Ao 'contar com a
sociedade' para enfrentar o 'sistema', Jair Bolsonaro repete o roteiro de
outros governantes que, despreparados para a vida democrática, flertaram com
golpes em nome da 'salvação' nacional.
O Estado de S.Paulo
- EDITORIAL
O presidente Jair Bolsonaro considera impossível
governar o Brasil respeitando as instituições democráticas, especialmente o
Congresso. Em sua visão, essas instituições estão tomadas por corporações – que
ele não tem brio para nomear – que inviabilizam a administração pública,
situação que abre caminho para uma “ruptura institucional irreversível” –
conforme afirma em texto que fez circular por WhatsApp ontem, corroborando-o
integralmente, como se ele próprio o tivesse escrito.
Ao compartilhar o texto, qualificando-o de “leitura
obrigatória” para “quem se preocupa em se antecipar aos fatos”, Bolsonaro
expressou de maneira clara que, sendo incapaz de garantir a governabilidade
pela via democrática – por meio de articulação política com o Congresso
legitimamente eleito –, considera natural e até inevitável a ocorrência de uma
“ruptura”.
Não é de hoje que o presidente se mostra inclinado
a soluções autoritárias. Depois da posse, Bolsonaro mais de uma vez manifestou
desconforto com a necessidade de lançar-se a negociações políticas para fazer
avançar a agenda governista no Congresso. Confundindo deliberadamente o diálogo
com deputados e senadores com corrupção, o presidente na verdade preparava
terreno para desqualificar os políticos e a própria política – atitude nada
surpreendente para quem passou quase três décadas como parlamentar medíocre a
ofender adversários e a louvar a ditadura militar. Não por acaso, o próprio
Congresso parece ter desistido de esperar que Bolsonaro se esforce para
dialogar e resolveu tocar por conta própria a agenda de reformas.
Desde sua posse como presidente, Bolsonaro vem
demonstrando um chocante despreparo para o exercício do cargo, mas o problema
podia ser contornado com a escolha de ministros competentes. Com exceção de um
punhado de assessores que realmente parecem saber o que fazem, porém, o governo
está apinhado de sabujos cuja única função ali parece ser a de confirmar os
devaneios do presidente, dos filhos deste e de um ex-astrólogo que serve a
todos eles de guru, dando a fantasias conspiratórias ares de realidade.
O texto que Bolsonaro divulgou – recomendando que
fosse passado adiante – diz que “bastaram cinco meses de um governo atípico,
‘sem jeito’ com o Congresso e de comunicação amadora para nos mostrar que o
Brasil nunca foi, e talvez nunca será, governado de acordo com o interesse dos
eleitores”. Segundo o texto, o presidente “não aprovou nada, só tentou e
fracassou” porque “a agenda de Bolsonaro não é do interesse de praticamente
nenhuma corporação”. Nas atuais circunstâncias, “a continuar tudo como está, as
corporações vão comandar o governo Bolsonaro na marra” – e, “na hipótese mais
provável”, diz o texto, “o governo será desidratado até morrer de inanição, com
vitória para as corporações”. Mas diz também que é “claramente possível” que o
País fique “ingovernável”, igualando-se à Venezuela. Aí entraria a tal “ruptura
institucional” de que fala o texto chancelado por Bolsonaro – que o usou para
ilustrar o risco que diz correr de ser assassinado pelo “sistema”.
Isso é claramente uma ameaça à Nação. Conforme se
considere o estado psicológico de Bolsonaro e de seus filhos, a ameaça pode ser
o tsunami de uma renúncia ou o tsunami de um golpe de Estado em preparação.
Pois o presidente não apenas distribuiu o texto, como mandou seu porta-voz
dizer que, embora esteja “colocando todo o meu esforço para governar o Brasil”,
a “mudança na forma de governar não agrada àqueles grupos que no passado se
beneficiavam das relações pouco republicanas”. Em seguida, fez um apelo às
ruas: “Quero contar com a sociedade para juntos revertermos essa situação” – e
já no próximo dia 26 está prevista a realização de uma manifestação
bolsonarista, contra ministros do Supremo Tribunal Federal e a favor do pacote
anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro.
Ao “contar com a sociedade” para enfrentar o
“sistema”, Bolsonaro repete o roteiro de outros governantes que, despreparados
para a vida democrática – em que a vontade do presidente é limitada por freios
e contrapesos institucionais –, flertaram com golpes em nome da “salvação”
nacional. Se tudo isso não passar de mais um devaneio, já será bastante ruim
para um país que mergulha cada vez mais na crise, que tem seu fulcro não nas
misteriosas “corporações” – as suas “forças ocultas” –, mas na incapacidade do
presidente de governar.
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