27 de maio de 2019
A defesa da universidade pública e a conjuntura
Por Mauro Luis Iasi
BLOG DA BOITEMPO
No último dia 15 de
maio vimos uma Greve Geral da Educação, que mobilizou milhares de estudantes,
professores e funcionários das Universidades Públicas, dos Institutos Federais,
da educação básica e até de instituições privadas de ensino. Tal mobilização se
deu em resposta aos cortes nas verbas de custeio das instituições de ensino,
que o ministro (inimigo) da Educação eufemisticamente chama de
contingenciamento. Para acrescentar um toque de perversidade, o presidente
miliciano chama os manifestantes de “idiotas úteis”, manipulados por
“militantes”.
O principal argumento
para os cortes encontra-se na afirmação de que a economia não cresceu conforme
o previsto, sendo, portanto, necessárias adequações. O ministro Abraham
Weintraub, em depoimento no Congresso, acrescentou que tal previsão teria vindo
do governo Dilma/Temer, procurando se isentar da responsabilidade, e ocultando
propositalmente que o orçamento em vigor é na verdade do usurpador Temer
(apoiado histericamente pelas forças políticas que agora governam e que
prometeram o Éden do crescimento com o afastamento da presidente eleita em
2014).
O fato é que as
universidades públicas vêm sendo “contingenciadas” em seus recursos há muito
tempo. O Fórum de Pró-Reitores de Planejamento e Administração das Instituições
Federais de Ensino Superior já alertava em 2017 que estávamos vivendo um
agravamento da situação orçamentária nas universitárias, pelo crescimento do
número de alunos ao mesmo tempo que encolhiam os recursos. Em 2017, o valor em
reais por aluno era 42% menor do que o de 2011, passando de R$ 2496,77 para
R$1757,13 nesse período. Neste quadro, a ANDIFES cobrava uma correção nas
verbas que, além de não vir, agora foram reduzidas.
No entanto, trata-se
de algo muito maior que o mero equilíbrio orçamentário. Trata-se de um ataque
contra a concepção de universidade e de ensino público. É preciso, na lógica do
governo miliciano, desqualificar a universidade apresentando-a como um lugar
improdutivo e desnecessário de desperdício de recursos e promotor de “balbúrdias”
e orgias. Além do “saneamento” nas contas do Estado promovido pelo guru do
ultraliberalismo, o ministro Paulo Guedes, e o claro favorecimento à lógica
privatista da educação, defendida por sua irmã, Elizabeth Guedes (vice
presidente da Associação Nacional das Universidades Privadas), as universidades
estão na mira do rancor governista por motivos políticos e ideológicos.
A tese estapafúrdia
propagada pelo astrólogo do apocalipse sobre a existência de um suposto
“marxismo cultural” que teria dominado todo o sistema educacional, os meios de
comunicação e as forças armadas, encontra nas universidades um ponto central.
Essas instituições teriam se tornado o centro da formação de militantes e da
lavagem cerebral da juventude para destruir os valores fundamentais da
sociedade ocidental e da cristandade. Os verdadeiros e valorosos pensadores
conservadores e direitistas teriam sido perseguidos e hostilizados no ambiente
acadêmico pela ofensiva deste mítico “marxismo cultural”.
É evidente que há uma
relação de determinação entre esses dois aspectos, de maneira que os cortes de
gastos públicos para manter os sagrados pagamentos dos juros da dívida e a
sangria de recursos para o capital financeiro constituem o essencial, ao passo
que o ataque ideológico serve de legitimação para tanto. Entretanto,
acreditamos que, nas condições do atual desgoverno, o ataque às universidades e
à educação é muito mais que uma mera cortina de fumaça.
As classes dominantes
brasileiras precisam operar um ataque brutal aos trabalhadores e à maioria da
população para garantir as condições de valorização do capital nas condições
atuais. Isto implica a reversão de direitos e garantias que cumpriram um papel
na reprodução social em períodos passados e agora precisam ser desmontados. O
simples corte, no entanto, provocaria uma reação muito grande, de forma que
operasse em dois planos: no sucateamento paulatino que vai inviabilizando as
instituições de ensino e sua desmoralização.
O segundo plano, a
desmoralização (não só do ensino, mas de tudo que é público) obedece, também, à
lógica de blocar a base social de sustentação do desgoverno, mobilizando-a
contra inimigos “imaginários”, enquanto servem de fato para implementar os
verdadeiros interesses dos reais inimigos da maioria da população e da classe
trabalhadora.
Antes de tudo, é
necessário afirmar que a universidade no Brasil nunca foi hegemonizada por
nenhum marxismo (cultural ou qualquer outro). A necessária defesa da
universidade pública contra seu desmonte não pode obscurecer o fato de que
essas instituições são e sempre foram eminentemente conservadoras na forma e no
conteúdo. Mesmo com a saudável democratização do espaço universitário com a
ampliação do acesso de camadas populares e segmentos para os quais este espaço
era praticamente vetado (como pobres, negros, indígenas, camponeses, etc.), a
vida acadêmica prima pelo elitismo, pela forma meritocrática ou quase
aristocrática, pela seleção de currículos e saberes que respondem muito mais às
necessidades da ordem burguesa e a reprodução do capital do que às demandas
reais da maior da população.
A UFRJ, só para dar
um exemplo, fica de frente para uma das maiores favelas do Brasil, o Complexo
da Maré, à qual é ligada por uma ponte que foi batizada de “Ponte do Saber”,
que é irônica e simbolicamente de mão única (saindo da universidade para a
favela). Há muito tempo os interesses das grandes corporações lotearam os
espaços universitários pela porta das parcerias, fundações e outros meios,
capturando laboratórios, pesquisadores e estruturas para os colocarem a serviço
das pautas e dos interesses empresariais.
É evidente que há
honrosas exceções nas diferentes dimensões do ensino, da pesquisa e da extensão
que buscam reflexões críticas, saberes e práticas voltadas às necessidades da
classe trabalhadora e à compreensão de nossa sociedade e do mundo
contemporâneo, a formação profissional de qualidade e à produção acadêmica de
excelência. Mas todos concordarão que seria absurdo afirmar que essa vertente é
determinante no mundo universitário – pelo contrário, sobrevive subordinada,
como poucos recursos, preterida na distribuição de verbas e recursos materiais,
bolsas, assistência estudantil, etc.
Manifestam-se na
instituição universidade as mesmas contradições que marcam a carne da sociedade
brasileira: as desigualdades entre homens e mulheres, brancos e negros, cidade
e campo, ricos e pobres, assim como outras que poderíamos enumerar à exaustão.
Ao defender a
universidade pública, é necessário todo o cuidado para não idealizarmos esta
instituição, transformando-a em algo que ela não é. Ela é um espaço de conflito
e de contradições, mas também é o espaço de onde vêm 95% de todas as pesquisas
científicas em nosso país, a maioria absoluta das teses e dissertações
defendidas, onde se realizam trabalhos de extensão de grande significado e onde
se formam profissionais das mais diferentes áreas de atuação. No entanto,
sabemos que o campo das pesquisas e da formação profissional está longe de ser
neutro do ponto de vista dos interesses de classe que dividem nossa sociedade.
O ataque à
universidade é parte da pauta do obscurantismo reinante e serve de coesionador
da base retrógrada que deu a vitória eleitoral ao presidente miliciano. Fazem
parte dessa frente de batalha a desqualificação da filosofia e da sociologia, a
crítica aos intelectuais e artistas, entre outras iniciativas obscurantistas
como nas pastas que tratam da família, dos povos indígenas, do meio ambiente ou
da política internacional. Mas contra quem é necessário coesionar essa base?
Temos que estar atentos
para um deslocamento importante. Evidente que é contra a esquerda, os
ativistas, o “marxismo cultural”, mas há uma outra disputa em curso – esta
entre os segmentos que compõem o governo. Claramente Bolsonaro não era a
primeira alternativa da ordem burguesa e do grande capital monopolista. Parece
evidente que ele não estava (e ainda não está) preparado para governar.
Acrescente a isso o fato de que a personalidade do presidente é fonte de
constantes instabilidades. Não creio que se trate de uma disputa, como se tem
desenhado, entre duas alas: a “olavista” e a militar. Nos parece mais preciso
descrever o governo como composto por três segmentos: o de sustentação do
presidente (que inclui os seguidores de Olavo de Carvalho, o fundamentalismo
religioso e a estrutura miliciana que envolve sua família), os militares (que
não são, como o presidente gostaria, sua base ou seu grupo de pertencimento) e
os ultraliberais bancados pelo “mercado”.
A convivência não
deve ser fácil. Os militares se incomodam com o fato de que deram aval a algo
que de fato não controlam e que é fonte inesgotável de constrangimento e
vergonha alheia. A área chamada técnica tem lá seus problemas, pois pilota um
programa de “reformas” que dificilmente produzirá os efeitos esperados na retomada
da economia e do emprego e depende de uma sustentação política que dá claras
mostras de incompetência para administrar a base do próprio governo. Moro, que
gostaria de se incluir nesta área “técnica” é fonte de mais instabilidade, pois
é odiado pelo Congresso que parece estar disposto a derrota-lo em tudo. O
presidente não tem liderança e capacidade para unificar tudo isso que ele
julgava ser homogêneo, mas que a cada dia se mostra não ser. O antipetismo, tão
útil para ganhar as eleições, agora não serve para nada.
Pelo menos até agora,
o presidente parece pensar que pode coesionar esses segmentos na medida em que
fale diretamente com a base social por cima das mediações políticas que o
Estado burguês lhe oferece. Para tanto, precisa manter mais um clima de
campanha do que de governo e acaba acirrando a crise ao invés de controlá-la. A
ofensiva contra a universidade faz parte deste script que pode incendiar as
condições de governabilidade e agregar o tempero das ruas que faltava para
fritar seu mandato.
O documento que o
próprio presidente divulga, em que se diz obstaculizado pela “classe política”
e por interesses que controlam o Estado, é menos uma tática política pensada e
mais uma justificativa que tenta encobrir sua própria incapacidade. Isso, no entanto,
não impede que produza o resultado esperado em sua base de apoio. A grande
dúvida do momento é se a operação em curso para substituir o incômodo
mandatário poderá ser feita sem grandes custos políticos e sem abrir brecha
para uma oposição de esquerda ou centro esquerda que possa criar problemas para
a agenda de reformas do capital. Parece claro que a direita quer se livrar de
Bolsonaro para realizar sua agenda, mas como reagirá a extrema direita e sua
base fanática?
Poderá o presidente
destapar a panela do descontrole e movimentar o fanatismo em sua defesa? Mas,
desta forma, não romperá definitivamente com os segmentos substantivos de seu
governo (militares, representantes do sagrado mercado e base parlamentar) para
quem a estabilidade e a garantia das reformas é a prioridade estratégica?
Haveria espaço para um governo bonapartista que fosse capaz de se impor contra
o Estado sem destruir a si mesmo? Os indícios apontam para mais um blefe. Está
se formando um consenso pelo seu afastamento que pode ser selado pela linha da
investigação que o associa às irregularidades no mandato de seu filho eleito
senador e, por esta via, às supostas vinculações com as milícias e, quem sabe,
ao assassinato de Marielle. Ao que parece, ele não articula mais uma maneira de
ficar, mas uma justificativa de por que deve sair.
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço
Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema
de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os
livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por
Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na
TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir
conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
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