RICARDO DELLA COLETTA, Folhapress
BRASÍLIA, DF
(FOLHAPRESS) - A exclusão da Folha de S.Paulo, após promessa do presidente Jair
Bolsonaro (sem partido), de uma licitação da Presidência da República para o
fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa configura "ação
ilícita", "desvio de poder" e "fere o decoro do
cargo", afirmam especialistas consultados, incluindo ex-integrantes
de tribunais superiores.
"A meu
pensar não se trata em rigor de uma licitação, mas de uma ilícita ação.
Escancaradamente desrespeita a lei de licitações, que resume e sintetiza muito
bem os próprios princípios diretamente constitucionais da matéria", afirma
Carlos Ayres Britto, ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal).
O ex-ministro do
STJ (Superior Tribunal de Justiça) Gilson Dipp avalia que o ato
de Bolsonaro fere princípios constitucionais como o da impessoalidade
e da moralidade, desrespeita as leis de licitação e de improbidade
administrativa, além de ir contra o decoro do cargo.
Edital de pregão
eletrônico publicado na quinta-feira (28) no Diário Oficial da União prevê
a contratação por um ano, prorrogável por mais cinco, de uma empresa
especializada em oferecer a assinatura dos veículos de imprensa à Presidência.
A lista cita 24
jornais e 10 revistas. A Folha não é mencionada. O pregão eletrônico,
marcado para 10 de dezembro, tem um valor total estimado de R$ 194 mil: R$ 131
mil para jornais e R$ 63 mil para revistas. O edital da Presidência prevê, por
exemplo, 438 assinaturas de jornais, sendo 74 de O Globo e 73 de O Estado de S.
Paulo.
Procurada pela
reportagem, a Presidência da República ainda não informou o motivo da ausência
do jornal no processo de licitação e o critério técnico adotado.
Ao falar sobre o
tema, Bolsonaro disse na manhã da sexta-feira (29) que estava
"deixando de gastar dinheiro público".
"Olha,
a Folha de S.Paulo não serve nem para forrar aí o galinheiro.
Olha só, eu estou deixando de gastar dinheiro público", disse. Na mesma
entrevista, Bolsonaro fez novas ameaças à Folha e disse que
boicota produtos de anunciantes do jornal.
De acordo com
Ayres Britto, os atos da administração pública precisam ser regidos pelos
princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e
igualdade.
Portanto, ele diz
que é possível concluir "com extrema facilidade" que a retirada da
Folha do processo de concorrência "não tem a menor justificação
objetiva".
"E a
subjetividade, o personalismo, a fulanização, as preferências pessoais do
administrador público, tudo isso não conta como categoria jurídica. Pelo
contrário, é categoria antijurídica", conclui Ayres Britto, para quem o
edital que convocou a licitação deveria ser anulado.
Para o professor
emérito da PUC-SP Celso Antônio Bandeira de Mello, a retirada do jornal do
processo é "um ato nulo" e constitui "um desvio de poder
óbvio".
"Você não
pode excluir uma pessoa porque você não gosta dela ou porque te critica. Isso
não tem nada a ver com as razões jurídicas de exclusão, então é claro que se
trata de um ato nulo", diz Bandeira de Mello.
"Desvio de
poder é uso de uma competência para alcançar um resultado diferente daquilo
previsto na regra de competência. A regra de competência não é prevista para
alguém perseguir outros ou empresa. Portanto é um ato aberrantemente
nulo", acrescenta.
Para Bandeira de
Mello, o fato de estar configurado desvio de poder faz com que seja possível a
formulação de um pedido de impeachment contra Bolsonaro.
"É como se
alguém dissesse: 'Eu quero verificar o que vai acontecer comigo e vou praticar
um desvio de poder chocante'. É um ato repugnante na verdade", conclui.
O ex-ministro do
STJ Gilson Dipp afirma que ficou patente que o objetivo do presidente é
promover uma "retaliação política" em razão da cobertura crítica do
jornal, o que configura uma "censura expressa".
"É tão
inadmissível o ato que fere inúmeros princípios constitucionais e inúmeras
normas legais, além do próprio decoro da Presidência da República. Parece que o
presidente Bolsonaro conseguiu, num ato só, trazer uma série de consequências
jurídicas legais e constitucionais. Se quisesse fazer isso de propósito, ele
não conseguiria. Uma mera declaração faz incidir sobre ela o ferimento de
inúmeros princípios legais e constitucionais ao mesmo tempo", afirma Dipp.
"É só
escolher quem tem a legitimidade para acioná-lo na Justiça. Tem tantas
infrações que é só escolher. E acho que tem que se propor, mesmo com todas as
dificuldades de se processar o presidente da República. Tem sim que promover
essas ações, entulhar a Presidência da República de ações. Ele é o líder e se
manifesta por todo um governo totalmente autoritário", acrescenta.
Ainda segundo
Dipp, a infração de normas como as leis de licitação e de improbidade
administrativa são cabíveis de punições específicas, até mesmo o impedimento do
presidente.
"A Lei de
Improbidade pode levar até o impedimento do presidente. Por ato de improbidade
ele pode ser multado, perder os direitos políticos. Ele pode ter uma série de
consequências pessoais", diz o ex-ministro do STJ.
"A falta de
decoro está entre os casos explicitados na Lei de Responsabilidade, que também
pode levar ao impedimento. Está tudo na lei. Não estamos inventando",
conclui.
O Grupo
Prerrogativas, que reúne diversos especialistas do direito, também se
manifestou sobre o tema.
Em nota, seus
integrantes afirmam que a exclusão da Folha do processo licitatório faz do
Estado "instrumento de vingança pessoal do ocupante do cargo de presidente
da República".
Além de contrariar
os princípios da impessoalidade e imparcialidade, o grupo diz que Bolsonaro
também praticou abuso de poder, conflito de interesse e desvio de
finalidade.
"É imperativo
que o ato administrativo de exclusão sumária do jornal seja revogado, assim
como é imperativo que o Poder Legislativo, no seu papel de fiscalização dos
atos do governo, investigue a impropriedade tanto do ato como da fala do
presidente da República", diz a nota.
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