quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

51 anos depois: AI-5 nunca mais!





Manifestação no Rio de Janeiro em 1968 (Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã)

No momento em que o fantasma da ditadura volta a nos assombrar através de medidas governamentais que vão transformando o Estado brasileiro num estado policialesco e cada vez mais repressor, assim como por intermédio das ameaças abertas proferidas pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, que afirmou ser necessário um “novo AI-5” caso aconteçam no Brasil manifestações populares como as que ocorrem hoje no Chile, ameaças estas que foram ratificadas em seguida pelo Ministro Paulo Guedes e volta e meia aparecem, de forma velada ou não, na boca do atual presidente da República e de seus seguidores, defensores de uma saída abertamente autocrática e reacionária para o Brasil, consideramos de fundamental importância reeditar, com pequenas adaptações, o artigo de Edmilson Costa, Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado em 12 de dezembro de 2018.
Secretaria Nacional de Comunicação do PCB)
Meio século de AI-5: ditadura nunca mais!
Edmilson Costa*
O Ato Institucional nº 5, editado pela ditadura militar em dezembro de 1968, completou, no dia 13 de dezembro (de 2018), 50 anos. Trata-se de recordação sombria de um instrumento autoritário que abriu espaço para a ditadura aberta de cunho fascista, o terrorismo de Estado, as prisões, torturas, mortes e desaparecimentos de presos políticos, verdadeiros crimes de lesa-humanidade que até hoje não foram punidos no Brasil. 
É fundamental que as novas gerações, mais de 100 milhões de brasileiros que não viveram a ditadura, compreendam as barbaridades, a censura aos meios de comunicações, ao teatro, ao cinema, à música, à literatura, as perseguições políticas, cassações de mandatos de parlamentares e políticos em geral e o clima de terror e medo que caracterizaram o período ditatorial. Pelos cálculos de diversos historiadores e da Comissão Nacional da Verdade, no período da ditadura, mais de 50 mil brasileiros foram presos, cerca de 7 mil foram exilados, mais de uma centena banidos, 434 foram mortos ou estão desaparecidos e 800 foram julgados pelos tribunais militares [1].

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Vale ressaltar que a ditadura foi implantada em 31 de março de 1964, quando o presidente João Goulart foi deposto, por meio de um golpe militar que contou com apoio empresarial, objetivando salvar as classes dominantes que estavam politicamente derrotadas pela intensa mobilização popular da época. Por isso implantaram um regime que subtraiu as liberdades democráticas, impôs o arrocho salarial, ampliou a desnacionalização da economia, com maior favorecimento ao capital internacional, e se alinhou à política de guerra fria no interesse do imperialismo estadunidense, cujo país forneceu as informações de inteligência, as técnicas de tortura e apoio diplomático aos golpistas. 
As principais mazelas que hoje se expressam na sociedade brasileira têm seu DNA nas medidas que foram implantadas durante o período ditatorial, especialmente a perversa distribuição de renda, uma economia de baixos salários, cuja matriz perdura até hoje, e a ampliação do poder de uma classe dominante truculenta, antidemocrática e reacionária.
É importante também ressaltar que o golpe militar de 1964 contribuiu para uma mudança de correlação de forças na geopolítica internacional e abriu espaço para o período de golpes militares em vários continentes. Como disse o ex-embaixador dos Estados Unidos, o golpe no Brasil teve o mesmo impacto do Plano Marshall, o bloqueio de Berlim ou a guerra na Coreia [2], afinal o Brasil tinha a maior economia, a maior população e o maior território da América Latina. 
A partir do Brasil, uma onda de golpe militares se espraiou em várias regiões do mundo, como em 1965 na Indonésia, onde foram mortos mais de 700 mil pessoas, entre comunistas, democratas e progressistas em geral. Mas a região em que os golpes militares mais prosperaram foi a América Latina, onde, na década de 70 do século passado, a maioria dos países era governada por militares, cujo poder resultara de golpes.
Nesse contexto, o Ato Institucional nº 5 foi o aprofundamento das medidas tomadas anteriormente pelo novo regime, uma espécie de golpe dentro do golpe, com o objetivo de consolidar o poder dos novos governantes, reordenar a sociedade, ampliar o poder das classes dominantes e impedir as manifestações populares. Entre 13 de dezembro de 1968 e 13 de outubro de 1978, quando foi revogado o ato discricionário, o país viveu os anos de chumbo com uma ditadura militar fascista aberta, supressão das liberdades, prisões, tortura e mortes de opositores, cassação dos direitos políticos de todos aqueles que a ditadura considerava inconvenientes ao regime, revogação das eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos das capitais, censura generalizada e construção de uma rede de espionagem que se estendia por todos os setores da administração pública, escolas, universidades e locais públicos. 
Ao mesmo tempo, o processo de modernização conservadora estabeleceu a ferro e fogo um modelo econômico de acumulação predatória [3], que acelerou o crescimento econômico do país, ampliou a industrialização, desenvolveu o capitalismo no campo, mas resultou num verdadeiro apartheid social, com brutal concentração de renda, que se aprofundou mesmo nos períodos democráticos.
Para compreender a história
Para que as novas gerações compreendam o significado da ditadura e do AI-5, é importante rememorarmos, mesmo que resumidamente, os principais acontecimentos que levaram ao golpe e as principais medidas tomadas pelos militares. Vale lembrar que os primeiros anos da década de 60 do século passado foram marcados por intensa atividade política, mobilização sindical e popular em defesa das reformas de base, uma plataforma de reformas, entre as quais a rural e a urbana, que visava beneficiar a maioria da população e construir um desenvolvimento econômico com distribuição de renda. 
Os setores populares, organizados no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), nas Ligas Camponesas, na União Nacional dos Estudantes (UNE) e nos Centros Populares de Cultura (CPCs), incluindo também organizações de militares nacionalistas, de artistas e intelectuais, estavam ganhando a batalha política e ideológica, e o presidente da República também era um apoiador das reformas. A burguesia, os latifundiários e o imperialismo estadunidense estavam na defensiva diante do avanço da intensa participação popular nos debates e manifestações de rua. A maioria do povo apoiava as reformas. Como as classes dominantes não queriam perder os privilégios seculares, tramaram o golpe com os Estados Unidos e implantaram a ditadura.
O golpe militar de 1964, pelas consequências que perduram até hoje, significou a mais profunda e extensa derrota do movimento popular e democrático no Brasil. A institucionalidade política e a estrutura econômica montada a partir desse período são responsáveis pela formatação dos aspectos fundamentais da sociedade brasileira de agora. O primeiro período da ditadura, que vai de 1964 a 1968, foi o momento de desmonte da ordem anterior e montagem da nova ordem, mediante a edição dos chamados institucionais, que davam poderes extraordinários aos novos mandatários. Entre abril de 1964 e novembro de 1966, o governo editou 838 leis, 5.685 decretos, 3 atos institucionais e 24 atos complementares [4]. 
Para calar a oposição, a ditadura realizou, nos primeiros meses após o golpe, milhares de prisões, utilizando-se até de navios para colocar os prisioneiros. Aboliu a Constituição de 1946, cassou mandatos de parlamentares, governadores, prefeitos, vereadores, funcionários públicos, sindicalistas e personalidades progressistas. Estabeleceu eleições indiretas para presidente, governadores e prefeitos das capitais, colocou o CGT e a UNE na ilegalidade, extinguiu os partidos políticos, criou um bipartidarismo artificial (Arena e MDB) e alterou a composição do Supremo Tribunal Federal para conseguir maioria.
Do ponto de vista econômico e social, a construção da nova ordem foi feita mediante um conjunto de reformas ortodoxas na área bancária, financeira tributária, cambial e de comércio exterior, além de legislação de estímulo ao capital estrangeiro. Essas reformas prepararam o terreno para o chamado “milagre econômico” no período de 1968 a 1973, quando as taxas de crescimento cresceram a uma média anual acima de 11% ao ano. Para viabilizar a nova ordem entre os trabalhadores, o governo realizou a intervenção nos sindicatos e nomeou como interventores velhos pelegos ligados ao novo regime. 
Para se entender a ofensiva contra o movimento sindical pela ditadura, basta dizer que, entre 1964 e 1979, ocorreram 1.202 intervenções em sindicatos, 810 das quais só entre 1964 e 1965, 78 destituições de diretorias, 31 intervenções em processos eleitorais dos sindicatos com anulação de pleitos e 364 dissoluções de entidades sindicais [5]. Essas medidas visavam desmantelar a luta sindical organizada, de forma a impor a nova política salarial, com reajuste na maioria das vezes abaixo da inflação, política esta que vigorou praticamente durante todo o período ditatorial.
Mesmo com todas essas medidas e uma brutal repressão contra as manifestações de rua, o movimento estudantil se reorganizou, reconstruiu a UNE mesmo na clandestinidade e promoveu manifestações de massa pelo país afora, especialmente em 1968. Nesse ano, as forças da repressão invadiram o restaurante Calabouço, onde os estudantes pobres normalmente faziam suas refeições, e matou o estudante Edson Luis de Lima Souto, o que gerou uma comoção nacional. Foram realizadas passeatas de protestos em todo o país, sendo que a mais famosa foi a passeata dos 100 mil, realizada no Rio de janeiro, da qual participaram não só estudantes, mas profissionais liberais, artistas e populares, colocando em cheque o regime. 
Também em 1968 foram realizadas duas grandes greves operárias: na região de Contagem, que paralisou as principais fábricas da região, em Minas Gerais, e Osasco, em São Paulo. Esta última paralisou praticamente todas as fábricas dessa cidade industrial paulista, fazendo com o exército realizasse uma intervenção na cidade, reprimisse brutalmente os trabalhadores e prendesse os dirigentes dos sindicatos para sufocar o movimento. No campo político-parlamentar, o deputado Marcio Moreira Alves fez um discurso condenando o golpe militar, o que foi considerado ofensivo pelas Forças Armadas. Eles exigiram a cassação do deputado, mas o Congresso se recusou. Então, os militares encontraram um pretexto para editar o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que fechou o Congresso e consolidou o regime como uma ditadura fascista.
Os anos de chumbo e o terror fascista
O AI-5 significou a radicalização da ditadura e consolidou o poder da chamada linha-dura militar, abrindo um período claramente fascista na história do país. O Ato foi editado no final do governo do ditador Costa e Silva, que viria logo depois a morrer e ser substituído brevemente por uma junta militar e, posteriormente, pelo ditador Emílio Garrastazu Médici, que governou de 1969 a março de 1974. Para se ter uma ideia da barbárie institucional, basta relembrar as principais medidas contidas nessa legislação de exceção. 
Entre outros pontos, podem-se destacar os seguintes: fechamento do Congresso Nacional, passando os poderes para o presidente da República, suspensão do habeas corpus, censura prévia aos meios de comunicação, teatro, cinema, música e artes em geral, suspensão das garantias constitucionais, dos direitos políticos e cassação de parlamentares, proibição de manifestações populares, autorização de demissões sumárias na administração pública e transferência de julgamento das ações políticas que eles denominavam crimes contra a segurança nacional para tribunais militares. Estavam assim constituídas as bases legais e ilegais para aquilo que ficou popularmente conhecido como os anos de chumbo. Ressalte-se que, um dia antes, o regime já realizara centenas de prisões de oposicionistas, o que se generalizou após a promulgação do AI-5.
O regime, contestado nas ruas e fustigado pela guerrilha urbana, estruturou um poderoso aparato para espionar e matar, aliado a uma máquina de alienar. Uma parte do aparelho repressivo já estava estruturado no Serviço Nacional de Informações (SNI), criado logo após o golpe e nos antigos Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), que existiam em vários Estados, especialmente em São Paulo, onde também foi criada pelos militares a Operação Bandeirantes, um órgão operacional da repressão financiado por grandes empresas. Posteriormente, a ditadura reorganizou e centralizou todos os órgãos de repressão a partir de dois instrumentos básicos: os Centros de Operações de Defesa Interna (CODI) e os Destacamentos de Operações Internas (DOI), duas organizações que se especializaram nas prisões, tortura institucionalizada, coleta de informações, desmantelamento dos grupos guerrilheiros e perseguição a todos que fizessem oposição à ditadura. 
Grande parte desses agentes da repressão foi treinada pela CIA, especialmente os oficiais, na Escola das Américas, e também por forças de inteligência do exército inglês e francês. Um conhecido agente da CIA, Dan Mitrione, deu aulas práticas de tortura no Brasil, tendo presos políticos como cobaias, e se gabava de ensinar a tortura científica: “aplicar a dor na dose certa, com a intensidade exata, no local mais apropriado, para extrair a maior quantidade de informações”. Foi capturado no Uruguai pelos guerrilheiros Tupamaros e executado em agosto de 1970.
Não satisfeitos com esses instrumentos paralegais da repressão, o regime também criou centros clandestinos de tortura e morte de militantes, como a Casa da Morte, em Petrópolis, a Boate Querosene, no interior de São Paulo, os mais tristemente famosos, além de outros sítios. Nesses locais eram levados os presos que eles consideravam mais perigosos, os quais tinham poucas opções além de trair ou morrer. Eram torturados por 10, 15, 20 dias ininterruptos da forma mais bárbara possível. 
O objetivo era “virar” os presos, ou seja, transformá-los em agentes da repressão para depois se infiltrarem em suas antigas organizações e delatar os companheiros. Na Casa da Morte, por exemplo, de todos que passaram por lá, sobreviveu apenas uma prisioneira, Inês Etienne Romeu. Assim mesmo, um dos chefes dos torturadores, o coronel Paulo Malhães, disse em depoimento na Comissão da Verdade que ela sobreviveu porque seus colegas não souberam fazer o serviço direito. 
Na Boate Querosene praticamente todos morreram, a não ser os que traíram, como o agente Vinicius (Severino Teodoro Melo, membro do Comitê Central e militante desde 1935), traidor do PCB e responsável pela delação e morte de mais de dois terços dos integrantes do Comitê Central assassinados na tortura, e o agente Camilo, na verdade Natanael de Moura Girardi (guerrilheiro treinado em Cuba), responsável pela morte e desbaratamento de praticamente todo o Molipo (Movimento de Libertação Popular), dissidência da ALN organizada em Cuba. Quase todos foram mortos quando regressaram e foram presos no Brasil [6]. Um dos pouquíssimos sobreviventes dessa organização é o ex-ministro da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu.
Os algozes da repressão brasileira tinham uma lei macabra: todos aqueles que fizeram treinamento de guerrilha em Cuba, nos países do Leste ou na China, os banidos (trocados no sequestro de embaixadores) que retornassem ao país ou os acusados de crimes de morte estavam marcados para morrer. Praticamente todos os que foram presos nessa categoria foram assassinados. 
Os métodos utilizados pelos algozes para obter informações não ficavam nada a dever aos nazistas: pau de arara, choques elétricos na boca, testículos, ouvidos, afogamentos com água e também com urina, privação do sono, exposição a altas e baixíssimas temperaturas, espancamento dos mais variados tipos, palmatória na sola dos pés, das mãos e nas costas, “telefones” (pancada com as duas mãos no ouvido que provocava o rompimento dos tímpanos), soro da verdade, isolamento prolongado com sons estridentes nas celas escuras, privação de água e comida, estupros, entre outras atrocidades. Para encobrir as barbaridades, os algozes inventavam uma série de dissimulações, “teatrinhos”, notícias falsas, tais como “morreu em confronto com a polícia”, “foi atropelado quando tentava fugir”, “nunca esteve nas dependências da polícia”, dentre outras falsas alegações.
Para completar os horrores, e como os mortos eram muitos, a repressão decidiu desaparecer com os corpos dos torturados e mortos. Para tanto, muitos eram jogados em rios ou no mar, sem antes, como declarou cinicamente o coronel Malhães, um dos torturadores da Casa da Morte em depoimento, arrancar-lhes os dentes, parte dos dedos para desfazer as impressões digitais, além de colocar cimento ou pedras em seus estômagos para que não boiassem. 
Muitos corpos também eram esquartejados e enterrados em locais diferentes para dificultar a identificação, outros eram enterrados em valas comuns para indigentes, como na conhecida Vala Clandestina de Perus, no cemitério Dom Bosco, na zona Norte de São Paulo, onde foram encontradas várias ossadas de prisioneiros mortos (a última encontrada recentemente foi a do líder sindical bancário e da VPR, Aluísio Palhano). Não se pode esquecer também que havia médicos que assinavam atestados de óbitos com causa mortis falsas, de acordo com as conveniências dos torturadores. Um dos legistas mais conhecidos nessas práticas foi o médico Harry Shibata, um verdadeiro Dr. Mengele brasileiro.
Quando a guerrilha urbana já estava derrotada, o regime militar se voltou contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a única organização que não aderira à luta armada e que tinha elaborado, ainda em 1967, no seu VI Congresso, a estratégia de frente democrática para derrotar a ditadura e que possuía fortes vínculos orgânicos com o movimento operário e a juventude. Para o novo ditador e seus estrategistas, a chamada abertura lenta e gradual não poderia ser realizada com a emergência de um PCB forte e vinculado às massas. 
Por isso, autorizaram o massacre do PCB, através da Operação Radar, que tinha como objetivo eliminar os principais dirigentes do Comitê Central e desbaratar a organização. Um documento do comando da inteligência militar, denominado “Neutralizar o PCB”, apontava quais as instâncias e os responsáveis por elas deveriam ser eliminados, uma vez que na prática neutralizar significava matar. Nessa ofensiva, entre os anos de 1974, 1975 e início de 1976 foram assassinados 10 membros do Comitê Central e 3 camaradas com tarefas nacionais, muitos com injeções de matar cavalo, como o secretário político da Juventude Comunista, José Montenegro de Lima, outros com as mais selvagens torturas. Seus corpos desfigurados, sem dentes e sem digitais, com pedras amarradas ao estômago, jazem em algum rio da região da Grande São Paulo. Praticamente todos os integrantes das direções regionais foram presos, bem como cerca de dois mil militantes, a grande maioria torturados.
Geisel e a autorização para matar
Para se compreender a selvageria, é importante citar dois casos simbólicos: quando retornava do exterior, o dirigente do PCB Davi Capistrano foi preso na fronteira do Rio Grande do Sul e levado para a Casa da Morte. Torturado durante vários dias, Capistrano não deu nenhuma informação aos seus algozes e foi assassinado. Seu corpo foi esquartejado e pendurado em ganchos como gado, conforme anotações recolhidas postumamente de um agente da repressão e transformadas em livro pela jornalista Tais Moraes [7]. Depois, os restos mortais de Capistrano foram levados e jogados nos fornos da Usina Cambahyba, em Campos, no interior do Rio de Janeiro, onde também a repressão cremou os corpos de vários militantes de outras organizações assassinados naquela casa macabra [8]. 
Outro caso simbólico é o do dirigente do PCB, Elson Costa. Torturado brutalmente durante mais de 20 dias, em frangalhos e todo desfigurado, os torturadores jogaram álcool em seu corpo e lhe deram duas opções: se transformar em policial ou morrer. Como permaneceu firme em sua disposição de manter os segredos do Partido e não trair sua organização, os facínoras atearam fogo em seu corpo, matando-o lentamente [9].
Ao contrário do que as pessoas podem imaginar, essas mortes não foram resultados de acidentes ou de sadismo desse ou daquele torturador (o que também existia), mas de uma ofensiva seletiva da repressão para matar os principais dirigentes do PCB. Documento revelado pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) informa sobre uma reunião dos chefes do CIE (Centro de Informações do Exército) com Ernesto Geisel, que estava assumindo o comando da ditadura naquele momento. Na reunião, os comandantes da inteligência apresentaram um balanço do trabalho e dos métodos utilizados pelos órgãos da repressão até aquela data (quando já se contabilizavam 104 execuções) e queriam saber se poderiam continuar matando e atuando da mesma forma. 
Geisel pediu um tempo para pensar e dias depois autorizou os assassinatos políticos, com duas condições: só seriam mortos os chamados elementos mais perigosos, e todas as execuções deveriam passar pelo crivo do chefe do SNI, João Batista Figueiredo [10]. Esse documento é a prova cristalina de que a barbárie realizada nos porões da repressão não era de iniciativa dos desequilibrados ou sádicos lá presentes, mas um processo que tinha o aval dos principais comandantes e do ditador de plantão na República.
À máquina de matar também se aliava a máquina de alienar, de forma a produzir um clima de normalidade e estabilidade no país. Como se dizia na época, o Brasil era uma “ilha de tranquilidade, numa conjuntura internacional de conflitos”. Buscava-se criar uma espécie de unanimidade nacional forçada, na qual todos aqueles que não apoiassem o regime eram considerados suspeitos ou inimigos. Enquanto se comemoravam os êxitos do “milagre econômico” e nos porões se moíam os militantes e se punham cartazes nas ruas com os retratos dos revolucionários procurados, a Agência Especial de Relações Públicas (AERP) massificava propaganda patrioteira nos meios de comunicação com slogans tipicamente fascistas, tais como “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, “Brasil, terra que Deus abençoou”, visando criar um clima de nacionalismo artificial, inclusive aproveitando-se do fato de que o Brasil fora campeão de futebol do mundo em 1970. 
Começaram também a aparecer os cantores chapa branca, como Dom e Ravel, com os hits “Eu te amo meu Brasil”, “Ninguém segura a juventude do Brasil” e marchinhas como “Prá frente Brasil”, entre outras. Nas universidades implantavam-se as aulas de educação moral e cívica, implementava-se o acordo MEC-USAID e, com o decreto 477, os reitores estavam de mãos livres para expulsar qualquer aluno que estivessem desenvolvendo atividades subversivas, segundo a perspectiva da ditadura.
A censura à cultura, às artes e a perseguição à ciência
A censura à cultura em geral, ao cinema, à música, ao teatro, à literatura, às artes plásticas, aos meios de comunicação, como a imprensa, a televisão, o rádio, bem como a perseguição à ciência ampliaram o controle da ditadura sobre praticamente toda a vida social. A ditadura queria controlar tudo, dificultar a circulação de ideias contrárias ao regime, censurar a criatividade e prender os artistas que não se enquadrassem na nova ordem. 
De acordo com levantamento realizado pelo jornalista Zuenir Ventura, no período de vigência do AI-5, mais de 500 letras de música, 500 filmes, 450 peças de teatro e 200 livros foram vetados ou cortados em parte pela famosa Divisão de Censura de Diversões Públicas, organismo a partir do qual eram realizadas as operações de sufocamento da cultura e das liberdades democráticas. O rigor e a bizarrice dos censores, que não tinham as mesmas condições intelectuais que os artistas criadores, muitas vezes levavam a certos recalques e pequenas vinganças contra os artistas, chegando a situações risíveis como proibir a divulgação do poema de Mario de Andrade, “Ode ao burguês”, só porque tinha essa palavrinha mágica.
Com relação à imprensa escrita, desde a edição do AI-5 os censores passaram a se instalar dentro das redações, onde tinham uma mesa a partir da qual censuravam todas as matérias que consideravam contrárias ao governo. Jornais como O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil, diante da impossibilidade de colocar textos novos no lugar dos censurados, tiveram que recorrer a estratégias como publicar receitas de bolo, condições climáticas, poemas de Camões, o que também era uma forma indireta de protestar contra a censura. 
Jornais progressistas como O Pasquim e Opinião eram censurados com rigor especial e muitas vezes tinham que fazer um volume de matérias correspondente a duas ou três edições, para que pudessem publicar apenas uma. Até mesmo as revistas em quadrinhos eram censuradas, como o Fradim, de autoria de Henfil. A televisão e o rádio eram alvos especiais dos censores, em função da popularidade desses dois meios de comunicação. Os telejornais eram censurados e até as novelas foram proibidas, como o “Bem Amado”, de Dias Gomes, que só foi exibida dez anos depois de censurada. 
Autores como Cassandra Rios, Rubens Fonseca e até Eça de Queiroz (“O crime do padre Amaro”) não escaparam ao crivo dos censores. O teatro também foi muito censurado e a peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, foi atacada pelo Comando de Caça aos Comunistas, tendo o cenário depredado e os atores espancados. O cinema, particularmente os autores do Cinema Novo, tiveram dezenas de filmes censurados, muito dos quais só foram exibidos após a abertura e a anistia. A ciência foi igualmente muito atacada pela ditadura: 471 cientistas foram perseguidos, perderam seus empregos ou se exilaram, setores inteiros do Instituto Manguinhos da Fiocruz foram desmantelados e ocorreu demissão em massa na Universidade de Brasília.
Mas a Música Popular Brasileira (MPB) e seus principais autores mereceram uma atenção especial da censura. Autores como Milton Nascimento, Raul Seixas, Taiguara tiveram dezenas de músicas censuradas. Outros autores como Rita Lee, Belchior, Tom Jobim, Vinícius de Moraes também foram censurados e até alguns cantores-compositores considerados bregas, como Odair José, foram vítimas da censura. Caetano Veloso e Gilberto Gil não só tiveram várias de suas músicas censuradas, como foram presos e depois obrigados a se exilar em Londres. 
Mas os inimigos principais da ditadura na área musical eram os cantores-compositores Geraldo Vandré e Chico Buarque de Holanda. O primeiro, com sua música “Pra não dizer que não falei de flores”, que se tornou uma espécie de hino contra a ditadura, teve que se exilar na Europa. Já Chico Buarque de Holanda, que também se autoexilou na Itália durante um período, foi provavelmente o mais perseguido pela censura. Chegou um ponto tal em que Chico precisou usar o pseudônimo de Julinho de Adelaide para poder ter as músicas liberadas e driblar a censura, uma vez que era o cabeça de uma lista de compositores perseguidos pelo regime. Também Taiguara usou do mesmo artifício para ter suas composições liberadas. Quando o governo se deu conta, passou a exigir RG e CPF dos compositores.
O ato Institucional nº 5 foi revogado em dezembro de 1978, quando o movimento social, a partir das greves do ABC, dava os seus primeiros passos na reorganização e posteriormente se transformaria no principal polo de resistência à ditadura. Depois veio a anistia, instrumento que possibilitou a libertação de presos políticos e a volta dos exilados, mas que ao mesmo tempo anistiava também os torturadores, o que tem sido o principal pretexto das forças conservadoras para que não se punam os crimes de lesa-humanidade cometidos pelos torturadores e seus mandantes. 
No início da década de 80 o movimento democrático avançava, enquanto a ditadura perdia forças e iniciativa política, até que foi substituída por um governo civil, num arranjo negociado entre militares, setores democráticos e as classes dominantes, gerando compromissos que impediram o ajuste de contas da sociedade com esse período sombrio.
As novas gerações precisam conhecer a verdade sobre aqueles tempos sombrios para não serem enganadas ou embarcarem em aventuras autoritárias. Nada como conhecer o passado para não se repetir tragédias no futuro!
*Edmilson Costa é secretário geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
[1] Relatório da Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar os crimes da ditadura.
[2] Filho, L. V. O governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1974.
[3] Costa. E. A política Salarial no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1977.
[4] Revista Desenvolvimento e Conjuntura, citada em Araújo, N. A Crisis e Lucha de Clases em Brasil 1974-1979. Tese de doutoramento. UNAM, México.
[5] Moreira Alves, M. H. Estado e oposição no Brasil – 1964-1984. Vozes, 1984.
[6] Godoy, Marcelo. A casa da vovó – Uma biografia do DOI-CODI (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar. São Paulo: Alameda, 2014.
[7] Morais, T. Sem Vestígios. São Paulo: Geração Editorial, 2010.
[8] Guerra, C. Memória de uma guerra suja. Depoimento em forma de livro aos repórteres Marcelo Neto e Rogério Medeiros. Rio de Janeiro TopBooks, 2012.
[9] Godoy. M. op. cit.
[10] Documento elaborado pelo diretor da CIA, Egan Colby em 1974 e endereçado ao secretário de Estado Henry Kissinger e tornado público pelo governo dos EUAQ. Foi descoberto pelo pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getúlio Vargas.


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