EL PAÍS - Daniel Haidar, Naiara Galarraga Gortázar
A investigação
sobre o assassinato, há 20 meses, da vereadora Marielle Franco, transformada em símbolo da
esquerda brasileira, saiu da letargia esta semana com um eletrochoque. A
notícia de que um porteiro do condomínio onde Jair Bolsonaro vivia antes de se mudar
para Brasília mencionou o presidente em relação com o crime
durante um interrogatório policial devolveu o caso à
atualidade. A revelação monopolizou o debate durante algumas horas, mas no dia
seguinte o Ministério Público lançou dúvidas sobre o testemunho. Esta é a
dinâmica de uma investigação que está corrompida, segundo a ex-procuradora-geral da
República Raquel Dodge.
O caso está cheio de lacunas, inclui graves
irregularidades, como um delegado que tentou incriminar um vereador com uma
confissão falsa, e continua cercado por uma corrente de informações,
frequentemente contraditórias ou confusas, que semeiam novas dúvidas sobre quem
encomendou o assassinato.
“598 dias. Quem mandou matar Marielle? E por
quê?”, tuitou na manhã deste sábado Eliane Brum, como vem fazendo diariamente.
A colunista do EL PAÍS aponta, como uma ladainha, as duas principais incógnitas
de um caso que tem como pano de fundo as milícias, grupos criminosos formados
por ex-policiais que controlam várias áreas do Rio de Janeiro. As suspeitas de
vínculos dos Bolsonaro com esse mundo vêm de longe, porque o clã dedicou boa
parte de suas carreiras políticas a defender os interesses corporativos dos
agentes das forças de segurança. Há meses se sabe que Bolsonaro era vizinho do suposto atirador,
que tem uma foto com o segundo suspeito... Marielle Franco representava outro
universo. Era uma negra criada em uma favela, mãe, bissexual e estrela
emergente no Partido Socialismo e Liberdade.
A TV Globo abriu
com a reportagem exclusiva o telejornal de maior audiência do país na terça-feira
à noite. O protagonista era o presidente e a data, a do assassinato. Um
porteiro contou à polícia que em 14 de março de 2018 o ex-policial militar
Élcio Queiroz, hoje na prisão, chegou de carro ao condomínio, disse que ia à
casa 58 (a de Bolsonaro), e um homem que se apresentou como Jair autorizou,
pelo interfone, sua entrada… mas o suspeito, em vez de ir à casa de Bolsonaro,
foi à do suposto assassino, Ronnie Lessa. A polícia acredita que pouco depois
ambos saíram para cometer o crime.
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Um Bolsonaro bastante
irritado negou imediatamente as acusações, em um vídeo gravado em plena noite
na Arábia Saudita, onde estava em viagem oficial. Está comprovado que no dia
que a vereadora e seu motorista foram assassinados, o então deputado federal
estava em Brasília, porque votou na Câmara. O Ministério Público semeou dúvidas
sobre a informação da Globo ao revelar que a declaração do porteiro não
coincide com as gravações da guarita, que indicariam que foi Lessa que
autorizou a entrada. Neste sábado, Bolsonaro afirmou que pegou a gravação da
portaria do seu condomínio "antes que fosse adulterada". "
Pegamos toda a memória da secretária eletrônica que é guardada há mais de ano.
A voz não é a minha", disse o presidente.
A investigação
continua em segredo, nas mãos da polícia do Rio, apesar das graves
irregularidades denunciadas pela então procuradora-geral Raquel Dodge em seu
último dia no cargo, em setembro. No documento em que pede a federalização do
caso, Dodge traça um cenário sombrio da situação na cidade. Sustenta que a
polícia estadual está contaminada e no documento há “diversas menções ao
Escritório do Crime [o grupo suspeito de ter assassinado Marielle e seu
motorista], às milícias espalhadas pela cidade, seus homicídios mediante
pagamento, participação de policiais ou ex-policiais, em um cenário de plena
impunidade” que, segundo ela, “nem a intervenção federal no Estado do Rio em
2018 conseguiu reverter”.
Entre os motivos para acusar de obstrução os atuais
responsáveis pelas investigações, Dodge destaca um emblemático. O delegado cuja
investigação apontou primeiro Lessa e Élcio Queiroz como executores dos
assassinatos propôs a um miliciano preso que confessasse ter sido contratado
por um vereador para matar Marielle. Diante da recusa desse miliciano, fez uma
contraproposta. O delegado lhe prometeu que, se confessasse ter sido sondado
pelo vereador para cometer o crime, não iria a julgamento por uma acusação
anterior de assassinato.
Dodge solicitou em
setembro que Domingos Brazão, ex-membro da
Assembleia Legislativa do Rio, seja investigado como autor intelectual do
assassinato, além de acusá-lo de obstruir a investigação. Mas,
nesta semana, a promotora do Rio responsável pelo caso Marielle declarou que
“não há provas concretas” da participação de Brazão.
Na sexta-feira, uma
das promotoras foi afastada da investigação depois que o The Intercept Brasil
revelou que ela era uma militante bolsonarista e que tirou foto com um político
local que destruiu uma placa em memória de Marielle Franco.
Os ex-policiais
Lessa e Élcio Queiroz estão presos. Quatro pessoas ligadas a eles foram
acusadas recentemente de se desfazer da arma do crime, que desde o começo se
considerou ter sido cometido por um profissional e por encomenda. Mas, como diz
a esquerda brasileira, Marielle está presente. E seu assassinato lança uma
enorme sombra sobre a polícia, os tribunais e a política do Brasil.
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