Manifestação no Rio de Janeiro em 1968 (Foto: Arquivo Nacional/Correio
da Manhã)
No momento em que o
fantasma da ditadura volta a nos assombrar através de medidas governamentais
que vão transformando o Estado brasileiro num estado policialesco e cada vez
mais repressor, assim como por intermédio das ameaças abertas proferidas pelo
deputado federal Eduardo Bolsonaro, que afirmou ser necessário um “novo AI-5”
caso aconteçam no Brasil manifestações populares como as que ocorrem hoje no
Chile, ameaças estas que foram ratificadas em seguida pelo Ministro Paulo
Guedes e volta e meia aparecem, de forma velada ou não, na boca do atual
presidente da República e de seus seguidores, defensores de uma saída
abertamente autocrática e reacionária para o Brasil, consideramos de
fundamental importância reeditar, com pequenas adaptações, o artigo de Edmilson
Costa, Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado em 12
de dezembro de 2018.
Secretaria Nacional
de Comunicação do PCB)
Meio século de AI-5:
ditadura nunca mais!
Edmilson Costa*
O Ato Institucional
nº 5, editado pela ditadura militar em dezembro de 1968, completou, no dia 13
de dezembro (de 2018), 50 anos. Trata-se de recordação sombria de um
instrumento autoritário que abriu espaço para a ditadura aberta de cunho
fascista, o terrorismo de Estado, as prisões, torturas, mortes e
desaparecimentos de presos políticos, verdadeiros crimes de lesa-humanidade que
até hoje não foram punidos no Brasil.
É fundamental que as novas gerações, mais
de 100 milhões de brasileiros que não viveram a ditadura, compreendam as
barbaridades, a censura aos meios de comunicações, ao teatro, ao cinema, à
música, à literatura, as perseguições políticas, cassações de mandatos de
parlamentares e políticos em geral e o clima de terror e medo que
caracterizaram o período ditatorial. Pelos cálculos de diversos historiadores e
da Comissão Nacional da Verdade, no período da ditadura, mais de 50 mil
brasileiros foram presos, cerca de 7 mil foram exilados, mais de uma centena
banidos, 434 foram mortos ou estão desaparecidos e 800 foram julgados pelos
tribunais militares [1].
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Vale ressaltar que a
ditadura foi implantada em 31 de março de 1964, quando o presidente João
Goulart foi deposto, por meio de um golpe militar que contou com apoio
empresarial, objetivando salvar as classes dominantes que estavam politicamente
derrotadas pela intensa mobilização popular da época. Por isso implantaram um
regime que subtraiu as liberdades democráticas, impôs o arrocho salarial,
ampliou a desnacionalização da economia, com maior favorecimento ao capital
internacional, e se alinhou à política de guerra fria no interesse do
imperialismo estadunidense, cujo país forneceu as informações de inteligência,
as técnicas de tortura e apoio diplomático aos golpistas.
As principais mazelas
que hoje se expressam na sociedade brasileira têm seu DNA nas medidas que foram
implantadas durante o período ditatorial, especialmente a perversa distribuição
de renda, uma economia de baixos salários, cuja matriz perdura até hoje, e a
ampliação do poder de uma classe dominante truculenta, antidemocrática e
reacionária.
É importante também
ressaltar que o golpe militar de 1964 contribuiu para uma mudança de correlação
de forças na geopolítica internacional e abriu espaço para o período de golpes
militares em vários continentes. Como disse o ex-embaixador dos Estados Unidos,
o golpe no Brasil teve o mesmo impacto do Plano Marshall, o bloqueio de Berlim
ou a guerra na Coreia [2], afinal o Brasil tinha a maior economia, a maior
população e o maior território da América Latina.
A partir do Brasil, uma onda
de golpe militares se espraiou em várias regiões do mundo, como em 1965 na
Indonésia, onde foram mortos mais de 700 mil pessoas, entre comunistas, democratas
e progressistas em geral. Mas a região em que os golpes militares mais
prosperaram foi a América Latina, onde, na década de 70 do século passado, a
maioria dos países era governada por militares, cujo poder resultara de golpes.
Nesse contexto, o Ato
Institucional nº 5 foi o aprofundamento das medidas tomadas anteriormente pelo
novo regime, uma espécie de golpe dentro do golpe, com o objetivo de consolidar
o poder dos novos governantes, reordenar a sociedade, ampliar o poder das
classes dominantes e impedir as manifestações populares. Entre 13 de dezembro
de 1968 e 13 de outubro de 1978, quando foi revogado o ato discricionário, o
país viveu os anos de chumbo com uma ditadura militar fascista aberta,
supressão das liberdades, prisões, tortura e mortes de opositores, cassação dos
direitos políticos de todos aqueles que a ditadura considerava inconvenientes
ao regime, revogação das eleições diretas para presidente, governadores e
prefeitos das capitais, censura generalizada e construção de uma rede de espionagem
que se estendia por todos os setores da administração pública, escolas,
universidades e locais públicos.
Ao mesmo tempo, o processo de modernização
conservadora estabeleceu a ferro e fogo um modelo econômico de acumulação
predatória [3], que acelerou o crescimento econômico do país, ampliou a
industrialização, desenvolveu o capitalismo no campo, mas resultou num
verdadeiro apartheid social, com brutal concentração de renda, que se
aprofundou mesmo nos períodos democráticos.
Para compreender a
história
Para que as novas
gerações compreendam o significado da ditadura e do AI-5, é importante
rememorarmos, mesmo que resumidamente, os principais acontecimentos que levaram
ao golpe e as principais medidas tomadas pelos militares. Vale lembrar que os
primeiros anos da década de 60 do século passado foram marcados por intensa
atividade política, mobilização sindical e popular em defesa das reformas de
base, uma plataforma de reformas, entre as quais a rural e a urbana, que visava
beneficiar a maioria da população e construir um desenvolvimento econômico com
distribuição de renda.
Os setores populares, organizados no Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), nas Ligas Camponesas, na União Nacional dos Estudantes
(UNE) e nos Centros Populares de Cultura (CPCs), incluindo também organizações
de militares nacionalistas, de artistas e intelectuais, estavam ganhando a
batalha política e ideológica, e o presidente da República também era um
apoiador das reformas. A burguesia, os latifundiários e o imperialismo
estadunidense estavam na defensiva diante do avanço da intensa participação
popular nos debates e manifestações de rua. A maioria do povo apoiava as
reformas. Como as classes dominantes não queriam perder os privilégios
seculares, tramaram o golpe com os Estados Unidos e implantaram a ditadura.
O golpe militar de
1964, pelas consequências que perduram até hoje, significou a mais profunda e
extensa derrota do movimento popular e democrático no Brasil. A
institucionalidade política e a estrutura econômica montada a partir desse
período são responsáveis pela formatação dos aspectos fundamentais da sociedade
brasileira de agora. O primeiro período da ditadura, que vai de 1964 a 1968,
foi o momento de desmonte da ordem anterior e montagem da nova ordem, mediante
a edição dos chamados institucionais, que davam poderes extraordinários aos
novos mandatários. Entre abril de 1964 e novembro de 1966, o governo editou 838
leis, 5.685 decretos, 3 atos institucionais e 24 atos complementares [4].
Para
calar a oposição, a ditadura realizou, nos primeiros meses após o golpe,
milhares de prisões, utilizando-se até de navios para colocar os prisioneiros.
Aboliu a Constituição de 1946, cassou mandatos de parlamentares, governadores,
prefeitos, vereadores, funcionários públicos, sindicalistas e personalidades
progressistas. Estabeleceu eleições indiretas para presidente, governadores e
prefeitos das capitais, colocou o CGT e a UNE na ilegalidade, extinguiu os
partidos políticos, criou um bipartidarismo artificial (Arena e MDB) e alterou
a composição do Supremo Tribunal Federal para conseguir maioria.
Do ponto de vista
econômico e social, a construção da nova ordem foi feita mediante um conjunto
de reformas ortodoxas na área bancária, financeira tributária, cambial e de
comércio exterior, além de legislação de estímulo ao capital estrangeiro. Essas
reformas prepararam o terreno para o chamado “milagre econômico” no período de
1968 a 1973, quando as taxas de crescimento cresceram a uma média anual acima
de 11% ao ano. Para viabilizar a nova ordem entre os trabalhadores, o governo
realizou a intervenção nos sindicatos e nomeou como interventores velhos
pelegos ligados ao novo regime.
Para se entender a ofensiva contra o movimento
sindical pela ditadura, basta dizer que, entre 1964 e 1979, ocorreram 1.202
intervenções em sindicatos, 810 das quais só entre 1964 e 1965, 78 destituições
de diretorias, 31 intervenções em processos eleitorais dos sindicatos com
anulação de pleitos e 364 dissoluções de entidades sindicais [5]. Essas medidas
visavam desmantelar a luta sindical organizada, de forma a impor a nova
política salarial, com reajuste na maioria das vezes abaixo da inflação,
política esta que vigorou praticamente durante todo o período ditatorial.
Mesmo com todas essas
medidas e uma brutal repressão contra as manifestações de rua, o movimento
estudantil se reorganizou, reconstruiu a UNE mesmo na clandestinidade e
promoveu manifestações de massa pelo país afora, especialmente em 1968. Nesse
ano, as forças da repressão invadiram o restaurante Calabouço, onde os
estudantes pobres normalmente faziam suas refeições, e matou o estudante Edson
Luis de Lima Souto, o que gerou uma comoção nacional. Foram realizadas
passeatas de protestos em todo o país, sendo que a mais famosa foi a passeata
dos 100 mil, realizada no Rio de janeiro, da qual participaram não só
estudantes, mas profissionais liberais, artistas e populares, colocando em
cheque o regime.
Também em 1968 foram realizadas duas grandes greves operárias:
na região de Contagem, que paralisou as principais fábricas da região, em Minas
Gerais, e Osasco, em São Paulo. Esta última paralisou praticamente todas as
fábricas dessa cidade industrial paulista, fazendo com o exército realizasse
uma intervenção na cidade, reprimisse brutalmente os trabalhadores e prendesse
os dirigentes dos sindicatos para sufocar o movimento. No campo
político-parlamentar, o deputado Marcio Moreira Alves fez um discurso
condenando o golpe militar, o que foi considerado ofensivo pelas Forças
Armadas. Eles exigiram a cassação do deputado, mas o Congresso se recusou.
Então, os militares encontraram um pretexto para editar o Ato Institucional nº
5 (AI-5), que fechou o Congresso e consolidou o regime como uma ditadura
fascista.
Os anos de chumbo e o
terror fascista
O AI-5 significou a
radicalização da ditadura e consolidou o poder da chamada linha-dura militar,
abrindo um período claramente fascista na história do país. O Ato foi editado
no final do governo do ditador Costa e Silva, que viria logo depois a morrer e
ser substituído brevemente por uma junta militar e, posteriormente, pelo
ditador Emílio Garrastazu Médici, que governou de 1969 a março de 1974. Para se
ter uma ideia da barbárie institucional, basta relembrar as principais medidas
contidas nessa legislação de exceção.
Entre outros pontos, podem-se destacar os
seguintes: fechamento do Congresso Nacional, passando os poderes para o
presidente da República, suspensão do habeas corpus, censura prévia aos meios
de comunicação, teatro, cinema, música e artes em geral, suspensão das garantias
constitucionais, dos direitos políticos e cassação de parlamentares, proibição
de manifestações populares, autorização de demissões sumárias na administração
pública e transferência de julgamento das ações políticas que eles denominavam
crimes contra a segurança nacional para tribunais militares. Estavam assim
constituídas as bases legais e ilegais para aquilo que ficou popularmente
conhecido como os anos de chumbo. Ressalte-se que, um dia antes, o regime já
realizara centenas de prisões de oposicionistas, o que se generalizou após a
promulgação do AI-5.
O regime, contestado
nas ruas e fustigado pela guerrilha urbana, estruturou um poderoso aparato para
espionar e matar, aliado a uma máquina de alienar. Uma parte do aparelho
repressivo já estava estruturado no Serviço Nacional de Informações (SNI),
criado logo após o golpe e nos antigos Departamentos de Ordem Política e Social
(DOPS), que existiam em vários Estados, especialmente em São Paulo, onde também
foi criada pelos militares a Operação Bandeirantes, um órgão operacional da
repressão financiado por grandes empresas. Posteriormente, a ditadura
reorganizou e centralizou todos os órgãos de repressão a partir de dois
instrumentos básicos: os Centros de Operações de Defesa Interna (CODI) e os
Destacamentos de Operações Internas (DOI), duas organizações que se
especializaram nas prisões, tortura institucionalizada, coleta de informações,
desmantelamento dos grupos guerrilheiros e perseguição a todos que fizessem
oposição à ditadura.
Grande parte desses agentes da repressão foi treinada pela
CIA, especialmente os oficiais, na Escola das Américas, e também por forças de
inteligência do exército inglês e francês. Um conhecido agente da CIA, Dan
Mitrione, deu aulas práticas de tortura no Brasil, tendo presos políticos como
cobaias, e se gabava de ensinar a tortura científica: “aplicar a dor na dose
certa, com a intensidade exata, no local mais apropriado, para extrair a maior
quantidade de informações”. Foi capturado no Uruguai pelos guerrilheiros
Tupamaros e executado em agosto de 1970.
Não satisfeitos com
esses instrumentos paralegais da repressão, o regime também criou centros
clandestinos de tortura e morte de militantes, como a Casa da Morte, em
Petrópolis, a Boate Querosene, no interior de São Paulo, os mais tristemente
famosos, além de outros sítios. Nesses locais eram levados os presos que eles
consideravam mais perigosos, os quais tinham poucas opções além de trair ou
morrer. Eram torturados por 10, 15, 20 dias ininterruptos da forma mais bárbara
possível.
O objetivo era “virar” os presos, ou seja, transformá-los em agentes
da repressão para depois se infiltrarem em suas antigas organizações e delatar
os companheiros. Na Casa da Morte, por exemplo, de todos que passaram por lá,
sobreviveu apenas uma prisioneira, Inês Etienne Romeu. Assim mesmo, um dos
chefes dos torturadores, o coronel Paulo Malhães, disse em depoimento na
Comissão da Verdade que ela sobreviveu porque seus colegas não souberam fazer o
serviço direito.
Na Boate Querosene praticamente todos morreram, a não ser os
que traíram, como o agente Vinicius (Severino Teodoro Melo, membro do Comitê
Central e militante desde 1935), traidor do PCB e responsável pela delação e
morte de mais de dois terços dos integrantes do Comitê Central assassinados na tortura,
e o agente Camilo, na verdade Natanael de Moura Girardi (guerrilheiro treinado
em Cuba), responsável pela morte e desbaratamento de praticamente todo o Molipo
(Movimento de Libertação Popular), dissidência da ALN organizada em Cuba. Quase
todos foram mortos quando regressaram e foram presos no Brasil [6]. Um dos
pouquíssimos sobreviventes dessa organização é o ex-ministro da Casa Civil do
governo Lula, José Dirceu.
Os algozes da
repressão brasileira tinham uma lei macabra: todos aqueles que fizeram
treinamento de guerrilha em Cuba, nos países do Leste ou na China, os banidos
(trocados no sequestro de embaixadores) que retornassem ao país ou os acusados
de crimes de morte estavam marcados para morrer. Praticamente todos os que
foram presos nessa categoria foram assassinados.
Os métodos utilizados pelos
algozes para obter informações não ficavam nada a dever aos nazistas: pau de
arara, choques elétricos na boca, testículos, ouvidos, afogamentos com água e
também com urina, privação do sono, exposição a altas e baixíssimas
temperaturas, espancamento dos mais variados tipos, palmatória na sola dos pés,
das mãos e nas costas, “telefones” (pancada com as duas mãos no ouvido que
provocava o rompimento dos tímpanos), soro da verdade, isolamento prolongado com
sons estridentes nas celas escuras, privação de água e comida, estupros, entre
outras atrocidades. Para encobrir as barbaridades, os algozes inventavam uma
série de dissimulações, “teatrinhos”, notícias falsas, tais como “morreu em
confronto com a polícia”, “foi atropelado quando tentava fugir”, “nunca esteve
nas dependências da polícia”, dentre outras falsas alegações.
Para completar os
horrores, e como os mortos eram muitos, a repressão decidiu desaparecer com os
corpos dos torturados e mortos. Para tanto, muitos eram jogados em rios ou no
mar, sem antes, como declarou cinicamente o coronel Malhães, um dos
torturadores da Casa da Morte em depoimento, arrancar-lhes os dentes, parte dos
dedos para desfazer as impressões digitais, além de colocar cimento ou pedras
em seus estômagos para que não boiassem.
Muitos corpos também eram
esquartejados e enterrados em locais diferentes para dificultar a
identificação, outros eram enterrados em valas comuns para indigentes, como na
conhecida Vala Clandestina de Perus, no cemitério Dom Bosco, na zona Norte de
São Paulo, onde foram encontradas várias ossadas de prisioneiros mortos (a
última encontrada recentemente foi a do líder sindical bancário e da VPR,
Aluísio Palhano). Não se pode esquecer também que havia médicos que assinavam
atestados de óbitos com causa mortis falsas, de acordo com as conveniências dos
torturadores. Um dos legistas mais conhecidos nessas práticas foi o médico
Harry Shibata, um verdadeiro Dr. Mengele brasileiro.
Quando a guerrilha
urbana já estava derrotada, o regime militar se voltou contra o Partido
Comunista Brasileiro (PCB), a única organização que não aderira à luta armada e
que tinha elaborado, ainda em 1967, no seu VI Congresso, a estratégia de frente
democrática para derrotar a ditadura e que possuía fortes vínculos orgânicos
com o movimento operário e a juventude. Para o novo ditador e seus
estrategistas, a chamada abertura lenta e gradual não poderia ser realizada com
a emergência de um PCB forte e vinculado às massas.
Por isso, autorizaram o
massacre do PCB, através da Operação Radar, que tinha como objetivo eliminar os
principais dirigentes do Comitê Central e desbaratar a organização. Um
documento do comando da inteligência militar, denominado “Neutralizar o PCB”,
apontava quais as instâncias e os responsáveis por elas deveriam ser
eliminados, uma vez que na prática neutralizar significava matar. Nessa
ofensiva, entre os anos de 1974, 1975 e início de 1976 foram assassinados 10
membros do Comitê Central e 3 camaradas com tarefas nacionais, muitos com
injeções de matar cavalo, como o secretário político da Juventude Comunista,
José Montenegro de Lima, outros com as mais selvagens torturas. Seus corpos
desfigurados, sem dentes e sem digitais, com pedras amarradas ao estômago,
jazem em algum rio da região da Grande São Paulo. Praticamente todos os
integrantes das direções regionais foram presos, bem como cerca de dois mil
militantes, a grande maioria torturados.
Geisel e a
autorização para matar
Para se compreender a
selvageria, é importante citar dois casos simbólicos: quando retornava do
exterior, o dirigente do PCB Davi Capistrano foi preso na fronteira do Rio
Grande do Sul e levado para a Casa da Morte. Torturado durante vários dias,
Capistrano não deu nenhuma informação aos seus algozes e foi assassinado. Seu
corpo foi esquartejado e pendurado em ganchos como gado, conforme anotações
recolhidas postumamente de um agente da repressão e transformadas em livro pela
jornalista Tais Moraes [7]. Depois, os restos mortais de Capistrano foram
levados e jogados nos fornos da Usina Cambahyba, em Campos, no interior do Rio
de Janeiro, onde também a repressão cremou os corpos de vários militantes de
outras organizações assassinados naquela casa macabra [8].
Outro caso simbólico
é o do dirigente do PCB, Elson Costa. Torturado brutalmente durante mais de 20
dias, em frangalhos e todo desfigurado, os torturadores jogaram álcool em seu
corpo e lhe deram duas opções: se transformar em policial ou morrer. Como permaneceu
firme em sua disposição de manter os segredos do Partido e não trair sua
organização, os facínoras atearam fogo em seu corpo, matando-o lentamente [9].
Ao contrário do que
as pessoas podem imaginar, essas mortes não foram resultados de acidentes ou de
sadismo desse ou daquele torturador (o que também existia), mas de uma ofensiva
seletiva da repressão para matar os principais dirigentes do PCB. Documento
revelado pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) informa
sobre uma reunião dos chefes do CIE (Centro de Informações do Exército) com
Ernesto Geisel, que estava assumindo o comando da ditadura naquele momento. Na
reunião, os comandantes da inteligência apresentaram um balanço do trabalho e
dos métodos utilizados pelos órgãos da repressão até aquela data (quando já se
contabilizavam 104 execuções) e queriam saber se poderiam continuar matando e
atuando da mesma forma.
Geisel pediu um tempo para pensar e dias depois
autorizou os assassinatos políticos, com duas condições: só seriam mortos os
chamados elementos mais perigosos, e todas as execuções deveriam passar pelo
crivo do chefe do SNI, João Batista Figueiredo [10]. Esse documento é a prova
cristalina de que a barbárie realizada nos porões da repressão não era de
iniciativa dos desequilibrados ou sádicos lá presentes, mas um processo que
tinha o aval dos principais comandantes e do ditador de plantão na República.
À máquina de matar
também se aliava a máquina de alienar, de forma a produzir um clima de
normalidade e estabilidade no país. Como se dizia na época, o Brasil era uma
“ilha de tranquilidade, numa conjuntura internacional de conflitos”. Buscava-se
criar uma espécie de unanimidade nacional forçada, na qual todos aqueles que
não apoiassem o regime eram considerados suspeitos ou inimigos. Enquanto se
comemoravam os êxitos do “milagre econômico” e nos porões se moíam os
militantes e se punham cartazes nas ruas com os retratos dos revolucionários
procurados, a Agência Especial de Relações Públicas (AERP) massificava
propaganda patrioteira nos meios de comunicação com slogans tipicamente
fascistas, tais como “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, “Brasil, terra que Deus
abençoou”, visando criar um clima de nacionalismo artificial, inclusive
aproveitando-se do fato de que o Brasil fora campeão de futebol do mundo em
1970.
Começaram também a aparecer os cantores chapa branca, como Dom e Ravel,
com os hits “Eu te amo meu Brasil”, “Ninguém segura a juventude do Brasil” e
marchinhas como “Prá frente Brasil”, entre outras. Nas universidades implantavam-se
as aulas de educação moral e cívica, implementava-se o acordo MEC-USAID e, com
o decreto 477, os reitores estavam de mãos livres para expulsar qualquer aluno
que estivessem desenvolvendo atividades subversivas, segundo a perspectiva da
ditadura.
A censura à cultura,
às artes e a perseguição à ciência
A censura à cultura
em geral, ao cinema, à música, ao teatro, à literatura, às artes plásticas, aos
meios de comunicação, como a imprensa, a televisão, o rádio, bem como a
perseguição à ciência ampliaram o controle da ditadura sobre praticamente toda
a vida social. A ditadura queria controlar tudo, dificultar a circulação de
ideias contrárias ao regime, censurar a criatividade e prender os artistas que
não se enquadrassem na nova ordem.
De acordo com levantamento realizado pelo
jornalista Zuenir Ventura, no período de vigência do AI-5, mais de 500 letras
de música, 500 filmes, 450 peças de teatro e 200 livros foram vetados ou
cortados em parte pela famosa Divisão de Censura de Diversões Públicas, organismo
a partir do qual eram realizadas as operações de sufocamento da cultura e das
liberdades democráticas. O rigor e a bizarrice dos censores, que não tinham as
mesmas condições intelectuais que os artistas criadores, muitas vezes levavam a
certos recalques e pequenas vinganças contra os artistas, chegando a situações
risíveis como proibir a divulgação do poema de Mario de Andrade, “Ode ao
burguês”, só porque tinha essa palavrinha mágica.
Com relação à
imprensa escrita, desde a edição do AI-5 os censores passaram a se instalar
dentro das redações, onde tinham uma mesa a partir da qual censuravam todas as
matérias que consideravam contrárias ao governo. Jornais como O Estado de São
Paulo e Jornal do Brasil, diante da impossibilidade de colocar textos novos no
lugar dos censurados, tiveram que recorrer a estratégias como publicar receitas
de bolo, condições climáticas, poemas de Camões, o que também era uma forma
indireta de protestar contra a censura.
Jornais progressistas como O Pasquim e
Opinião eram censurados com rigor especial e muitas vezes tinham que fazer um
volume de matérias correspondente a duas ou três edições, para que pudessem
publicar apenas uma. Até mesmo as revistas em quadrinhos eram censuradas, como
o Fradim, de autoria de Henfil. A televisão e o rádio eram alvos especiais dos
censores, em função da popularidade desses dois meios de comunicação. Os
telejornais eram censurados e até as novelas foram proibidas, como o “Bem
Amado”, de Dias Gomes, que só foi exibida dez anos depois de censurada.
Autores
como Cassandra Rios, Rubens Fonseca e até Eça de Queiroz (“O crime do padre
Amaro”) não escaparam ao crivo dos censores. O teatro também foi muito
censurado e a peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, foi atacada pelo Comando de
Caça aos Comunistas, tendo o cenário depredado e os atores espancados. O
cinema, particularmente os autores do Cinema Novo, tiveram dezenas de filmes
censurados, muito dos quais só foram exibidos após a abertura e a anistia. A
ciência foi igualmente muito atacada pela ditadura: 471 cientistas foram
perseguidos, perderam seus empregos ou se exilaram, setores inteiros do
Instituto Manguinhos da Fiocruz foram desmantelados e ocorreu demissão em massa
na Universidade de Brasília.
Mas a Música Popular
Brasileira (MPB) e seus principais autores mereceram uma atenção especial da
censura. Autores como Milton Nascimento, Raul Seixas, Taiguara tiveram dezenas
de músicas censuradas. Outros autores como Rita Lee, Belchior, Tom Jobim,
Vinícius de Moraes também foram censurados e até alguns cantores-compositores
considerados bregas, como Odair José, foram vítimas da censura. Caetano Veloso
e Gilberto Gil não só tiveram várias de suas músicas censuradas, como foram
presos e depois obrigados a se exilar em Londres.
Mas os inimigos principais da
ditadura na área musical eram os cantores-compositores Geraldo Vandré e Chico
Buarque de Holanda. O primeiro, com sua música “Pra não dizer que não falei de
flores”, que se tornou uma espécie de hino contra a ditadura, teve que se
exilar na Europa. Já Chico Buarque de Holanda, que também se autoexilou na
Itália durante um período, foi provavelmente o mais perseguido pela censura.
Chegou um ponto tal em que Chico precisou usar o pseudônimo de Julinho de
Adelaide para poder ter as músicas liberadas e driblar a censura, uma vez que
era o cabeça de uma lista de compositores perseguidos pelo regime. Também
Taiguara usou do mesmo artifício para ter suas composições liberadas. Quando o
governo se deu conta, passou a exigir RG e CPF dos compositores.
O ato Institucional nº
5 foi revogado em dezembro de 1978, quando o movimento social, a partir das
greves do ABC, dava os seus primeiros passos na reorganização e posteriormente
se transformaria no principal polo de resistência à ditadura. Depois veio a
anistia, instrumento que possibilitou a libertação de presos políticos e a
volta dos exilados, mas que ao mesmo tempo anistiava também os torturadores, o
que tem sido o principal pretexto das forças conservadoras para que não se
punam os crimes de lesa-humanidade cometidos pelos torturadores e seus
mandantes.
No início da década de 80 o movimento democrático avançava, enquanto
a ditadura perdia forças e iniciativa política, até que foi substituída por um
governo civil, num arranjo negociado entre militares, setores democráticos e as
classes dominantes, gerando compromissos que impediram o ajuste de contas da
sociedade com esse período sombrio.
As novas gerações
precisam conhecer a verdade sobre aqueles tempos sombrios para não serem
enganadas ou embarcarem em aventuras autoritárias. Nada como conhecer o passado
para não se repetir tragédias no futuro!
*Edmilson Costa é
secretário geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
[1] Relatório da
Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar os crimes da ditadura.
[2] Filho, L. V. O governo
Castelo Branco. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1974.
[3] Costa. E. A
política Salarial no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1977.
[4] Revista
Desenvolvimento e Conjuntura, citada em Araújo, N. A Crisis e Lucha de Clases
em Brasil 1974-1979. Tese de doutoramento. UNAM, México.
[5] Moreira Alves, M.
H. Estado e oposição no Brasil – 1964-1984. Vozes, 1984.
[6] Godoy, Marcelo. A
casa da vovó – Uma biografia do DOI-CODI (1969-1991), o centro de sequestro,
tortura e morte da ditadura militar. São Paulo: Alameda, 2014.
[7] Morais, T. Sem
Vestígios. São Paulo: Geração Editorial, 2010.
[8] Guerra, C.
Memória de uma guerra suja. Depoimento em forma de livro aos repórteres Marcelo
Neto e Rogério Medeiros. Rio de Janeiro TopBooks, 2012.
[9] Godoy. M. op.
cit.
[10] Documento
elaborado pelo diretor da CIA, Egan Colby em 1974 e endereçado ao secretário de
Estado Henry Kissinger e tornado público pelo governo dos EUAQ. Foi descoberto
pelo pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getúlio Vargas.
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