revista Opera

A convocação de manifestações para o próximo dia 15, contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, surpreendeu muitos.
Primeiro, surpreendeu aqueles que, a despeito do evidente desmanchar do sistema político e da economia nacional frente a nossos olhos, acreditavam em uma normalidade que por milagre ou feitiçaria se mantinha inquebrantável. O concreto todo se desmanchava, mas eles gritavam: “Tudo está normal!”, “Freios e contrapesos!”, “A República se mantém”.
Depois, surpreendeu aqueles que imaginavam mil cenários em que os militares, no passado senhores do golpismo, também por uma espécie de magia, se transformaram em “democratas”, “nacionalistas” e “profissionais”. Se sobressaltaram por ter sido o general Augusto Heleno quem convocou os atos, logo após o governo ter sido reforçado por uma nova rodada de trocas ministeriais que favoreciam os fardados.
De novo pegos de surpresa e afeitos às esperanças vazias, como foram em 2016, passaram a procurar um novo representante de sua imaginária tendência, depositando imediatamente sua fé de Jó em um Judas: escolheram um pronunciamento de Santos Cruz em seu perfil no Twitter, contra o uso de imagens de generais nas chamadas de manifestação, como prova de uma “disputa” no seio militar, como no passado imaginavam nos tweets de Villas-Bôas não uma expressão de golpismo mas, ao contrário, de “contenção democrática”. 
Não se perguntaram quais seriam os interesses centrais da imaginada disputa, nem com quanta força cada um dos lados conta, nem sequer se a disputa por si só seria um truque. À profissão de fé não interessa motivos, números ou engenhosas artimanhas. Basta repetir o fraseado quantas vezes for necessário para que o espírito catártico se imponha e domine o corpo daquele indisposto à luta.
Por fim, surpreendeu também aqueles que, como os últimos, creem em encantos, mas não acreditando que sejam conjurados por acasos, os imaginam como obra de copiosa fé. Estes no entanto depositavam-na não nos brucutus de coturno, mas nos finos presidentes parlamentares e nos honoráveis juízes. Vibraram com o recatado pronunciamento de Rodrigo Maia como se fosse uma convocação à guerra. Comemoraram a chegada da ordem do dia “impeachment” nas revistas semanais.
Continue lendo
A normalidade que imaginam não é senão a sua capacidade de adaptação. Às oito da manhã leem o jornal, infartam, preparam as malas e imaginam uma composição wagneriana como trilha sonora de sua vida. Às oito da noite, constatando que o apocalipse ainda não chegou, desfazem as malas e voltam a soprar as sinfonias corriqueiras em seus clarins, para no dia seguinte repetir o roteiro. A eles, a cada novo choque prossegue uma nova esperança. A conformidade se constrói dia a dia. A alguns, a cada aproximação, outra que a sucede. 
O poder se conquista a passos pequenos. Aos outros, a cada nova batalha anunciada, uma frustração nova que não é liberada. A radicalização é feita como cachaça, num alambique de ódio, gota a gota.
A normalidade, como muito convém, dia a dia se torna mais anormal. Agora, percebem que ela não pode ser, como nada é, obra do acaso. A febre passou, e perdem também a fé nos seus paladinos – até que a recuperem no próximo trote dos cavalos. O general autoriza as manifestações. Só se incomodara com questões relativas a direitos de imagem. O presidente da Câmara balbucia contra o presidente e Heleno, tentando compor uma saída, mas dá um passo atrás sobre o motivo das reclamações do general, negociando os termos do orçamento impositivo, e nenhum à frente quanto à estratégia que traçara, a da convocação da população às manifestações. 
Acuado, o Parlamento se deixa tutelar, tentando convocar, por meio das declarações à imprensa, uma força da natureza que tome consciência dos “perigos à democracia” e interceda contra o presidente, derrotando seu Exército. Os santos da antiga fé tornam-se agora feiticeiros. É a isto que a força parlamentar foi reduzida. O que mais poderia fazer?
Em agosto do ano passado, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, revelou por meio da imprensa uma grave crise ocorrida entre abril e maio, que só se teria resolvido depois de dezenas de reuniões com militares e autoridades. Em meio a ela, um general próximo do presidente teria consultado um dos ministros do STF sobre a possibilidade de um golpe de estado. Desde agosto se vão agora oito meses, sem que o presidente do Supremo tenha revelado o nome do general golpista, e sem que tenha sido importunado por nenhum dos poderes constitucionais, pelo quarto poder ou pelo poder da oposição para que revelasse o arquiteto da anormalidade anticonstitucional. É daqueles que receiam a palavra que esperaremos a espada derradeira contra o golpismo?
O Parlamento e o Supremo foram participantes ativos do golpe de 2016. Um aprovou-o, o outro se calou, o autorizando. Foi também sob seu domínio que foi aprovada, sem protestos em tribunal, a PEC 241, apelidada PEC da Morte, que congela por 20 anos o orçamento de um país cuja Constituição estabelece uma miríade de direitos sociais, em um espaço de terra que deve ter mais 23 milhões de habitantes quando a acabar a vigência da emenda à constituição. Ou seja: o acréscimo da PEC à Constituição haveria de ser uma edição corrigida da Constituição, a revogação completa de seu artigo sexto. 
Mas não viram ali contradição nenhuma os parlamentares que a votaram, nem o Supremo que se calou. Ao contrário, festejaram: se a lei não se impõe na realidade, que a realidade se imponha na lei! São desses costureiros da Constituição que se espera a sua defesa? Espera-se que os golpistas de ontem hoje se convertam na ponta de lança da defesa da democracia? Que os arquitetos da guerra econômica contra o povo se voltem contra a sua efetiva aplicação?
Se não por princípio, por razão prática; pergunto novamente: que mais poderiam fazer? Dentro de seu regime constitucional, no máximo derrubar um presidente que “encontra na sua própria debilidade a sua força, e a sua respeitabilidade no desprezo que inspira”* para colocar em seu lugar um general. E, fora de tal regime, muito mais: se colocariam em disputa com todos aqueles poderes cujos defensores são, de acordo com o regime, os regimentos dos generais. 
E, portanto, também e principalmente com estes últimos. Se seguem a cartilha contra Bolsonaro, chegam a aos generais. Se a rasgam contra Bolsonaro, topam com eles no caminho, e dificilmente teriam os meios para deixá-los para trás. Que mais poderiam fazer, além de se deterem imóveis, com togas e gravatas, no topo do altar dos tutelados?
Não se sabe ainda ao certo em qual dos cavalos a burguesia apostaria, se somente em um tivesse de apostar. O que é certo é que, por ora, é o Parlamento quem tem consentido. Também é certo que Bolsonaro é o homem que janta em Mar-a-Lago, que assina acordos militares com os EUA, que presenteia os militares, sendo ainda bem recebido nas ditas federações de industriais brasileiras. Enquanto se tenta convencer o presidente, cala-se sobre a redoma verde no governo. 
Sinal de que é no primeiro que se reconhece a autoridade da decisão, e nos militares a efetiva decisão da autoridade; melhor sequer pronunciar seus nomes para que não sejam convocados a decidir. Os coturnos dos generais afinal são capazes de pisar mais firme sobre um povo em um contexto de crise do que o púlpito e a caneta.
Há pouco uma cidade era aterrorizada por policiais. Um senador foi alvejado no peito. 241 pessoas morreram em nove dias. Silêncio, enquanto as instituições trabalham. Mas efetivo trabalho, no Ceará, só foi visto pelo Exército, que mais uma vez, pela Garantia da Lei e da Ordem, pôde ocupar um Estado. Sinal de que até não tendo seus nomes pronunciados acabam por decidir. E as palavras que ecoaram depois do silêncio foram proferidas pelo Comandante da Força Nacional, enviado para combater o motim, em elogio aos policiais amotinados. “Os ratos ficam pelo caminho”, disse, dando aos amotinados o adjetivo de “gigantes”.
A oposição enquanto isso prepara suas próprias marchas. O Dia Internacional da Mulher foi marcado pelo tom de repúdio ao governo. Haverá ainda marchas no dia 14 – data em que se completam dois anos dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes – e 18. Não se pode ter ilusões quanto a elas. Tendo de contar em grande parte com a mobilização de organizações que ansiosamente aguardam pelas eleições de outubro, é difícil imaginar que sejam suficientes para impedir a marcha – não a do dia 15, mas a que por detrás dela avança. Se até o gigante Comício da Central da Brasil, que mobilizara 200 mil sob a figura de Jango em 1964, foi sucedido por um golpe, o prognóstico hoje pode não ser dos melhores.
Mas é certo também que se a maré que se avoluma não será impedida por uma pequena demonstração de força, menos ainda se fará com demonstração de força nenhuma. Incapazes de por si só barrar o presidente e os coturnos, que sirvam como prenúncio da necessária organização e mobilização do povo. Que não figuremos também no altar dos tutelados!
*Karl Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte.

EM TEMPO: O presidente Bolsonaro tende a atirar para tudo quanto é de lado para não ter Eleições em 2022,  permanecendo o mesmo no Poder, numa Ditadura Pessoal/Militar/Empresarial. Vamos lutar para que isso não aconteça. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário