EL PAÍS - Naiara Galarraga Gortázar
© ARIEL SUBIRÁ Glenn Greenwald em sua casa no Rio de
Janeiro.
Nos últimos seis
anos, o advogado Glenn Greenwald (Nova
York, 1967) se tornou uma figura fundamental do jornalismo investigativo.
Instalado no Rio de Janeiro há 15 anos, foi a ele que o analista Edward Snowden recorreu em 2012 com os
documentos que revelavam os programas de vigilância em massa do Governo
dos Estados Unidos, porque tinha lido seu blog e
suas colunas no site Salon. A publicação daquela história lhe rendeu um prêmio
Pulitzer e levou à criação do jornal digital The Intercept. É nele que o jornalista publica há um mês,
em conjunto com outros jornalistas da equipe, sua mais recente grande história:
as mensagens trocadas entre Sérgio Moro, o então juiz que condenou o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à prisão e é um símbolo da luta contra
a corrupção, e os procuradores da operação Lava Jato.
Moro pendurou a toga para
ser ministro da Justiça no Governo do presidente Jair Bolsonaro e anunciou
recentemente que tiraria cinco dias de licença sem salário a partir desta
segunda-feira para resolver “assuntos particulares”. Desde que publicou sua
revelação exclusiva, Greenwald é considerado um vilão por quem vê Moro como um
herói. E vice-versa.
Greenwald, que já
escreveu meia dúzia de livros e é conhecido por ser um crítico feroz e
heterodoxo do poder e das elites, não teme a polêmica, e apontou enfaticamente
os erros dos democratas e da imprensa dos EUA depois da eleição de Donald Trump. Também denunciou que o movimento
anti-Trump é “a primeira #resistência na história que venera as agências de
segurança estatais”.
No Brasil, o
jornalista é, além disso, o marido de um deputado de esquerda, David Miranda, com quem
adotou dois meninos e formou uma família. Desde que revelou as mensagens de
Moro, anda com escolta armada. O som da chuva torrencial pontuado por latidos −
eles vivem com cerca de 20 cachorros − é o pano de fundo desta entrevista na
casa da família, no Rio de Janeiro.
Pergunta. Como foi o instante em que recebeu o
vazamento sobre Sérgio Moro?
Resposta. Foi algo muito parecido com o que senti ao
receber os arquivos de Snowden. Incredulidade. No jornalismo você consegue boas histórias,
mas elas raramente são disruptivas. Desta vez, eu sabia que isto ia ser uma
bomba no Brasil, porque o que eu estava lendo era não apenas chocante, como
também implicava aquela que provavelmente é a pessoa mais respeitada e poderosa
do país, mais até do que o presidente. Eu sabia que seria muito polêmico. Ele
[Moro] é provavelmente quem dá credibilidade e legitimidade ao Governo de Bolsonaro.
P. Os documentos foram enviados por correio eletrônico ao seu site?
Foi à redação? Ligaram?
R. Não posso contar nada, para proteger a fonte, não posso contar nada
sobre como nos chegou o material.
P. Dizem que a equipe se reuniu em um hotel porque o arquivo é enorme
e precisavam de segredo e de muito cuidado.
R. A primeira coisa é sempre a segurança. Somos uma agência de
notícias com sede nos Estados Unidos. No The Intercept, antes dos jornalistas,
contratamos especialistas em segurança tecnológica. Mesmo que a polícia
brasileira viesse até minha casa e levasse meu computador e meus telefones,
nunca seria capaz de chegar ao arquivo, porque ele está seguro, fora do Brasil,
em muitos lugares diferentes. Vendo o tamanho, entendemos que era necessário
trabalhar em equipe e que era necessário que nos associássemos a outros
veículos de comunicação, também para garantir nossa própria proteção.
P. Vocês se associaram ao maior jornal, a Folha de S. Paulo, e à
maior revista semanal, a Veja.
R. Sim, e eles têm equipes grandes que cobrem a operação Lava Jato há
anos, que cobriram Moro. Eles têm um conhecimento que nós não temos
necessariamente. Temos jornalistas expertos em Lava Jato, Leandro [Demori],
Rafael [Moro Martins], Amanda [Audi]. Quanto mais jornalistas você envolve em
um assunto, mais profundo é o jornalismo que você faz.
P. O The Intercept inclui em seu site instruções
detalhadas para que as fontes possam lhes enviar vazamentos.
R. Sim, mas enfatizamos que não existe a segurança absoluta, o 100%.
Isso é algo que Sergio Moro acaba de descobrir. Ele usava o sistema de
mensagens por celular Telegramporque pensava que era totalmente
seguro.
P. O ministro Moro se defendeu dizendo que o comportamento dele como
juiz pode ser surpreendente em outros países, mas que é comum, tradicional, no
Brasil.
R. Essa tradição que ele diz existir é rejeitada pelo código de
conduta judicial, que exige que um juiz seja imparcial. É proibido
explicitamente o que ele diz que é comum e tradicional: basicamente, juízes colaborando com uma das
partes. Mas mais significativo ainda é que durante os últimos quatro
ou cinco anos houve suspeitas, sem provas, de que Moro estava colaborando com
os procuradores e ele nunca disse que era “uma tradição”. Ele negou
veementemente.
P. Você teme que sua imparcialidade como jornalista seja questionada
porque seu marido é político?
R. Nunca acreditei que os jornalistas deveriam fingir não ter
opiniões. Até certo ponto, é mais honesto ser aberto sobre seus pontos de
vista. E algo que acho engraçado é que no Brasil as pessoas me associam com a
esquerda, enquanto nos EUA às vezes acreditam que sou de direita porque apareço
na rede Fox.
P. Houve uma grande campanha de intimidação contra você, da qual
participaram dois filhos do presidente, sem que este ou o ministro da Justiça a
impedissem. Tem medo?
R. No jornalismo, você sempre corre riscos. E, se enfrenta alguém no
poder, podem castigar você ou se vingar. Mas nós decidimos que valia a pena
assumir o risco. Acredito que este Governo é repressor e autoritário, e
acredito que Moro demonstrou que está disposto a violar todas as leis. Mas o
que os torna perigosos é que agora eles se sentem desesperados. Moro sabe que
eu sei tudo o que ele disse e fez. E que vamos contar tudo.
P. O que o trouxe para o Brasil?
R. Vim por sete semanas para clarear as ideias. Meu primeiro marido e
eu tínhamos nos separado, eu tinha 37 anos, estava cansado de ser advogado...
Conheci o David no primeiro dia, nós nos apaixonamos e naquela época os EUA
tinham uma lei de [Bill] Clinton que
proibia o Governo federal dar qualquer benefício a casais do mesmo sexo. David
não podia obter um visto para os EUA. Mas os tribunais do Brasil tinham criado
uma norma que dava direito de residência permanente aos casais do mesmo sexo. O
Brasil era a única opção para estarmos juntos.
P. O jornalismo investigativo é mais difícil do que nos tempos
do Wikileaks ou de Snowden?
R. No sentido tecnológico é mais fácil, mas no legal, mais difícil.
Uma das coisas geniais do Wikileaks é que Assange foi o primeiro a ver que, graças
ao armazenamento digital, os vazamentos em massa de informações de instituições
poderosas seriam o novo motor do jornalismo na era digital. Um de meus heróis
da infância era Daniel Ellsberg, que vazou dezenas de milhares de páginas dos
papéis do Pentágono. Demorou meses para copiar os documentos secretos. Snowden
levou algumas horas. Mas os poderosos, cada vez mais ameaçados por essa
facilidade para os vazamentos maciços, estão ficando mais agressivos na hora de
criminalizar o jornalismo investigativo.
P. Assange é um jornalista?
Este é um ponto central no debate sobre seu caso judicial.
R. Acredito que o que ele fez é jornalismo. Não acho que um
jornalista deva ter formação específica como a de um médico ou um advogado.
Qualquer cidadão pode revelar informação de interesse público. Assange
trabalhou com jornais do mundo todo, The New York Times, The Guardian,
EL PAÍS etc., não como uma fonte, mas como um parceiro jornalístico. Não tenho
uma relação muito estreita com ele, mas sou uma das poucas pessoas que, apesar
de criticá-lo pontualmente, sempre defenderam a importância de seu trabalho. Em
2018, David e eu passamos três dias com ele na embaixada [do Equador em
Londres].
P. E com Snowden?
R. Tenho muito relacionamento. Juntamente com Daniel Ellsberg, Laura
Poitras e outras pessoas criamos uma organização para a liberdade da
informação, com a qual Snowden trabalha. Estive em Moscou há um ano e passamos um dia normal
como amigos, fomos ao parque Gorki... Quando o visitei pela primeira vez,
estava sob extrema pressão e não se sentia à vontade nem mesmo saindo à rua.
Hoje não pode sair da Rússia porque seria preso, mas é a pessoa mais feliz que
conheço porque, com coragem e sacrifício, tomou uma decisão corajosa e estava
plenamente consciente disso.
P. Quanto do orçamento do The Intercept é coberto pelos
leitores e quanto por Pierre Omidyar, o dono do Ebay, que financiou o projeto?
R. Claramente, a maior parte ainda vem do nosso fundador, mas a cada
ano que passa isso vai se equilibrando porque cresce o apoio dos leitores.
Aqui, no Brasil, disparou.
P. Para seus filhos, como é crescer no Brasil de Bolsonaro com dois
pais, que além do mais são conhecidos?
R. Pensamos nisso antes de adotá-los, quando Bolsonaro ainda não era
presidente, mas já havia um crescente movimento da direita. No Brasil querem
apresentar a comunidade LGBTQI como uma
ameaça para as crianças. A família que criamos dinamita essa demonização. É
nossa obrigação mostrar que as famílias LGBTQI podem ser completas e felizes.
Proteção da privacidade
Glenn Greenwald
explica que as agências de inteligência podem transformar um celular em
instrumento de vigilância, embora não tão facilmente. Por isso, desde que
Edward Snowden o contatou em 2013 para lhe entregar os arquivos que provavam a
espionagem em massa de cidadãos americanos pela Agência de Segurança Nacional dos EUA
(NSA), o jornalista toma todas as precauções ao se comunicar com seus colegas,
com as fontes e com qualquer pessoa com quem troque informações sensíveis.
A
medida de segurança mais óbvia é retirar os celulares da sala. Seis anos depois
daquela reportagem exclusiva de 2013, Greenwald afirma que ela teve tanta
repercussão porque “no fim das contas, instintivamente, somos animais que
precisam de um espaço privado”. Por isso é que se coloca um ferrolho no
banheiro e se usa uma senha no correio eletrônico, diz ele. “Todos sentimos que
há coisas que compartilharíamos com um médico, com nosso parceiro ou com nossos
melhores amigos, mas que nos dariam vergonha se fossem públicas.”
Greenwald opina
que, no entanto, o debate sobre a perda de privacidade não
tem a importância que deveria ter entre a população. Se as revelações de
Snowden colocaram o foco na intromissão dos Governos, com os EUA à frente,
agora são as grandes empresas de tecnologia, como Facebook e Google, que estão no centro
das atenções. “A forma como a tecnologia permite que nos vigiemos o tempo todo
é mais grave do que o público entende, e o debate sobre isso é insuficiente”,
afirma. A vida digital transformou os usuários, muitas vezes de maneira
totalmente inconsciente, em fornecedores constantes de informações pessoais
valiosas para empresas e entidades de todo tipo.
O advogado e
jornalista, que vive em um país tão desigual como o Brasil, tem plena
consciência de que para boa parte da população do mundo a defesa da privacidade
não é um assunto primordial. Quando você não tem acesso a água potável nem a
atendimento de saúde para seus filhos, ou não come o suficiente, pensar sobre o
uso que é feito de seus dados pessoais pode parecer algo de menor importância.
“Defender a privacidade pode parecer um pouco abstrato e mais remoto do que
satisfazer outras necessidades. Mas também acho que existe uma tentativa
deliberada de transmitir às pessoas a mensagem de que, se você não for um
terrorista ou um pedófilo, se não tiver nada a esconder, não deve se preocupar
com que o Governo ou as empresas o vigiem.”
Agora, mergulhado
na enorme polêmica do caso Moro, a perda de privacidade sofrida pelo cofundador
do The Intercept vai além da vigilância de Governos ou
empresas: no Brasil, seu rosto está com o do ex-juiz em toda a mídia desde que
começou o vazamento de informações, em 9 de junho. Paralelamente à intimidação,
Greenwald sofreu uma campanha de descrédito que, entre outras mentiras, afirma
que ele não ganhou o Pulitzerque obteve com o caso Snowden. “Uma
das diferenças entre as reportagens sobre a NSA e sobre Moro é que grande parte
do ódio que a primeira gerou foi dirigida a Snowden. Eu era simplesmente o
jornalista. Agora a fonte é invisível, e eu sou o rosto da história.”

Nenhum comentário:
Postar um comentário