Depois de aprovada no Senado a conquista histórica da redução da semana de trabalho para 40 horas, os trabalhadores e o povo chileno não desarmam e continuam na rua exigindo direitos, o fim e afastamento da cúpula ultraliberal.
Manifestação em 25 de Outubro de 2019, Santiago, Chile. Créditos ABRIL ABRIL
Por José Goulão
Parece inegável que em pontos muito diferentes do globo há povos que despertam contra a ditadura econômica globalizante do neoliberalismo e as suas trágicas consequências sociais.
A paz podre do neoliberalismo globalizante e o conformismo social que lhe corresponde estão sendo sacudidos através do mundo. Nas urnas e nas ruas – as duas frentes são espaços legítimos e complementares da luta política – os povos dão sinais de que a sonolência hipnótica induzida pelo entertainment midiático em que se transformou tudo o que tem a ver com a vida das pessoas é uma arma que também se desgasta, desmascara e vai perdendo eficácia. Uma fagulha representada por um aumento de preços, um corte de subsídios sociais, o lançamento de mais um imposto tornaram-se agora susceptíveis de provocar grandes e vibrantes explosões sociais. A arbitrariedade e a impunidade do sistema dominante começam a encontrar barreiras humanas.
Multiplicam-se os focos de contestação popular em zonas diversificadas do mundo. Mas será um erro avaliá-los segundo uma bitola única, além de ser profundamente desaconselhável deixar-nos conduzir pelos conteúdos e sistematizações que brotam da comunicação social dominante. Esta recorre a métodos padronizados com alguns objetivos principais: diluir a importância e a legitimidade de ações cívicas através do crescimento dos fenômenos de violência e que, em última análise, funcionam em benefício do opressor; misturar razões e motivos para confundir e esconder, deste modo, a mensagem essencial enviada pelos comportamentos de massas; associar situações que são liminarmente antagônicas; ou então evitar ligar circunstâncias e consequências que, sendo diferentes, têm, obviamente, objetivos convergentes.
Por exemplo, tratar as manifestações no Chile contra o neoliberalismo como irmãs gêmeas dos desacatos na Bolívia a favor do neoliberalismo é tão perverso do ponto de vista informativo como esconder que os movimentos populares chilenos têm exatamente a mesma motivação que os resultados das eleições na Argentina dando guia de marcha a Macri, o homem do FMI.
A única maneira de compreender o que está se passando do ponto de vista global através das grandes movimentações populares em curso é partir da observação isolada de cada caso para chegar ao que têm em comum – como indicadores de uma tendência.
Do Chile à Catalunha
Embora em diferentes fases de maturação, é possível comparar, sem misturar alhos com bugalhos como capricha em fazer a informação mainstream, várias situações em diferentes continentes: Chile, Bolívia (e Venezuela), Líbano, Catalunha, Argentina, Equador, Hong Kong, Honduras, Iraque, Nicarágua.
O que está se passando no Chile tem características objetivas e simbólicas importantíssimas, das quais ressalta-se uma rejeição absoluta da ditadura econômica neoliberal. O Chile é o país onde foi aplicada pela primeira vez, já lá vão 46 anos, a ortodoxia econômica neoliberal, a cargo dos agentes da sua escola teórica em Chicago, sob cobertura da ditadura política fascista do general Augusto Pinochet.
A situação demonstrou que o neoliberalismo é, de fato, o fascismo econômico; desenvolvimentos posteriores revelaram – como aliás constatou a senhora Thatcher, inspiradora do «novo» partido parlamentar Iniciativa Liberal – que pode ser compatível com formas muito controladas e manipuladas de democracia política, desde que sustentadas pela transformação da comunicação social dominante num aparelho feroz de propaganda. O que se mantém, em qualquer das situações, são os mecanismos de ditadura econômica através da imposição da ortodoxia do «sistema de mercado».
No Chile não houve uma transição para a democracia com a saída de Pinochet, mas sim o prolongamento do pinochetismo travestido de democracia, regime em que se comprometeu – traindo inexoravelmente a memória do sacrificado Salvador Allende – o Partido Socialista do Chile, através da ex-presidente Michelle Bachelet.
É contra essa eternização da escravatura neoliberal que se levantam agora as massas chilenas, enquanto a propaganda disfarçada de informação prefere destacar os comportamentos violentos para esconder, por exemplo, a gigantesca manifestação pacífica de um milhão e 200 mil pessoas em Santiago no dia 25 de outubro, que só tem paralelo com as da Unidade Popular nos anos setenta do século passado. O aumento dos preços das passagens de metrô foi o detonador, a gota d’água que pôs fim à paciência dos chilenos, que os ricos mais ricos de um dos países mais desiguais do mundo julgavam eterna.
Na Catalunha não é o neoliberalismo que está diretamente em causa. Mas a incapacidade para se dar conta da existência de um movimento de milhões de pessoas pela autodeterminação catalã é comportamento próprio de um Estado centralista e avesso ao diálogo – como são as estruturas de poder neoliberais.
É evidente que a propósito da Catalunha, a região mais rica de Espanha, existem razões econômicas escondidas em invocações «constitucionalistas» baratas e em «unidades nacionais» de índole feudal. Um Estado verdadeiramente democrático não teria dificuldades em dar a palavra aos catalães – e a outros povos de Espanha – para decidirem sobre o seu futuro. Mas o Estado que emana de Madri o seu neofranquismo latente, agora como sustentáculo da ortodoxia neoliberal, não é capaz de viver com isso. No entanto, tal como no Chile, há novas realidades que tornam impossível que tudo continue como até aqui.
Por detrás do autoritarismo do Estado espanhol está a União Europeia, esse panteão neoliberal que se recusa a conhecer o que pretendem os catalães, mas foi lépido em acolher entidades secessionistas como a Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Croácia, Eslovênia; e que inventou outras por sua conta, risco, fraudes e guerras, como o Kosovo e a Macedônia do Norte.
Do Equador a Hong Kong
Quem seguir os acontecimentos no Equador e em Hong Kong comodamente instalado em frente do televisor, ainda que vá manejando o controle remoto para ir variando de espaços noticiosos, fica sabendo que os energúmenos latino-americanos são incapazes de aceitar um corte de subsídios de combustível recomendado pelo FMI e que o corajoso povo asiático enfrenta destemidamente os sinistros ocupantes chineses.
São bons exemplos de como funciona a propaganda neoliberal.
No Equador, as populações levantam-se contra o ressurgimento neoliberal proporcionado pela traição de Lenin Moreno à política de uma década de avanços sociais e soberanos conduzida por Rafael Corrêa, de quem foi vice-presidente. Os equatorianos recusam-se, deste modo, a regressar a um passado de submissão ainda recente.
Em Hong Kong, os «ninjas» teleguiados de Washington e recorrendo a uma estratégia generalizada de intimidação atuam para que se mantenha o colonialismo ocidental, que fez do território um bastião do capitalismo na sua versão neoliberal mais ortodoxa.
Uma vez que o regresso do território à soberania chinesa é interpretado como uma tentativa de perturbar a ortodoxia colonialista reinante torna-se fácil entender o que está acontecendo, sobretudo enquadrando a situação na fase de ataque cerrado contra os avanços econômicos e comerciais chineses conduzido pela administração Trump. Em Hong Kong, o ativismo a soldo de Washington e Londres nada tem a ver com uma população que, quando chamada a pronunciar-se sobre a administração do território, vota em massa nas organizações sintonizadas com a soberania chinesa.
Nas urnas como nas ruas
Na Argentina e na Bolívia os cidadãos disseram nas urnas o mesmo que os chilenos, equatorianos, hondurenhos e libaneses expressam nas ruas: a rejeição do neoliberalismo.
A realidade é mais complexa, naturalmente, mas essa é a mensagem essencial.
«Começa a desenhar-se uma tendência popular para abandonar o conformismo e enfrentar Estados tornados autoritários para poderem impor as soluções econômicas únicas, as toleradas pelo mercado».
Essas ações populares não se confundem, a não ser no âmbito da estratégia manipuladora da própria propaganda neoliberal, com arruaças, tumultos e comportamentos terroristas como os que acontecem na Bolívia, na Venezuela, Hong Kong e Nicarágua, por exemplo»
Os argentinos não deixaram margem para dúvidas: aproveitaram a primeira oportunidade eleitoral que lhes surgiu e puseram fim ao terrorismo neoliberal implantado pela ditadura de Mauricio Macri, a serviço do FMI, que em quatro anos arrasou a economia do país ampliando fenômenos como a pobreza, a submissão, a desigualdade, a delinquência.
A afinidade entre chilenos e argentinos é total; o mesmo acontece com os equatorianos e os hondurenhos. Estes enfrentam corajosamente um regime terrorista nascido de um golpe patrocinado por Barack Obama e Hillary Clinton e sustentado por sucessivas eleições fraudulentas as quais, não obstante, têm recebido a chancela de legitimidade democrática outorgada por delegações da União Europeia.
Na Bolívia, o triunfo de Evo Morales e a nova rejeição do neoliberalismo foram difíceis num ambiente de manipulação norte-americana – a embaixada em La Paz foi apanhada comprando votos, principalmente em Santa Cruz, tal como já o fizera com deputados da Macedônia do Norte – que continua após as eleições.
O candidato oficial do neoliberalismo, o antigo presidente Carlos Mesa, deu o tiro de partida para a contestação levantando a acusação de «fraude» quando a contagem de votos estava no início. Dessa suposta fraude nenhuma prova apresentou, porque não houve. Mas as consequentes arruaças servem para a propaganda midiática disseminar o mote como uma verdade absoluta, sancionada por «organizações internacionais», as que se consideram portadoras dos mecanismos de avaliação de legitimidades.
Não é difícil perceber a intenção manipuladora da comunicação social dominante quando associa os protestos na Bolívia aos do Chile. No fundo é o mesmo estilo de propaganda que transforma em grandes manifestações populares pela democracia as arruaças terroristas do usurpador Juan Guaidó na Venezuela.
Desperta também o povo do Líbano. Nova sobrecarga de impostos num país avassalado por uma crise econômica e afogado em corrupção e privilégios dos titulares e ex-titulares do poder foi a gota que fez transbordar a paciência. É um protesto massivo contra um sistema político que pode ser assimilado a outros como os do Chile, Equador e Honduras, mas que que combina a ortodoxia neoliberal com um confessionalismo herdado do domínio colonial – sempre presente. Por isso, as reivindicações populares vão além da convocação de novas eleições gerais; exigem uma lei eleitoral que deixe de estar subordinada a quotas de eleitos distribuídas pelas comunidades étnico-religiosas e estabeleça um sufrágio universal direto e proporcional.
É aí que se fixa o nó do problema, porque nenhum dos protetores coloniais do Líbano, da França aos Estados Unidos, passando por Israel e Arábia Saudita, está disposto a aceitar uma transparência democrática que possa traduzir-se, por exemplo, numa vitória do Hezbollah, como chega a ser vaticinada ainda que a comunidade xiita não seja maioritária no país. As manifestações de massas fizeram já cair o presidente, mas a realização de eleições segundo a metodologia em vigor produzirá um pouco de mais do mesmo. E, para já, de uma maneira perversa, a Arábia Saudita marcou pontos, porque estava interessada na queda do atual chefe de Estado.
Os tumultos no Iraque têm motivações bastante mais ambíguas e enviesadas. Não é difícil arrastar as massas para as ruas numa situação de crise econômica grave decorrente da invasão, ocupação e desmantelamento do país pelas tropas norte-americanas, a que se seguiram guerras ainda por resolver. Porém, a concretização das exigências do setor mais radical e contundente dos manifestantes, a demissão do primeiro-ministro, seria um favor às pretensões atuais dos Estados Unidos, que veem no atual governo um adversário aos seus objetivos de isolamento e fragilização do Irã.
Povos em ação
Parece inegável que em pontos muito diferentes do globo há povos que despertam contra a ditadura econômica globalizante do neoliberalismo e as suas trágicas consequências sociais. Independente de questões específicas de cada caso, começa a desenhar-se uma tendência popular para abandonar o conformismo e enfrentar Estados tornados autoritários para poderem impor as soluções econômicas únicas, as toleradas pelo «mercado».
Essas ações populares não se confundem, a não ser no âmbito da estratégia manipuladora da própria propaganda neoliberal, com arruaças, tumultos e comportamentos terroristas como os que acontecem na Bolívia, na Venezuela, Hong Kong e Nicarágua, por exemplo, onde se colocam barreiras aos mecanismos predadores do «mercado».
O despertar dos povos, nas urnas ou nas ruas, vem pôr em causa os pilares em que assenta a democracia corrompida que serve de cobertura à ditadura do «mercado». Quer isto dizer que os povos não só querem ter voz como começam a exigir que esta seja ouvida e respeitada.
O que nos dizem estes levantamentos? Que ficar à espera de um neoliberalismo democrático é o mesmo que aceitar passivamente a canga da submissão perante a selvageria capitalista. Realidade que é válida tanto no exterior como no interior da União Europeia.
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