Foto: Lula Marques via Agência Pública |
Yahoo Notícias, Redação.
Por Anna Beatriz Anjos, da AGÊNCIA PÚBLICA
“Publiquei milhares de documentos
secretos do mundo todo, do governo mais poderoso [EUA], e nunca aconteceu nada,
mas aqui no Brasil estamos publicando documentos menos sensíveis e um
procurador do Ministério Público está tentando me processar”.
É assim que o
jornalista norte-americano Glenn Greenwald se refere à denúncia que o
procurador da República Wellington Divino de Oliveira ofereceu contra ele e
mais seis pessoas na última terça-feira (21). O representante do Ministério
Público Federal (MPF) imputou ao grupo crimes relacionados à invasão de
celulares de autoridades brasileiras no caso que deu origem à série de
reportagens Vaza Jato, publicada pelo The Intercept Brasil em
parceria com outros veículos como a Agência Pública.
O jornalista contesta a interpretação
do procurador sobre o diálogo destacado na denúncia – nele, um dos envolvidos
no vazamento das mensagens pede conselhos a Greenwald, que responde não poder
dar orientações ao grupo e assegura a proteção ao sigilo da fonte, uma garantia
constitucional. “A Polícia Federal, sob o comando do ministro Sergio Moro, há
menos de dois meses, emitiu um relatório falando que não tem evidência nenhuma
de que cometi qualquer crime”, destaca, lembrando que a própria Polícia Federal
concluiu a partir do mesmo diálogo que não houve irregularidade na atuação do
jornalista.
Glenn também ressalta que a peça do
MPF desrespeita a decisão do Supremo Tribunal Federal de agosto de 2019 que
proibiu investigações contra ele. “Acho que eles querem uma guerra com o STF,
querem dar um sinal de que não se importam com as regras, com o STF, com a
lei”, avalia.
Greenwald ainda compara os ataques
que ele e sua família vêm sofrendo desde a publicação das primeiras matérias da
Vaza Jato, em junho do ano passado, às ameaças de que foi alvo em 2013, quando
investigou programas secretos de vigilância global da Agência de Segurança
Nacional norte-americana (NSA) a partir dos vazamentos de Edward Snowden. Sobre
sua situação atual, ele afirma: “é um caso muito mais drástico”.
O procurador Wellington Divino de Oliveira afirma,
na denúncia, que você “auxiliou, incentivou e orientou, de maneira direta, o
grupo criminoso, durante a prática delitiva, agindo como garantidor do grupo,
obtendo vantagem financeira com a conduta aqui descrita”. Qual o seu
posicionamento sobre isso?
Foi uma surpresa enorme, obviamente,
porque a Polícia Federal, sob o comando do ministro Sergio Moro, há menos de
dois meses, emitiu um relatório falando que não tem evidência nenhuma de que
cometi qualquer crime e, além disso, que sempre fiz meu trabalho jornalístico
com muita cautela e responsabilidade para evitar qualquer participação em
qualquer crime. Quando a Polícia Federal me inocenta, falando que não tem crime
nenhum depois de oito meses de investigação, você presume que não vai haver um
procurador que vai tentar te processar criminalmente. Depois de saber que é o
mesmo procurador que tentou processar o Felipe Santa Cruz [presidente da OAB]
pelas críticas ao ministro Moro, que ele considerou um crime, tudo faz sentido,
porque o Bolsonaro me ameaçou várias vezes com prisão, tem muitas pessoas em
seu governo que não acreditam numa imprensa livre e acreditam que a liberdade
de imprensa deveria ser crime, como era durante a ditadura.
Meses antes, após analisar o mesmo diálogo, a
investigação da Polícia Federal no âmbito da operação Spoofing apontou que você
se mostrou cauteloso quanto a não participar da execução do crime. Por que MPF
e PF chegaram a conclusões diferentes a partir de um mesmo fato, na sua
opinião?
Todo o mundo democrático, em outros
países e dentro do Brasil – inclusive políticos e jornalistas com ideologias
bem diferentes da minha –, todos estão lendo esse trecho e dizendo que está o
contrário do que o Ministério Público falou. Eu disse explicitamente: “não
posso te dar conselho, não posso te dar orientações sobre o que você deveria
fazer”. Ele [Luiz Molição, um dos representantes do grupo] me perguntou: “eu
devo apagar as conversas que estou tendo com você?”, e era minha obrigação
ética, primeiramente para proteger minha fonte, como a Constituição brasileira
garante, e, em segundo lugar, era minha obrigação ética avisar a ele que estava
gravando nossas conversas e mantendo nossas conversas em texto para me proteger
e proteger a ele.
Tentar interpretar esse trecho para dizer exatamente o oposto
e me processar criminalmente é um abuso de poder. Eu não disse nada, mas mesmo
se o fizesse, se quisesse dar conselhos à fonte de como não ser detectado, isso
não seria um crime, isso é a obrigação ética de todo jornalista, e todos os
grandes jornais no mundo estão oferecendo às suas fontes dicas de como se
comunicar com criptografia para não serem detectadas.
Mesmo que você tivesse oferecido a ele algum
conselho de como se proteger, considera que isso seria apenas sua função como
jornalista e não um crime?
Eu faço isso com todas as minhas
fontes. Se você olhar nos sites do The New York Times, do The
Washington Post ou do The Guardian, todos têm documentos
sobre como as fontes devem usar a tecnologia e se comunicar com seus repórteres
para se esconder, para não ser detectado. Criminalizar a ajuda que o jornalista
dá a uma fonte para que não seja pega pela polícia quando está passando
documentos ou informações de interesse público é criminalizar o jornalismo,
porque todos os dias jornalistas éticos fazem isso.
Avalia que houve desrespeito do MPF à liminar do
STF que proibia que você fosse investigado ou indiciado?
Obviamente. Era uma decisão de um
órgão do Judiciário, do STF, para não me investigar. Como eles podem me
denunciar quando estão proibidos de me investigar? Acho que eles querem uma
guerra com o STF, querem dar um sinal de que não se importam com as regras, com
o STF, com a lei. Eles [MPF] vão usar seu poder de qualquer maneira contra os
seus adversários, seus inimigos, seus críticos para assustar o país, para
mostrar ao país “nós temos esse poder em nossas mãos e não nos importamos com o
que o STF fala, o que a Polícia Federal fala, o que os jornalistas no Brasil e
no mundo falam. Vamos atacar qualquer pessoa que está contra nós” – exatamente
como a ditadura militar fez. Esse é o objetivo e a tática.
Na sua análise, a denúncia foi uma atitude
específica do procurador Wellington Divino de Oliveira ou do MPF como um todo?
Você a enxerga como uma retaliação do MPF?
Obviamente, esse procurador
específico provou que quer usar seu cargo público para punir inimigos políticos
do Sergio Moro quando tentou — mas fracassou — processar criminalmente o Felipe
Santa Cruz pelas críticas feitas ao ministro. É muito irônico, além desse
procurador, o fato de que nossas reportagens da Vaza Jato eram exatamente sobre
isso: como o Ministério Público foi contaminado pela corrupção dentro da força
tarefa da Lava Jato e pelo então juiz Sergio Moro, que eles tinham essa
mentalidade de que iriam usar o poder do Ministério Público e do Judiciário sem
limites para alcançar seus objetivos políticos. É o que nossas reportagens
mostram e, em resposta, eles estão fazendo exatamente isso.
Desde que as primeiras reportagens da série Vaza
Jato foram divulgadas, em junho do ano passado, você e sua família foram
atacados e ameaçados – houve inclusive o episódio em que um blogueiro divulgou
notícias falsas sobre sua mãe, você chegou a processá-lo posteriormente. Como é
para você, depois de tudo isso, ser alvo de uma denúncia do MPF?
Foram nove meses muito difíceis para
mim, meu marido e nossa família, nossos filhos. Nós saímos sem segurança
armada, sem carro blindado. Fui ameaçado pessoalmente pelo presidente da
República várias vezes com prisão, e agora tem essa denúncia. Também fui
agredido fisicamente pelo Augusto Nunes. Eu sabia, quando decidi fazer essas
reportagens com meus colegas do The Intercept Brasil, que tudo isso
ia acontecer, porque quando você enfrenta um governo poderoso, autoritário,
eles vão te atacar. Aprendi isso no caso Snowden, mas tudo isso que aconteceu
foi muito além do caso Snowden. Os ataques foram muito mais diretos, drásticos
e violentos do que os que aconteceram no caso Snowden.
Em 2013, você investigou os programas secretos de
vigilância global da NSA a partir dos vazamentos de Edward Snowden. Ou seja,
não é a sua primeira vez fazendo reportagens que contrariam interesses de
poderosos. De que forma as situações anteriores diferem do que você tem vivido
nos últimos meses?
No começo, quando recebi os arquivos,
falei com essa fonte e conversei com o David [Miranda, seu companheiro e
deputado federal pelo Psol do Rio de Janeiro] sobre o que íamos fazer, eu
disse: “olha, já fiz isso, sabemos como fazer, faremos tudo juntos”. Foi o
David que falou: “acho que você não está pensando sobre isso da forma correta,
isso vai ser muito mais perigoso e difícil porque o Brasil não é os Estados
Unidos”. Também, na época do Snowden, os governos que ficaram chateados com
minhas reportagens estavam longe, havia uma distância grande entre mim e eles.
Agora, como o David disse, o governo que ficou chateado está próximo, é o
governo do país onde moramos, e ele disse também que esses caras são
autoritários, violentos. Ele me avisou que esse caso seria muito mais perigoso,
muito mais difícil, mais brutal, e tinha razão.
É possível dizer qual das situações é mais grave?
No caso de Snowden, os governos que
estavam chateados eram os governos mais poderosos do mundo, principalmente o
dos Estados Unidos – CIA, FBI e NSA estavam me ameaçando o tempo todo. Não
consegui sair do Brasil por um ano por causa dessas ameaças. Mas, no fim das
contas, nem o governo dos Estados Unidos, nem o da Inglaterra me processaram.
Ameaçaram fazer isso contra o David quando ele foi detido por horas sob a lei
antiterrorismo [em agosto de 2013, Miranda foi detido e interrogado por oito
horas no aeroporto de Londres durante uma escala], mas no fim das contas não o
fizeram, concluíram que nossa reportagem era protegida pela Constituição
norte-americana, e a imprensa livre não permitiu que me processassem.
É
incrível porque publiquei milhares de documentos secretos do mundo todo, do
governo mais poderoso, e nunca aconteceu nada, mas aqui no Brasil estamos
publicando documentos menos sensíveis e agora pelo menos um procurador do
Ministério Público está tentando me processar. Também há todas as ameaças,
inclusive ameaças vindo do presidente da República. É um caso muito mais
drástico.
Quais providências legais você tomará a partir de
agora?
Esse procurador, como eu disse,
tentou processar, em um caso absurdo, o Felipe Santa Cruz e fracassou – o
Judiciário rejeitou a denúncia. Obviamente, temos advogados muito competentes
que vão ao juiz mostrar as evidências encontradas pela Polícia Federal e todos
os argumentos legais que existem para tentar persuadi-lo a fazer a mesma coisa
com esse procurador, que de novo está abusando do aparato do Estado para
perseguir adversários políticos do governo. Vamos tentar persuadir o juiz para
rejeitar essa denúncia. Também, obviamente, o STF vai ter um papel bem
importante, porque já havia uma decisão protegendo minha liberdade de imprensa.
Não sei exatamente o que vai acontecer mas o Judiciário terá um papel muito
importante.
Que tipo de precedente essa situação abre? Quais os
riscos à atividade da imprensa brasileira como um todo?
O Brasil tem um presidente eleito que
disse muitas vezes nos últimos trinta anos simplesmente não acreditar na
democracia. Ele não acredita na imprensa livre e na liberdade de expressão, ele
apoia o retorno da ditadura militar – disse isso muitas vezes. No último
discurso que deu antes do primeiro turno das eleições em 2018, ele prometeu um
Brasil sem a Folha de S. Paulo. Ele está o tempo todo incitando
deliberadamente ataques a jornalistas que publicam material de que ele não
gosta – isso é uma mentalidade de líderes autoritários. Ele está tentando criar
um clima para que jornalistas tenham medo, para que se sintam intimidados. Esse
é o objetivo: criar um clima em que o jornalismo e a liberdade de imprensa
sejam impossíveis.
Muito se tem dito que as instituições do Brasil
estão funcionando normalmente. Após a denúncia do MPF, você acredita nisso?
Há um debate a respeito de qual país o Brasil vai
ser: vai ser uma democracia ou não? Acho que muitas instituições brasileiras
estão reagindo às ameaças de forma muito impressionante, inclusive o STF, o
Congresso Nacional e a mídia estão, em vários aspectos, impedindo o que o
Bolsonaro quer fazer. Se você olha o Olavo de Carvalho, o Eduardo e o Carlos
Bolsonaro, eles estão falando de maneira muito clara: “exatamente porque
existem instituições que estão contra a gente é que precisamos ser mais
agressivos”. Por isso o Eduardo pediu o retorno do AI-5: para dar um sinal
muito claro. Ele não é bobo, sabe exatamente o que está fazendo, quer dar um
sinal muito claro de que, se a oposição se tornar mais forte, continuar a
impedir o que Bolsonaro quer fazer, eles vão usar violência e repressão. Então,
para mim a luta é exatamente saber se o Brasil vai continuar a ser uma
democracia ou não.
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