segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Os aproveitadores da guerra


por Dmitry Orlov

No interior da vasta burocracia do Pentágono existe um grupo encarregado de monitorar o estado geral do complexo militar-industrial e a sua capacidade contínua de cumprir os requisitos da estratégia de defesa nacional. O gabinete para a aquisição e manutenção e o gabinete para a política industrial gastam cerca de US$100 mil por ano para produzir um Relatório Anual ao Congresso. Ele está disponível para o público em geral. Está disponível até para o público em geral e especialistas russos divertiram-se muito a examiná-lo.
De fato, o relatório encheu-os de otimismo. Como se sabe, a Rússia quer a paz, mas os EUA parecem desejar a guerra e continuam a fazer gestos ameaçadores contra uma longa lista de países que se recusam a cumprir suas ordens ou simplesmente não compartilham seus “valores universais”. Mas agora verifica-se que aquelas ameaças (e sanções econômicas cada vez mais sem garra) são quase tudo o que os EUA ainda são capazes de oferecer – isto apesar dos níveis absolutamente astronômicos dos gastos com defesa. Vamos ver com o que parece o complexo militar-industrial dos EUA através de lentes russas.
É importante observar que os autores do relatório não pretendiam forçar legisladores a financiar algum projeto específico. Isso o torna mais valioso do que inúmeras outras fontes, cujo principal objetivo dos autores é encher a barriga com o orçamento federal e que, portanto, tendem a ser ligeiros acerca de fatos e fortes em publicidade. Sem dúvida, a política ainda desempenha um papel na forma como vários pormenores são retratados, mas parece haver um limite para o número de problemas que seus autores podem eliminar e ainda assim fazer um trabalho razoável de análise da situação e de formulação de recomendações.
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O que provocou risos na análise russa foi o fato de que estes peritos do INDPOL (que, como o resto do Departamento da Defesa dos EUA, adoram siglas) avaliam o complexo militar-industrial dos EUA a partir de uma perspectiva com base no mercado! Você vê, o complexo militar-industrial russo é totalmente de propriedade do governo russo e trabalha exclusivamente no seu interesse; qualquer coisa diferente seria considerada traição. Mas o complexo militar-industrial dos EUA é avaliado com base na sua… lucratividade! De acordo com o INDPOL, ele deve não apenas produzir produtos para os militares, mas também adquirir fatia de mercado no comércio global de armas e, talvez mais importante, maximizar a lucratividade para investidores privados. Por este padrão, está se saindo bem: em 2017, a margem bruta (EBITDA) para os contratantes da defesa dos EUA variou de 15 a 17%, e alguns subcontratados – Transdigm, por exemplo – conseguiram obter nada menos que 42-45%. “Ah!”, gritam os especialistas russos: “Encontramos o problema! Os americanos legalizaram o lucro da guerra !” (Isto, a propósito, é apenas um dos muitos exemplos de algo chamado corrupção sistêmica, a qual é abundante nos EUA.)
Seria uma coisa se cada empreiteiro de defesa simplesmente cortasse a sua talhada do topo, mas em vez disso há toda uma cadeia alimentar de empreiteiros da defesa, a todos os quais é legalmente exigido, nada menos, que maximizem os lucros dos seus acionistas. Mais de 28 mil empresas estão envolvidas, mas os verdadeiros empreiteiros de primeira linha junto aos quais o Pentágono coloca 2/3 de todos os contratos de defesa são apenas os Seis Grandes: Lockheed Martin, Northrop Grumman, Raytheon, General Dynamics, BAE Systems e Boeing. Todas as outras empresas estão organizadas numa pirâmide de subcontratados com cinco níveis hierárquicos, e em cada nível eles fazem o melhor que podem para ordenhar o nível lhes está acima deles.
A insistência em métodos baseados no mercado e a exigência de maximizar a lucratividade acabam por ser incompatíveis com os gastos de defesa num nível muito básico: os gastos com defesa são intermitentes e cíclicos, com longos intervalos de ociosidade entre as encomendas principais. Isto forçou até mesmo os seis grandes a efetuarem cortes nos seus departamentos de defesa em favor da expansão da produção civil. Além disso, apesar do enorme tamanho do orçamento de defesa dos EUA, ele é de dimensão finita (há apenas um planeta para explodir), assim como o mercado global de armas. Uma vez que, numa economia de mercado, toda empresa enfrenta a opção de crescer ou ser comprada, isto tem precipitado grande número de fusões e aquisições, resultando num mercado altamente consolidado com uns poucos atores importantes em cada área.
Em consequência, na maior parte das áreas, das quais os autores do relatório discutem 17, incluindo a Marinha, forças terrestres, força aérea, eletrônica, armas nucleares, tecnologia espacial e assim por diante, pelo menos um terço do tempo o Pentágono tem como escolha exatamente um empreiteiro para qualquer contrato específico, o que faz com que a qualidade e a pontualidade sofram, elevando preços.
Num certo número de casos, apesar de seu poder industrial e financeiro, o Pentágono tem se deparado com problemas insolúveis. Especificamente, verificou-se que os EUA têm apenas um estaleiro naval capaz de construir porta-aviões nucleares (por isso o USS Gerald Ford não é exatamente um êxito). Este é o Northrop Grumman Newport News Shipbuilding, em Newport, Virgínia. Em teoria, esta empresa poderia trabalhar com três navios de forma simultânea, mas dois deles estão permanentemente ocupados por porta-aviões existentes que exigem manutenção. Não se trata de um caso único: o número de estaleiros capazes de construir submarinos nucleares, destróieres e outros tipos de navios também é exatamente de um. Portanto, no caso de um conflito prolongado com um adversário sério no qual uma parcela significativa da Marinha dos EUA tenha sido afundada, será impossível substituir os navios em qualquer período de tempo razoável.
A situação é um pouco melhor quanto à fabricação de aeronaves. As fábricas que existem podem produzir 40 aviões por mês e poderiam chegar aos 130 por mês se pressionadas. Por outro lado, a situação com tanques e artilharia é absolutamente desanimadora. De acordo com este relatório, os EUA perderam completamente a competência para construir a nova geração de tanques. Não se trata mais da perda da fábrica e do equipamento; nos EUA, uma segunda geração de engenheiros que nunca projetou um tanque está se aposentando. Seus substitutos não têm ninguém com quem aprender e só sabem acerca de tanques modernos a partir de filmes e videogames. No que diz respeito à artilharia, há apenas uma linha de produção remanescente nos EUA que pode produzir canos superiores a 40 mm; ela está totalmente lotada de serviço e seria incapaz de aumentar a produção em caso de guerra. O empreiteiro não está disposto a expandir a produção a menos que o Pentágono garanta pelo menos 45% de utilização, uma vez que isso não seria rentável.
A situação é semelhante para todas as áreas da lista; ela é melhor para tecnologias de uso duplo que podem ser obtidas junto a empresas civis e significativamente pior para empresas altamente especializadas. O custo unitário de cada tipo de equipamento militar aumenta ano após ano, enquanto os volumes sendo adquiridos tendem continuamente a baixar – por vezes até zero. Ao longo dos últimos 15 anos, os EUA não adquiriram um único tanque novo. Eles continuam a modernizar os antigos, mas a uma taxa que não vai além de 100 por ano.
Devido a todas estas inclinações e tendências, a indústria de defesa continua a perder não só pessoal qualificado como também a capacidade de realizar o trabalho. Peritos do INDPOL estimam que o déficit em máquinas ferramenta atingiu os 27%. No último quarto de século os EUA cessaram de fabricar uma grande variedade de equipamentos manufatureiros. Apenas metade destas ferramentas pode ser importada de aliados ou nações amigas; para o resto, há apenas uma fonte: a China. Eles analisaram as cadeias de fornecimento de 600 dos mais importantes tipos de armas e descobriram que um terço delas tem rupturas ao passo que outro terço arruinou-se completamente. Na pirâmide subcontratada de cinco níveis do Pentágono, os fabricantes de componentes são quase sempre relegados ao nível mais baixo e os avisos que eles emitem quando cessam a produção ou encerram completamente tendem a afogar-se no pântano burocrático do Pentágono.
O resultado final de tudo isso é que teoricamente o Pentágono ainda é capaz de efetuar pequenos ciclos de produção de armas para compensar perdas contínuas em conflitos localizados de baixa intensidade num período geral de paz, mas hoje mesmo isto está no extremo final das suas capacidades. No caso de um conflito sério com qualquer nação bem armada, tudo com que poderá contar é o estoque existente de munições e peças sobressalentes, a quais serão rapidamente esgotadas.
Uma situação semelhante prevalece na área de elementos extraídos de terras raras e outros materiais para a produção eletrônica. No momento, o estoque acumulado destes materiais necessários à produção de mísseis e tecnologia espacial – sobretudo os satélites – é suficiente para cinco anos à taxa de utilização atual.
O relatório classifica especificamente como terrível situação na área das armas nucleares estratégicas. Quase toda a tecnologia para comunicações, direcionamento, cálculos de trajetória e armamento das ogivas dos ICBM foi desenvolvida nos anos 1960 e 70. Até os dias de hoje, os dados são carregados a partir de disquetes floppy de 5 polegadas, as quais eram produzidas em massa há 15 anos atrás. Não há substitutos para elas e as pessoas que as conceberam estão mortas. A opção está entre comprar pequenas quantidades de produção de todos os consumíveis a um custo extravagante ou desenvolver a partir do zero toda a tríade estratégica baseada na terra, ao custo de três orçamentos anuais do Pentágono.
Existem muitos problemas específicos em cada área descrita no relatório, mas a principal é a perda de competência entre a equipe técnica e de engenharia causada por um baixo nível de encomendas de substituição ou para o desenvolvimento de novos produtos. A situação é tal que novos desenvolvimentos teóricos promissores provenientes de centros de investigação como o DARPA não podem ser realizados, dado o atual conjunto de competências técnicas. Para uma série de especializações chave, há menos de três dúzias de especialistas treinados e experientes.
Há a expectativa de que esta situação continue a se deteriorar, com o número de pessoas empregadas no setor da defesa diminuindo 11-16% ao longo da próxima década, devido principalmente à escassez de jovens candidatos qualificados para substituir aqueles que se reformam. Um exemplo específico: o trabalho de desenvolvimento do F-35 está quase pronto e não haverá necessidade de desenvolver um novo caça a jacto até 2035-2040. Nesse meio tempo, o pessoal envolvido em seu desenvolvimento ficará ocioso e o seu nível de competência se deteriorará.
Embora no momento os EUA ainda liderem o mundo em gastos com defesa (US$ 610 bilhões dos US$ 1,7 trilhões em 2017, que é cerca de 36% de todos os gastos militares no planeta), a economia dos EUA já não é capaz de suportar toda a pirâmide tecnológica mesmo num tempo de relativa paz e prosperidade. No papel, os EUA ainda parecem como um líder em tecnologia militar, mas os fundamentos da sua supremacia militar foram corroídos. Os resultados disso são claramente visíveis:
Os EUA ameaçaram a Coreia do Norte com ações militares, mas foram forçados a recuar porque não têm capacidade para travar uma guerra contra ela.

Os EUA ameaçaram o Irã com ações militares, mas foram forçados a recuar porque não têm capacidade de travar uma guerra contra ele.
Os EUA perderam a guerra no Afeganistão para o Talibã e quando o mais longo conflito militar na história dos EUA finalmente estiver acabado a situação política ali voltará ao status quo ante com o Talibã no comando e campos de treino terrorista islâmico em operação.
Mandatários dos EUA (sobretudo a Arábia Saudita) que combatem no Iêmen provocaram um desastre humanitário, mas têm sido incapazes de prevalecer militarmente.
As ações dos EUA na Síria levaram a uma consolidação do poder e do território pelo governo sírio e à posição regional agora dominante da Rússia, Irã e Turquia.
A segunda maior potência da OTAN, a Turquia, comprou os sistemas de defesa aérea S-400 da Rússia. A alternativa dos EUA é o sistema Patriot, o qual é duas vezes mais caro e realmente não funciona.
Todos estes pontos apontam para o fato de que os EUA já não são mais uma potência militar de todo. Isto é uma boa notícia pelo menos pelas quatro seguintes razões.

Primeiro, os EUA são de longe o país mais beligerante da Terra, tendo invadido grande número de países e continuado a ocupar muitos deles. O fato de não poderem mais combater significa que oportunidades para a paz devem aumentar.
Segundo, uma vez entendida a notícia de que o Pentágono é nada mais do que um autoclismo para fundos públicos, seu financiamento será cortado e a população dos EUA poderá ver o dinheiro que atualmente está engordando os aproveitadores de guerra sendo gasto em estradas e pontes, embora pareça muito mais provável que todo ele irá servir para pagar a despesa de juros da dívida federal (enquanto durarem os estoques de materiais).
Terceiro, os políticos dos EUA perderão a capacidade de manter a população em estado de ansiedade permanente em relação à “segurança nacional”. Na verdade, os EUA têm “segurança natural” – dois oceanos – e não precisam de todo de muita defesa nacional (desde que se mantenham a si próprios e não tentem criar problemas aos outros). Os canadenses não vão invadi-lo e, embora a fronteira do sul precise de alguma guarda, isso pode ser cumprido ao nível estadual/municipal por alguns bons rapazes usando armas e munição de que já dispõem. Uma vez que esta “defesa nacional” de US$ 1,7 trilhões esteja fora das suas costas, cidadãos americanos comuns poderão trabalhar menos, brincar mais e sentirem-se menos agressivos, ansiosos, deprimidos e paranoicos.
Por último, mas não menos importante, será delicioso ver os aproveitadores da guerra reduzidos a rasparem sob as almofadas do sofá para conseguirem uns trocados. Tudo o que os militares dos EUA têm sido capazes de produzir durante longo tempo até agora é miséria, cujo termo técnico é “desastre humanitário”. Olhe-se para as consequências do envolvimento militar dos EUA na Sérvia/Kosovo, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e Iêmen e o que se vê? Só se vê miséria – tanto para os habitantes locais quanto para os cidadãos americanos que perderam membros da sua família, tiveram suas pernas amputadas ou agora sofrem de PTSD ou lesão cerebral. Seria justo se essa desgraça voltasse àqueles que lucraram com isso.
16/Julho/2019

O original encontra-se em cluborlov.blogspot.com/2019/07/war-profiteers-and-demise-of-us.html
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


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