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“Como especialistas
em Direito Internacional Público, somos obrigadas a alertar para o grave perigo
de reviver o TIAR, bastante em desuso, para dotá-lo de competência criminal e
persecutória nas relações interamericanas, em especial no atual contexto das
guerras híbridas que abalam a região. Destacamos que o uso anômalo, que
extrapola os limites da própria finalidade, configura violações contundentes
aos princípios basilares do direito internacional”.
O artigo é de Gisele
Ricobom, Larissa Ramina e Carol Proner, doutoras em direito internacional,
membros da Secretaria de Relações Internacionais da Associação Brasileira de
Juristas pela Democracia – ABJD, publicado por Jornal GGN, 25-09-2019.
Eis o artigo.
No último dia 11 de setembro, o Conselho Permanente da OEA, por iniciativa da
Colômbia, decidiu invocar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca –
TIAR contra a Venezuela sob o argumento de que o governo estaria vinculado ao
narcoterrorismo e que abrigaria, treinaria e financiaria os remanescentes das
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e do Exército de Libertação
Nacional (ELN).
Menos de duas semanas
após, em reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, foram
definidas resoluções a serem implementadas no marco do Mecanismo de Segurança
Coletiva, prevendo todas as medidas disponíveis para “investigar, processar,
capturar, extraditar e punir” pessoas ou entidades associadas ao regime de
Nicolás Maduro por atividades ilícitas de ativos, tráfico de drogas e
terrorismo. E ainda, identificar pessoas que exerçam ou tenham exercido funções
como altos funcionários do governo da Venezuela, que tenham participado de atos
de corrupção ou de violações graves aos direitos humanos.
Como especialistas em
Direito Internacional Público, somos obrigadas a alertar para o grave perigo de
reviver o TIAR, bastante em desuso, para dotá-lo de competência criminal e
persecutória nas relações interamericanas, em especial no atual contexto das
guerras híbridas que abalam a região. Destacamos que o uso anômalo, que
extrapola os limites da própria finalidade, configura violações contundentes
aos princípios basilares do direito internacional.
É certo que o Tratado
sempre foi um instrumento de acúmulo hegemônico no continente. Assinado em
1947, trata-se de um acordo ancorado na “doutrina da defesa hemisférica” e na
“política da boa vizinhança”, estimulada por Franklin Roosevelt, que atendeu a
um duplo sentido: por um lado, inibir a influência da então União Soviética no
continente americano e, por outro, projetar a hegemonia militar e política dos
Estados Unidos nas Américas.
Fundamentalmente, o
TIAR prevê que um ato armado contra qualquer um dos Estados-Parte representa um
ataque a todos os países, autorizando uma ação conjunta contra o agressor no
exercício do direito de legítima defesa individual ou coletiva, reconhecido
pelo Artigo 51 da Carta da ONU. Portanto, para ser acionado, o mecanismo exige
um ato de agressão ao território de um dos Estados-Parte ou, ao menos, um caso
de agressão à soberania ou à independência política de qualquer Estado-Parte.
Entretanto, há
limites para medidas tão extremas. O TIAR prevê que as medidas de legítima
defesa poderão ser aplicadas somente até que o Conselho de Segurança da ONU
passe a tomar as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança
internacionais. Tais medidas são bem definidas no Tratado e incluem a retirada
dos chefes de missão, a ruptura de relações diplomáticas, a ruptura de relações
consulares, a interrupção parcial ou total das relações econômicas ou das
comunicações e o emprego das forças armadas.
É cristalino, como
bem definido no Tratado, que as medidas contemplam ações contra um Estado-Parte
e jamais a responsabilização individual dos governantes ou de pessoas e
organizações ligadas a um governo. O TIAR tampouco autoriza a criação de
mecanismos de cooperação para crimes transnacionais e menos ainda repressão a
novos tipos de crime, como é o caso da corrupção elevada à categoria de
transnacional e usada como forma de guerra jurídica contra líderes políticos no
continente.
É de se destacar,
princípio basilar do direito internacional, que o mecanismo de segurança
coletiva não permite a ingerência nos assuntos de domínio reservado dos
Estados. Ao contrário, tanto a Carta da ONU quanto a da OEA preservam o
princípio da não intervenção, mesmo em casos de violações sistemáticas de
direitos humanos, crimes de terrorismo, corrupção e dos outros atos invocados
pela RC30/RES.1/19, da Reunião de Consulta dos Chanceleres da OEA.
Desde a sua
assinatura, o TIAR foi invocado cerca de vinte vezes, mas nunca foi de fato
aplicado. A influência dos EUA ficou evidente em 1988, quando a Argentina o
invocou para angariar apoio contra o Reino Unido na guerra das Malvinas, momento
em que os EUA se negaram a cumpri-lo, permitindo a agressão de uma potência
estrangeira contra um país do continente.
Em 2001, após os
atentados de 11 de setembro nos EUA, o Brasil, sob a presidência de Fernando
Henrique Cardoso e num gesto de alinhamento com os EUA, invocou o TIAR, mas a
iniciativa não recebeu apoio e foi até bastante questionada, demonstrando o
desprezo dos países da região pelo obsoleto instrumento de dominação regional.
Não é de se
estranhar, portanto, que o TIAR venha a ser resgatado com força no atual
momento e com apoio irrestrito do Brasil, em consonância com a política externa
vassala e subserviente do governo Bolsonaro. Recentemente, conforme revelado
pelo site The Intercept, foram conhecidos os documentos que revelam os planos
dos Estados Unidos para o Brasil, um plano de quatro anos para reconstruir a
economia do país e abri-la a corporações estrangeiras, via privatizações e
parcerias público-privadas, inclusive no setor de petróleo.
A injeção de
dinheiro (48 bilhões de dólares) por intermédio do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), e as medidas descritas nos documentos favoreceriam a
troca de poder na Venezuela, pois a saída da crise permitiria a Guaidó
reivindicar a responsabilidade pela assistência internacional, como vem fazendo
desde que se autoproclamou presidente.
Com mais de 2,9
bilhões de barris por ano, os Estados Unidos são os maiores importadores de
petróleo do mundo. E cerca de 500 milhões de barris são provenientes da
Venezuela, cujas reservas são dez vezes maiores que as estadunidenses. Por
outro lado, o país é considerado estratégico do ponto de vista logístico,
porque o custo de importação é inferior ao do Golfo Pérsico.
Mesmo assim, e apesar
do amplo reconhecimento de Juan Guaidó pelos países do Grupo de Lima, os
intentos para que ele fosse legitimado e confirmado internamente falharam,
justificando a estratégia de afastar o governo de Maduro por intermédio de
práticas típicas da Guerra Fria.
O TIAR, como tal, é
um tratado obsoleto e marcado pelo autoritarismo de outros tempos, mas que
agora passa a ser resgatado como instrumento adicional das guerras híbridas no
continente, um espécie de novo Plano Condor. O uso contemporâneo inclui
resgatar a narrativa do terrorismo e da agenda da corrupção transnacional como
forma de justificar os mecanismos de persecução criminal e combate a governos
não alinhados.
Não é por outra razão
que a resolução prevê a criação de uma rede, de caráter operacional, com o
propósito de intensificar a cooperação jurídica, judicial e policial para
investigar atos de lavagem de ativos, tráfico de drogas, terrorismo e a
criminalidade organizada transnacional. Nas palavras do suposto chanceler de
Guaidó, Julio Borges, a constituição de uma inteligência para investigação
contra a corrupção, lavagem de dinheiro e violação de direitos humanos “vai
atuar como um corpo único na região”.
A semelhança com o
uso do direito para fins políticos não é coincidência. O lawfare, como tem sido
denunciado em muitos lugares do mundo, é uma prática ardil do uso do direito
para fins geopolíticos e que, no caso do TIAR, também parece operar, utilizando
o pretexto da cooperação internacional aos graves crimes transnacionais para
legitimar o uso do mecanismo de intervenção armada para além de seus propósitos
originais.
Entendemos, portanto,
ser urgente denunciar o TIAR por sua iminente ameaça bélica contra a Venezuela,
contrariando o princípio da solução pacífica de controvérsias e abrindo um
precedente perigoso e irreversível para a paz no continente.
http://www.ihu.unisinos.br/592920-tiar-e-o-novo-plano-condor-no-continente
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