16 de abril de 2019
O general Bolívar em três momentos distintos: ainda cadete, em 1964 e hoje Fotos: Arquivo Pessoal/Reprodução |
Extra Classe
ENTREVISTA | BOLIVAR
MARINHO SOARES DE MEIRELLES
Por Marcelo Menna
Barreto
Com a propriedade de
quem veio de uma família com tios participantes do movimento tenentista, um que
foi lutar na Guerra Civil Espanhola e outro que participou do levante da
Aliança Nacional Libertadora em 1935, o general de Brigada reformado Bolivar
Marinho Soares de Meirelles diz: “Eu acho que eu entrei pra escola de cadetes
já rebelado”. Expulso do Exército seis meses após o golpe de 1964, por não
concordar com a ruptura institucional, fez sua carreira fora das Forças Armadas
até ter o reconhecimento de sua patente devida pelo Supremo Tribunal Federal.
Uma carreira, aliás, bem extensa. Licenciado em Ciências Sociais, mestre em
Administração Pública, doutor em Ciências em Engenharia e pós-doutor em
História Política, o general Bolivar diz ter uma dívida com o povo brasileiro:
apresentar com clareza o que foi o período de exceção vivido no Brasil de 1964
a 1985. “Quem me fez general, na realidade, foi o povo. Foi dentro das
instituições da democracia e do Estado de Direito que eu cheguei a general”.
Extra Classe − Como o
senhor viu a determinação do presidente Bolsonaro para que os quartéis
comemorassem a data do 31 de março?
Bolivar Meirelles − Eu acho que isso foi um
absurdo! Inclusive utilizando recursos do povo brasileiro para festejar algo
que foi nitidamente um golpe de Estado, reconhecido por quase todos os
historiadores. É uma vergonha para o Brasil esse “festejo” aí do capitão
Bolsonaro. Mas o absurdo e a vergonha para o Brasil também é internacional e
caracterizou-se no repúdio à visita que ele fez ao Chile, relembrando os tempos
do Pinochet, festejando, não é? E no Paraguai também com aquele eterno ditador,
o Strossner. Um homem que disse que queria 30 mil mortos no Brasil e defende
tortura, e torturador é um retrocesso muito grande.
EC – O senhor diz que
é de uma época que ainda existiam militares nacionalistas. O que aconteceu com
eles?
Meirelles − Foi feita uma raspagem ideológica com o golpe de 1964 que
expulsou das Forças Armadas, por reforma, por demissão, vários quadros
militares. Eu saí como segundo-tenente, com 24 anos de idade. Quer dizer, o
Brasil investiu em mim e eu fui fazer a minha carreira que chegou a general de
Brigada aqui fora, reconhecido pelas leis brasileiras até no Supremo Tribunal
Federal. Por isso eu tenho uma dívida com o povo brasileiro: colocar essas questões
com clareza porque quem me fez general, na realidade, foi o povo. Foi dentro
das instituições da democracia e do Estado de Direito que eu cheguei a general.
EC – E antes do
golpe?
Meirelles − Existiam militares nacionalistas no pré-golpe de 1964 e, se
olharmos a história do Brasil, grande parte da luta pelo monopólio estatal do
petróleo foi no Clube Militar. Ali se tinha um general Horta Barbosa, o líder
da corrente que propugnou a luta pela implantação da Petrobras. Mas por outro
lado, entreguista, você também via um Golbery do Couto e Silva, o general
Juarez Távora que, com receio do “comunismo internacional”, como eles
colocavam, pretendiam entregar nossas riquezas estratégicas ao império
norte-americano. Uma visão consolidada no golpe de 1964 pela figura, ao meu
ver, execrável, do marechal Castello Branco, que era um entreguista notório.
EC − Coexistiam,
então?
Meirelles − Sim. Mas veja só: entre os golpistas de 1964 também tinha
uma corrente que era contra o entreguismo. O próprio Geisel, que era uma pessoa
de direita e que matou grande parte dos dirigentes do PCB − aliás partido que
não participou da luta armada − tinha um viés nacionalista. Ele acabou com o
acordo militar Brasil-Estados Unidos e fez acordo com a Alemanha para implantar
a questão nuclear no Brasil. Então, existem essas contradições dentro das
Forças Armadas.
EC – O senhor diz que
não vê hoje nenhum oficial de patente superior confrontar a chamada corrente
entreguista. O que houve com a mentalidade nacionalista dos militares brasileiros?
Meirelles − O que houve nas Forças Armadas foi um processo de lavagem cerebral.
A realidade é esta. No meu tempo de cadete, nos idos de 1959 a 1962, eu já
sentia que estava havendo uma mudança. Quando entrei em 1956 na preparatória de
cadetes em São Paulo, a tese principal de conflito era do Brasil com a
Argentina. Veja que imaginação! Depois com o passar do tempo, quando Fidel
Castro faz a revolução em Cuba, reavivam a tese do anticomunismo e vem sendo
criada uma expectativa de que inimigos internos seriam potenciais formadores da
revolução no Brasil. É uma mentira deslavada que vem sendo repetida aos jovens
não só nas escolas militares de nível superior, mas também na formação dos
praças.
EC − A ideia do
“inimigo interno” vem daí, então?
Meirelles − Na realidade, esse resíduo
anticomunista é nítido na formação do militar desde 1935, quando há o levante
da Aliança Nacional Libertadora, onde inventaram que mataram gente dormindo nos
quartéis para tumultuar. Ora, já havia acontecido no Nordeste dois levantes, já
tinha arrebentado um movimento nos quartéis na Praia Vermelha; ninguém estava
mais dormindo. A tropa estava em alta prontidão e vigilância. Houve heróis dos
dois lados.
EC – E a dita
“Revolução de 1964”?
Meirelles − Não houve revolução nenhuma! Não se mudou o
estabelecimento do regime burguês; o que eles mataram foi a democracia burguesa
e o Estado de Direito. Agora − veja você a contradição − a definição de guerra
revolucionária era traçada exatamente para atacar os levantes de caráter
marxista-leninista, como eles colocavam; mas quando deram o golpe de Estado em
1964, não quiseram assumir a posição de golpistas. Chamaram de revolução.
Realmente foi um golpe de Estado formulado pelo império norte-americano, com os
grandes monopólios nacionais e internacionais vinculados com as estruturas das
Forças Armadas no Brasil e na América Latina, onde ocorreram vários golpes.
EC – O senhor fala em
outras contradições também. Quais?
Meirelles − Antes eles (os golpistas) diziam
que defendiam o pensamento ocidental cristão. Mas perderam o cristão porque os
cristãos também, alguma parcela deles, se jogaram na luta em defesa da
liberdade dentro da pátria brasileira. Eu não sou religioso, mas, por exemplo,
alguns dominicanos heroicos que nada tinham de marxista-leninistas, vinculados
ao pensamento de Jesus de Nazaré e daqueles que militavam com ele contra o
Império Romano e contra o domínio das camadas altas da sociedade na defesa do
povo, desmascararam essa ideia de guerra de característica marxista-leninista.
O que aconteceu com esses dominicanos? Alguns foram massacrados, como o frei
Tito que acabou morrendo na França. Então, como não poderia mais ter a
característica de uma luta contra o comunismo, aí então inventaram o termo
subversão. Os subversivos.
EC − Na Argentina e
no Chile há exemplos de militares que foram parar atrás das grades após as
respectivas ditaduras. Qual a lição de casa que esses países fizeram que o
Brasil não fez?
Meirelles − Nós não fizemos a revisão desse período no Brasil.
A anistia que foi feita em 1979 foi uma anistia negociada com o governo
Figueiredo. No Chile, na Argentina, os torturadores foram presos. Aqui no
Brasil, nenhum desses generais e coronéis da ditadura foram responsabilizados.
Até o Supremo Tribunal Federal quis a anistia como um esquecimento. Isso ainda
é uma mácula na história do Brasil. Veja só, esse capitão Bolsonaro e o próprio
vice-presidente defendem a figura do torturador Ustra! Um cara que massacrou,
que torturou mães na frente de filhos; um tarado! E esse capitão ainda vai pra
fora defender torturadores de lá. Isso pega mal!
EC − Na formação de
nossos militares ainda está incutida a ideia de que as Forças Armadas salvaram
o país do comunismo em 1964. Por que após tantos anos de redemocratização isso
continua?
Meirelles − Porque nós fizemos uma transição negociada. Nós não
derrotamos, na realidade, os golpistas de 1964. Não houve uma interferência nas
formações militares de forma a apagar essas questões. Você teria que ter uma
visão crítica, histórico-crítica dentro das Forças Armadas. Não só mudança de
currículo e programas, mas também de instrutores. Não adianta só mudar a forma,
mudar o conteúdo, sem saber quem é que vai dar as aulas.
EC − Diz-se que
militares brasileiros que participaram na campanha da Segunda Guerra Mundial
voltaram da missão com uma outra visão de mundo: uma geração que participou
ativamente dos processos políticos que culminaram com o golpe de 1964. Qual a
sua análise?
Meirelles − Olha, precisou vir o presidente dos Estados Unidos
aqui, o Roosevelt, para fazer o Brasil se colocar contra o Eixo, contra o
nazi-fascismo. Alguns foram pra guerra, alguns se submeteram. O Goes Monteiro
era simpatizante do nazi-fascismo, o Dutra era, o Filinto Muller era e o
Getúlio era aquele vacilante que ora namorava com um, ora com outro. Ganha a
guerra, dois fenômenos vão se dar. Um é a composição de alguns quadros tipo
Castelo Branco, profundamente vinculado ao pensamento norte-americano. Então, é
claro que, quando se sai daqui, deixando o Estado Novo instalado, um regime
ditatorial ainda remanescente do Getúlio, a imaginação de superação disso vai
se dar.
EC − Mas Getúlio
inicia nesse período um distensionamento do Estado Novo, não?
Meirelles – Sim.
O Getúlio declara o fim do Estado Novo e abre as prisões. O Luis Carlos Prestes
é colocado em liberdade em 1945 e tem um encontro − até articulado pelo meu
tio, Silvio Meirelles, que tinha saído há pouco tempo da cadeia − com o Eduardo
Gomes e Juarez Távora. Queriam que o Prestes participasse de um movimento de
derrubada do Getúlio. O Prestes diz então: eu passei esses anos todos preso e
vocês fizeram as suas carreiras; agora que o Getúlio deu anistia política e
está liberando a formação de todos os partidos, até do Partido Comunista
Brasileiro, abre eleições gerais, com uma Constituinte, como é que eu vou
participar dessa derrubada? Claro que o Castelo Branco, que tinha vínculos
formados com os comandos norte-americanos, cujo embaixador era também um dos
articuladores da derrubada de Getúlio, vem com essa ideia de participar.
EC – O senhor falou
de dois fenômenos. Qual o segundo?
Meirelles − O grande prestígio com que a
União Soviética sai da guerra. Na realidade, quem primeiro chega ao território
alemão, que vai libertando com a passagem do Exército Vermelho ali é a União Soviética.
Perderam 20 milhões de pessoas dentro do processo da guerra. Falam de 6 milhões
que morreram nos campos de concentração nazistas, os judeus em especial, mas
pouco se fala das baixas na União Soviética.
EC – Quais as reações
a esse prestígio?
Meirelles − Passados os tratados pós-Segunda Guerra, o
Churchill faz um discurso na cidade de Fulton, nos Estados Unidos, já
caracterizando o clima de Guerra Fria. Há um rompimento e aí começam a ser
elaboradas todas as teorias anticomunistas que já vinham de 1935 aqui, mas mais
acirradas contra um companheiro de lutas para derrotar o nazi-fascismo que vira
o adversário colocado frente aos Estados Unidos, aliás, sempre retardatários ao
entrar nas guerras mundiais. Na primeira e na segunda, quando acabam fazendo
aquele crime com ela praticamente acabada: trocam o bombardeio de Pearl Harbor
por duas bombas atômicas jogadas no Japão. Na realidade, uma mensagem que
queriam dar para a União Soviética que rapidamente também foi lá e construiu
suas bombas atômicas.
EC – E no Brasil?
Meirelles − Em 1948, depois da guerra, através dos generais Albino e Cordeiro
de Farias, que foram golpistas também na derrubada do Getúlio de 1945, é criada
a Escola Superior de Guerra, dentro da matriz do War College norte-americano.
Só que lá nos Estados Unidos, a formação vai do mundo civil, dos empresários,
para as Forças Armadas; aqui foi transportada das Forças Armadas americanas
para as nossas Forças Armadas. O Exército, principalmente, passa a ter duas
características. Uma, de instrumento de repressão do Estado e, outra, de
aparelho ideológico, porque passa a ser um instrumento que influenciou também
quadros civis. Carlos Lacerda tirou curso na Escola Superior de Guerra, que é
aberta a civis também. É aí que a conspiração, antissoviética, vai se colocando
na polarização entre as duas potências que saem da Segunda Guerra.
EC − Hoje, temos uma
leva de militares nos postos mais importantes da República que passaram pela
missão brasileira no Haiti. Como o senhor vê isso? Teriam eles também retornado
com outra visão de mundo?
Meirelles − Eu tenho a impressão de que isto é uma
questão de geração. O militar também tem essa angústia do nada fazer. Não tem
missão, não tem guerra; não tem o que fazer. Está sempre se preparando para
algo que não vem. Então fica inventando guerras também. Esse é um quadro mais
amplo que se coloca. A missão no Haiti é um fato, mas é um quase alinhamento
militar brasileiro ao pensamento dessa, que eles chamam, democracia ocidental
cristã. O que Cristo tem a ver com o raio da democracia dita burguesa? A
democracia burguesa é um estágio, uma passagem da luta de classes permanente da
burguesia contra o trabalhador. Quando eles não conseguem resolver no estágio
da democracia burguesa, eles dão golpes, como aqui, na Argentina, no Chile.
Eles conseguiram conviver com a democracia de Allende? Allende não estava
fazendo revolução. Ele era um socialista no governo, mas ele não estava fazendo
uma revolução socialista no Chile. Jango era um trabalhista no governo, mas não
estava fazendo uma revolução socialista. Isso é uma visão distorcida.
EC − O senhor falou
agora da “angústia do nada fazer”. Por que, então, com toda essa incitação de
Trump, Bolsonaro e seus filhos e os militares brasileiros não querem uma
intervenção na Venezuela?
Meirelles − Primeiro, que uma guerra contra a
Venezuela será um Vietnanzão que pode ocasionar guerras nas retaguardas dos
países agressores. Quem diz que não vai haver movimentos contrários no Brasil?
Quem diz que não vai haver movimentos contrários na Colômbia? A Colômbia teve
as Farcs, com seus 50 anos de luta. E uma luta de floresta também. O americano,
se entrar lá, vai ter “presunto” americano − presunto no sentido de morto
americano − devolvido aos Estados Unidos. Vai morrer muita gente. Isso numa
questão de curto prazo. Depois, os militares brasileiros têm uma certa razão.
Eles sabem que não têm condições de confronto hoje com as Forças Armadas
venezuelanas, sem contar que o povo venezuelano está armado. A milícia na
Venezuela tem outra característica. Não é essa milícia de vagabundos que a
gente tem aqui, com que o senador filho do presidente está nitidamente
vinculado. Lá a milícia é civil armada como as milícias libertárias de
Barcelona na guerra civil espanhola.
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