por Pedro Marin
Revista Opera
Em julho de 2017, o
general Villas-Bôas, àquele momento Comandante do Exército, declarou que
“reconhecia como positivo” o governo repensar o uso das Forças Armadas em
operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), já que tal uso, nas palavras do
general, “é inócuo e, para nós, é constrangedor.” Vinte e três dias depois, o
presidente Michel Temer anunciava um novo decreto de GLO para o Rio de Janeiro,
para depois, em fevereiro de 2018, decretar a intervenção federal no Estado,
colocando sua Segurança Pública sob comando do general Walter Souza Braga
Netto, chefe do Comando Militar do Leste.
Braga Netto não o
desejava. Considerava-a uma medida extrema, substituível pela já em vigor
Garantia de Lei e da Ordem. Ainda assim, o interventor foi ao gabinete do
presidente, acompanhado de Villas-Bôas, fazendo três solicitações: mais
recursos para a intervenção, mandatos coletivos de busca e apreensão e
flexibilização das regras para a tropa, dentre as quais a autorização para
atirar contra indivíduos com “intenção hostil.”
Quase dois anos
depois, é o presidente Jair Bolsonaro quem atende a uma das demandas dos
generais, expandindo-a. Durante o lançamento de seu novo partido, o “Aliança
Pelo Brasil”, o presidente anunciou ter encaminhado para o Congresso o projeto
de lei 6125/2019, composto pelo Ministro da Defesa, Fernando Azevedo, o da
Justiça, Sérgio Moro, e pelo ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência
da República, Jorge Oliveira, visando isentar de punição militares e policiais
que cometam excessos durante operações de Garantia da Lei e da Ordem. Ou, nas
palavras do PL, para estabelecer “regras flexíveis” durante tais operações.
Disse o presidente,
quando anunciando o PL: “Não adianta alguém estar muito bem de vida se está
preocupado com medo de sair na rua com medo de ladrão de celular. Ladrão de
celular tem que ir para o pau.” Declarou também: “Vamos depender agora, meus
parlamentares, deputados e senadores, de aprovar isso lá. Será uma grande guinada
no combate à violência no Brasil. Nós temos como diminuir e muito o número de
mortes por 100 mil habitantes no Brasil.”
O presidente pretende
acionar o dispositivo da GLO, previsto, de acordo com o próprio projeto de lei,
para situações em que “há o esgotamento das forças tradicionais de segurança
pública, em graves situações de perturbação da ordem”, para reduzir o roubo de
celulares? Usará uma manobra na qual, de novo de acordo com o próprio PL, “as
Forças Armadas agem de forma episódica, em área restrita e por tempo
ilimitado”, para reduzir o número de mortes anuais em todo o País?
Apesar da afeição
presidencial pelo absurdo, não se trata disso. As manifestações no Equador e
Chile assustaram a família Bolsonaro. Mais: foram tomadas, como devem ser por
nós, como guias de estudo, casos a serem esquadrinhados, movimentos a serem
minuciosamente estudados. Durante seu giro pela Ásia, o presidente declarou, em
Tóquio, que, havendo cá manifestações com as de lá, jogaria o Exército nas
ruas. Reforçou o recado enquanto estava na China, chamando os manifestantes
chilenos de “terroristas” e dizendo que a Defesa no Brasil monitora a situação
no país vizinho e deve estar preparada para um eventual acionamento das Forças
Armadas para, adivinhem, a “garantia da lei e da ordem”. Eduardo Bolsonaro
repetiu o pai, dizendo que se o espírito que ronda o Chile passeasse pelo
Brasil, “iam se ver com a polícia”, e que se “eles” (quem?) radicalizarem “do
lado de lá” (qual?) “a história ia se repetir” (que parte?).
Em entrevista à
jornalista Leda Nagle, foi por fim menos ambíguo, dizendo que “se a esquerda
radicalizar” como no Chile, “alguma resposta vai ter de ser dada”. Citou, por
fim, o AI-5. O general Heleno, à frente do GSI – reformado por Etchegoyen, sob
o governo Temer – disse que “se falou [em AI-5], tem que estudar como vai
fazer”, que “se houver uma coisa no padrão do Chile, é lógico que tem que fazer
alguma coisa para conter. Mas até chegar a esse ponto tem um longo caminho”
(percebam que a preocupação do general é com a distância, não com a direção) e,
por fim, que “essas coisas, hoje, num regime democrático… é complicado. Tem que
passar em um monte de lugares. Não é assim.
O projeto do Moro, fundamental para
conter crime, não passa. Fazem de tudo para não passar. O pessoal não quer, não
quer nada que possa organizar o país. Não quer dizer que isso vai organizar o
país. Mas isso aí não é assim, vou fazer e faz. Então, não tenho o que falar.”
Todos estes parágrafos, sobre coisas fundamentais, um monte de lugares, complicações
e organização, de um homem que, afinal, não tinha o que falar!
A despeito de todas
estas velhas coisas que emergem como notícias, da velha luta de classes que
toma ruas e incendeia, dos velhos generais que ocupam governos – e que os
derrubam, como na Bolívia, ou os sustentam, como no Equador e no Chile -, e dos
empoeirados atos institucionais, que renascem no horizonte das escolhas
governamentais, vemos cá uma novidade: a fundação de um partido por um
Presidente em pleno mandato não acontece, ao menos, desde que a República foi
fundada, há 130 anos, e, ao menos desde a redemocratização, um mesmo homem não
ocupa a cadeira presidencial ao mesmo tempo que ocupa a presidência de seu
partido.
E estes fatos novos
carregam implicações: à medida que se isola, Bolsonaro haverá de radicalizar.
Se não na ação, no discurso; se não para manter suas bases ativas e
mobilizadas, para compensar sua falta. É em torno de nosso novo Bonaparte,
afinal, que o partido se organiza, e só em torno dele. Por outro lado, prevalece
a observação feita em maio passado: Bolsonaro não tem poder próprio. Poderá
buscá-lo agora, enfim, com seu novo partido – mas para que o consolide, haverá
de mudar ou costurar novas alianças. No quantitativo, perde, para poder talvez,
se com a anuência de antigos novos aliados, ganhar no qualitativo. O projeto de
lei sobre as GLOs nos aponta, claramente, quem são os aliados buscados, e é
portanto a mais importante ação desde que colocou sob seu peito a faixa
verde-amarela.
Se aprovado, em
especial em um momento de isolamento, deixará claro que aquelas forças
“democráticas” da institucionalidade, pelas quais procuram uma série de figuras
amorfas para formar “frente amplas”, rubricam a possibilidade de o presidente,
sozinho – já que é só dele a premissa de convocar uma operação para a garantia
da lei e da ordem – despoticamente estabelecer seu domínio, governando a ferro,
fogo e força, sem restrições, por meio de GLOs. Se não o for, não perde também
o Partido Fardado: afinal, qualquer passo de Bolsonaro que o aproxime da
renúncia aproxima por extensão Mourão da presidência.
Não é por acaso,
portanto, que tenha-se ouvido no lançamento do Aliança Pelo Brasil gritos
entoando a morte de “esquerdistas”. Nem que na entrada da convenção do novo
partido um painel de 50kgs, feito com balas de revólver, ilustrasse seu
símbolo. Por fim, talvez um acaso, que nos dá valiosa advertência: na busca
pelo número “38” para o novo partido, o presidente esbarra nas pretensões do
deputado federal Capitão Augusto, que pretendia usar o número para a sigla que
procura criar: a do Partido Militar Brasileiro. Que não nos assustemos no
futuro se um “personagem medíocre e grotesco” acabar por, como escreveu Marx em
prefácio d’O 18 Brumário de Louis Bonaparte, “representar o papel de herói”, nem
o tomemos como “um raio que caísse de um céu sereno”. Sérios indicativos,
vários, já temos.
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