15 de maio de 2019
Jorge Cadima
ODiario.info
Nos EUA avoluma-se
uma crise profunda, cujos efeitos se estendem a todos os campos – econômico,
financeiro, social, político, militar, sanitário e mesmo demográfico. As suas
raízes residem na crise sistêmica do capitalismo, mas também no declínio
relativo dos EUA face a outras potências, na insustentabilidade da sua situação
financeira e na brutalidade da sua dominação de classe.
Os mecanismos com que
a classe dirigente norte-americana tem procurado enfrentar o seu declínio não
apenas não o inverteram, como contribuíram para acentuar esse declínio. Trump
expressa essa crise.
‘Tornar de novo
grande a América’ é uma ilusão que não reflete a realidade mundial em mudança.
Mas o perigo de que tudo termine numa aventura catastrófica é enorme.
Um país em crise
Os EUA são um
caldeirão em ebulição. A ofensiva de classe das últimas décadas traduziu-se
numa baixa acentuada dos níveis de vida de grande parte da população
trabalhadora. Tornou-se frequente que, mesmo trabalhadores com duplo emprego,
mal consigam sobreviver . A desindustrialização de vastas regiões gerou
fenômenos de pobreza em massa. Em 2018, o Relator Especial Philip Alston
apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU um relatório sobre pobreza extrema
nos EUA, afirmando: «Os Estados Unidos […] são uma das sociedades mais ricas
[…]. Mas a sua imensa riqueza e conhecimentos estão em flagrante contraste com
as condições em que vive grande número dos seus cidadãos. Cerca de 40 milhões
vivem na pobreza, 18,5 milhões em pobreza extrema e 5,3 milhões em condições de
pobreza absoluta, do tipo Terceiro Mundo» . Mais de meio milhão de
norte-americanos vivem nas ruas ou em tendas e barracas . Cidades inteiras
declaram falência, não sendo único o caso de Detroit (2013). Os EUA continuam a
ser o único país desenvolvido em que não existe licença de parto garantida por
lei . Nos últimos meses, assiste-se a um ressurgimento de importantes lutas
laborais, que traduzem um descontentamento generalizado.
A brutalidade da
situação social e o domínio dos interesses do grande capital são inseparáveis
da diminuição verificada na esperança de vida (76,1 anos para os homens),
associada a um aumento importante na taxa de mortalidade dos grupos etários em
idade laboral (25-34 anos, +2,9% entre 2016 e 2017; e 35-44 anos, +1,6%) . Este
aumento reflete o surto de mortes por consumo de drogas que, segundo a agência
governamental CDC, atinge hoje mais de 70 mil pessoas por ano (mais 9,6% entre
2016 e 2017) . Grande parte dessas mortes resulta da chamada crise dos
opióides, os analgésicos à base de ópio cuja utilização por receita médica
(legal) se generalizou nas últimas duas décadas, com efeitos devastadores,
provocando hoje 130 mortes por dia. Segundo a revista New Yorker (23.10.17), a
agência governamental Food and Drug Administration (FDA) aprovou, em 1995, o
uso do mais conhecido desses opióides, o OxyContin, apesar de a empresa
produtora, Purdue, não ter efetuado estudos clínicos relativos aos perigos de
gerar dependência, tendo mesmo a FDA, «num passo inusual, […] anunciado que era
mais seguro do que os analgésicos concorrentes». O responsável pelo estudo
«deixou a agência [FDA] pouco tempo depois. Passados dois anos trabalhava para
a Purdue». Como sintetiza o New Yorker, foram «gerados milhares de milhões de
lucros – e milhões de viciados». O capitalismo ganha dinheiro até a anestesiar
o descontentamento social.
Este quadro dramático
é inseparável da mercantilização extrema em todas as esferas de vida. Não
existe um sistema nacional de saúde, e «Os Estados Unidos têm despesas de saúde
duas vezes maiores que outros países, com resultados piores» (Reuters,
13.3.18). A conclusão é de um estudo chefiado por uma investigadora da London
School of Economics que compara os EUA com dez outros países desenvolvidos.
Conclui que apesar das despesas de saúde representarem 17,8% do PIB nos EUA, e
não mais de 12,4% nos outros países, «a esperança de vida dos EUA é a mais
baixa» e «a taxa de mortalidade infantil é a mais elevada, com 5,8 óbitos por
cada mil nascidos vivos, sendo em média de 3,6 para os restantes países». Os
custos do ensino superior amarram a maioria dos estudantes a dívidas enormes,
ainda antes de iniciarem a sua vida laboral. O montante global da dívida
estudantil nos EUA ultrapassa hoje uns impressionantes 1,5 bilhões (1,5×10) de
dólares (Guardian, 4.10.18), cerca de 7 vezes o PIB anual de Portugal.
Se a situação dos
trabalhadores e do povo dos EUA é dramática, os seus multimilionários acumulam
riquezas sem precedentes. O 1% de famílias com maiores rendimentos possuíam, em
2016, 38,6% da riqueza do país, muito mais do que os 90% com menores
rendimentos (22,8%). Apenas dez anos antes estas percentagens eram,
respectivamente, 33,7% e 28,5% (CNN, 3.11.17). Ou seja, a crise que eclodiu em
2007-8 saldou-se por uma concentração ainda maior da riqueza nas mãos dos mais
ricos. Segundo o Pew Research Center, desde então, a riqueza mediana dos
norte-americanos com menos posses «reduziu-se para quase metade» (!), enquanto
que a riqueza mediana dos de maiores posses aumentou 25% .
É impossível ignorar
a brutal natureza de classe da ‘democracia made in USA’.
O endividamento
A riqueza ostentada
pelos EUA é em boa medida fictícia, assente numa montanha de dívida sempre
pronta a ruir e que evoluções macroeconômicas positivas, mas conjunturais, não
podem fazer esquecer. A situação financeira do Estado norte-americano é
insustentável. A dívida nacional (que apenas diz respeito ao governo central)
atingiu o astronômico valor de 22 bilhões (22×1012) de dólares, ultrapassando
100% do PIB. Há apenas 20 anos era um quarto desse valor. Mais do que duplicou
na década após 2008. Vai continuar a explodir, já que o déficit orçamental para
2020 ultrapassa 1,1 bilhões de dólares. Mas o endividamento recorde não é
apenas estatal. O endividamento das famílias atingiu 13,3 bilhões de dólares,
mais do que em 2008 (Reuters, 14.8.18). A dívida das empresas ultrapassa os 6,3
bilhões de dólares (CNBC, 27.6.18), também um valor recorde. A relação entre
dívida e liquidez das empresas é maior agora do que na crise de 2008 (CNBC,
12.9.18). Desde há uma década que o país vive com medidas de exceção. Mas o
endividamento de que tanto se falou como responsável pela explosão da crise em
2007-8 ainda se agravou mais. O que não surpreende, já que o endividamento
generalizado é a fonte de lucros do sistema financeiro que comanda o
capitalismo.
O grande capital
aponta o dedo às despesas sociais como causa do endividamento. As verdadeiras
razões são outras. Incluem a evasão fiscal das grandes empresas; a pilhagem do
Estado para gerar lucros privados; as reduções de impostos (para a JP Morgan, o
corte de impostos de Trump traduziu-se num aumento de lucros de 3,7 mil milhões
de dólares – Business Insider, 4.4.19). A deslocalização da produção para
outros países nas décadas anteriores, se por um lado serviu para assegurar
ganhos às grandes multinacionais e alterar a correlação de forças de classe
(colocando a classe operária na defensiva, facilitando a ofensiva antissocial),
por outro lado é também um fator importante de endividamento estatal, afetando
a base de tributação fiscal.
Mas é o papel de
gendarme mundial do capitalismo que assume particular importância no
endividamento dos EUA. Se por um lado as guerras trazem inegáveis vantagens econômicas
às grandes empresas, assegurando o controlo de mercados, contratos e
matérias-primas (entre as quais o petróleo) em larga parte do globo, por outro
lado representam um pesadíssimo fardo financeiro para o Estado norte-americano.
Sendo os lucros gerados pelas despesas militares nos EUA essencialmente
privados, as despesas militares são públicas.
A tendência histórica
Os EUA emergem da II
Guerra Mundial como a superpotência capitalista mundial. A sua preponderância
econômica, militar e política era inquestionável no seio do mundo capitalista.
O pavor da revolução social e o desafio histórico representado pela construção
do socialismo na URSS e em países onde vivia um terço da Humanidade, bem como
pelo avanço dos processos de libertação nacional, levava as classes dominantes
dos restantes países capitalistas a aceitar a hegemonia dos EUA e a limitação
da sua própria soberania. Apesar de contradições que nunca deixaram de se
manifestar (veja-se o caso da França), foi este o quadro que predominou até à vitória
das contra-revoluções no Leste da Europa, no final do Século XX.
Entretanto, por
debaixo da superfície, amadureciam processos de alteração da correlação de
forças no plano econômico. As duas grandes potências derrotadas na II Guerra
Mundial, Alemanha e Japão, protagonizaram no pós-guerra um crescimento
econômico assinalável, beneficiando em parte de estarem impedidas de ter
despesas militares de vulto. Como referia a Resolução Política do XV Congresso
do PCP (1996), «o papel dominante dos EUA à escala mundial continua em
diminuição no plano econômico, o que leva a principal potência imperialista a
socorrer-se cada vez mais do seu poderio extraeconômico (diplomático, militar,
ideológico, etc.) para tentar manter e impor a sua hegemonia. A luta por ‘zonas
de influência’ entre as várias potências imperialistas acentua-se, assim como a
luta pela tomada de posições no interior dos países imperialistas rivais». Nas
décadas mais recentes, novas potências alcançaram um crescimento econômico
impetuoso, com destaque para a China que é já hoje uma grande potência
econômica mundial e cujo desenvolvimento é também qualitativo, sendo cada vez
mais uma potência tecnológica (8).
Hoje, assiste-se à
discussão aberta no seio dos círculos dirigentes do grande capital das velhas
potências imperialistas, sobre a forma de ‘fazer frente’ à China e outras
potências ascendentes. A real correlação de forças econômica não pode ser
ignorada por muito tempo, sem que se manifestem os seus efeitos políticos. O
papel do dólar como moeda de reserva internacional está hoje em causa. Há quase
duas décadas, o General Loureiro dos Santos dava voz à ideia de que, para
travar essa ascensão, os Estados Unidos iriam recorrer a uma guerra mundial
(Diário de Notícias, 13.3.00). Para os EUA em particular, confrontados com o
seu declínio relativo, quer em relação às potências imperialistas europeias,
quer à China e outra potências (re)emergentes, o que está em causa é de
importância histórica. Tanto mais quanto as fragilidades do Estado
norte-americano e o descontentamento que grassa no seio do povo norte-americano
assumem proporções explosivas. Trump protagoniza uma opção pela dominação
inquestionável dos EUA em todos os planos. A sua agressividade, mesmo em
relação a tradicionais aliados, é expressão da gravidade da situação.
Rivalidade e
cooperação
A estratégia de
Trump, patente na sua retórica de ‘tornar a América de novo grande’ e nos seus
ataques a aliados, não é inteiramente nova. Já o governo de Bush (filho) tentou
impor a vontade exclusiva dos EUA. Os conflitos com a França de Chirac e
Villepin, e a Alemanha de Schroeder, quando da invasão do Iraque em 2003, eram
uma (então ainda rara) expressão pública de rivalidades e contradições entre os
dois maiores polos do capitalismo mundial. A humilhação dos EUA às mãos da
resistência iraquiana e os receios mútuos de que as clivagens entre EUA e UE
pudessem alimentar a resistência popular a nível mundial, mesmo no seio das
grandes potências capitalistas, conduziram a uma recomposição. O quadro
político para o acordo foi protagonizado primeiro pela nomeação de Durão
Barroso (defensor da guerra do Iraque) como Presidente da Comissão Europeia e a
ascensão de Angela Merkel e Sarkozy e, mais tarde, pela eleição de Obama nos
EUA. A nova fase de concertação – que nunca deixou de ser hegemonizada pelos
EUA e nunca apagou as contradições e rivalidades – não representou nada de
benéfico para os povos, como ficou patente na ofensiva antissocial no seio da
UE; na política partilhada de guerra a nível mundial (Líbia, Síria, Ucrânia);
na reafirmação da UE como pilar europeu da OTAN; no alinhamento incondicional
da UE com a histeria antirrussa, mesmo quando as sanções contra esse país
afetam sobretudo os produtores europeus.
Mas a situação dos
EUA não parou de se agravar. Com a eleição de Trump ganham de novo
preponderância os defensores de uma hegemonia arrogante e inquestionável. O
rasgar do TTIP e outros acordos (como sobre o clima e o Irão); as diatribes
públicas contra o canadense Trudeau ou a Alemanha, a propósito do gasoduto
NordStream2; os resmungos para que sejam aumentadas as despesas com a OTAN; as
multas a grandes empresas europeias e o recente anúncio de tarifas
alfandegárias sobre bens no valor de 11 mil milhões de dólares – tudo faz parte
de uma estratégia de imposição da hegemonia incondicional dos EUA e das suas
empresas (incluindo militares), ao mesmo tempo que tenta obrigar os ‘aliados’ a
pagar os custos dessa hegemonia. É também uma política que procura ‘disciplinar
as hostes’ e cerrar fileiras por detrás do ‘chefe’, na preparação de um embate
multifacetado com os países que a doutrina militar dos EUA já definiu como o
‘maior desafio’: a China e a Rússia. Assiste-se a uma nova corrida aos
armamentos; ao aumento dos orçamentos militares; a um crescendo das provocações
e do cerco à Rússia; ao rasgar do Tratado INF, relativo às forças nucleares de
alcance intermédio; ao confrontacionismo crescente com a China, seja no plano
econômico ou militar; à corrida à militarização do espaço. A virulência da nova
ofensiva contra os processos soberanos na América Latina, bem como o apoio
incondicional ao criminoso sionismo israelita, encorajam a barbárie e o culto
da força, alimentando o anticomunismo e o fascismo no plano mundial, o que
também aduba o belicismo.
Embora com conflitos
profundos, de contornos ainda não inteiramente claros, na classe dirigente dos
EUA predomina a recusa em aceitar o seu declínio e a crença de que os poderosos
recursos ainda disponíveis podem preservar a hegemonia planetária. Entre esses
recursos conta-se a estrutura militar e o domínio quase ditatorial sobre os
grandes meios de comunicação social mundiais, cada vez mais meras armas da
propaganda de guerra (veja-se o caso da Venezuela). Conta-se também a extensa
rede de autênticos agentes dos EUA no seio de numerosos países (incluindo da
UE), sempre prontos a trocar a prestação de serviços e mesmo a traição aos seus
países por futuras benesses, à la Durão Barroso.
Mas o extremismo do
governo Trump também comporta grandes riscos para a superpotência capitalista.
A imprevisibilidade dos EUA e a sua indisponibilidade para o compromisso podem
pôr em perigo alianças de muitas décadas com países de importância regional (como
a Turquia, o Paquistão, e mesmo países do Golfo) e com as potências
imperialistas europeias e, por essa via, poderão enfraquecer ainda mais os EUA.
Os perigos e as
potencialidades
Em muitos setores
populares ainda não existe uma consciência da real gravidade da situação.
Existe o perigo de que grandes massas sejam conduzidas para becos sem saída,
quer arrastadas pela propaganda de guerra fascistizante, quer correndo atrás de
ilusões, como os mitos de uma UE ‘de paz’. A História ensina que as grandes guerras
modernas têm as suas raízes no sistema capitalista e de dominação de classe,
nas suas crises e rivalidades. Para os povos, é imperioso lutar para travar a
corrida para o abismo. Apontando sempre as responsabilidade de quem defende e
promove a guerra. Lutando sempre em defesa da Paz. Só assim se fortalece a
resistência que conduzirá à alternativa.
https://www.odiario.info/a-proposito-do-declinio-dos-eua/
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