Manifestação “Ele Não” em São Paulo (SP), durante as eleições presidenciais de 2018/ Mídia Ninja |
Armando Boito Jr.*
Brasil de Fato
Este é o terceiro e último artigo de
uma série que estou publicando aqui no portal Brasil de Fato sobre o
neofascismo no Brasil de Bolsonaro. Neste último texto, pretendo indicar
rapidamente quais são as dificuldades específicas da luta operária e popular
diante de um movimento neofascista como esse que enfrentamos no Brasil atual. O
tema é complexo e eu pretendo voltar a ele futuramente e em um trabalho mais
alentado. Neste pequeno texto irei apenas indicar alguns pontos.
Convém recordar o que escrevemos nos
dois artigos anteriores desta série. No primeiro deles, procurei mostrar que o
fascismo não deve ser considerado um fenômeno histórico único, irrepetível,
adstrito apenas a alguns países europeus no período 1919-1945. Para tanto,
argumentei que o fascismo é uma forma do Estado capitalista, uma ditadura de
tipo particular, e é também o movimento social – dotado de ideologia e base
social específica – e o governo que lutam pela implantação dessa forma de
Estado. Esse tipo particular de ditadura que é a ditadura fascista serviu para
organizar a hegemonia política do capital monopolista em Estados imperialistas
nas décadas de 1920 e 1930, mas poderá servir, na periferia latino-americana no
século XXI, para organizar a hegemonia política do capital internacional,
principalmente estadunidense, em Estados dependentes como o Brasil. Podemos,
portanto, conceber teoricamente a hipótese de uma ditadura fascista neoliberal
ou neocolonial.
No segundo artigo, comparando, de um
lado, os movimentos animados por Mussolini Hitler e, de outro, o bolsonarismo
no Brasil, apresentei o que considero serem as semelhanças de fundo entre tais
movimentos, que são o que justificam o emprego do conceito geral de fascismo
para todos os três, e também as diferenças existentes entre o fascismo clássico
e o bolsonarismo, que justificam o emprego do prefixo neo para denominar o caso
brasileiro como uma variante particular daquele fenômeno.
Aliás, em grande medida, a etapa
histórica atual representa uma retomada, em condições históricas novas, de
programas e ideologias de períodos anteriores, de tal sorte que nos deparamos
com o neoliberalismo, o neodesenvolvimentismo, o neopopulismo e, agora, com o
neofascismo. O que eu defendi foi que embora não tenhamos um regime de ditadura
fascista no Brasil, mas sim uma democracia burguesa deteriorada e em crise,
temos sim um movimento neofascista ativo e um governo cuja chefia está entregue
ao principal representante desse movimento.
Passemos ao nosso tema. Que diferença
faz, no que diz respeito à luta política, saber se enfrentamos um movimento
fascista ou um movimento reacionário qualquer? Uma ditadura neofascista ou uma
ditadura burocrática ou militar? Essas distinções não seriam preciosismos
conceituais meramente acadêmicos? Não é aconselhável desdenhar do esforço
intelectual para bem caracterizar os fenômenos políticos. Mesmo que esta ou
aquela diferença entre um e outro regime político, entre um e outro partido ou
ainda entre uma e outra ideologia não apresentar, pelo menos num primeiro
momento, qualquer pertinência para organizar a luta prática, essa diferença não
deve, por isso, ser desprezada e posta de lado.
No processo de conhecimento, importa
conhecer e, ademais, aquilo que hoje parece indiferente para a ação prática,
amanhã poderá se revelar importante. Porém, no caso do fascismo, é sim
pertinente para a prática política mostrar a especificidade dessa forma de
Estado, bem como do movimento que pode conduzir a ela, quando comparada com os
demais regimes políticos e movimentos ditatoriais e isso porque as condições da
luta operária e democrático-popular variam de um para outro.
Retomemos, então, o nosso problema. As
condições de luta da classe operária e do movimento democrático-popular variam
muito de acordo com a forma que assume o Estado burguês. No Brasil de hoje,
ainda ouvimos em debates públicos a ideia segundo a qual seria indiferente para
os trabalhadores a forma ditatorial ou forma democrática do Estado burguês.
Comecemos, então, por esse ponto básico e elementar: a democracia burguesa é
muito mais favorável para a organização e a luta dos trabalhadores que a
ditadura burguesa.
Na forma democrática, em grau maior ou
menor, os trabalhadores usufruem o direito de pensamento, expressão,
manifestação, organização e de votar e ser votado. Podem lançar mão desses
direitos para organizarem-se em sindicatos, comitês de empresa, associações
populares, partidos políticos e possuírem imprensa própria. De posse desses
meios de luta, podem defender seus interesses imediatos e organizarem-se
politicamente para a luta pelo socialismo. É certo que a burguesia usufrui
muito mais amplamente tais direitos, pois dispõe de meios econômicos muito
superiores àqueles de que podem dispor os trabalhadores, mas isso apenas mostra
que os direitos democrático-burgueses são usufruídos, regra geral, de modo
desigual por uma classe e por outra, e não que tais direitos sejam, para a
classe operária, formas desprovidas de conteúdo. A democracia importa sim para
os trabalhadores.
A importância da democracia é aceita
por grande parte – creio que pela maioria – do movimento socialista e popular.
Mas que diferença poderia fazer saber se estamos diante de um movimento pela
implantação de uma ditadura de um tipo ou de outro? Ditadura militar e ditadura
fascista bem como os movimentos que defendem tais regimes não seriam inimigos
por igual do movimento operário e popular? Sim, a ditadura no Estado burguês,
seja do tipo que for, restringe ou suprime, em grau maior ou menor, as
liberdades civis e políticas e combate a organização popular. Contudo, há uma
diferença que importa: a ditadura militar não organiza um movimento popular de
apoio e subestima a importância daquilo que Gramsci denominou a luta pela
hegemonia cultural e moral na sociedade, enquanto a ditadura fascista, bem como
o movimento que pode levar a ela, organiza e mobiliza setores populares. Foi
por isso que no segundo artigo desta série eu dei uma definição sintética do fascismo
que era justamente a seguinte: um movimento reacionário de massa.
O fascismo é um movimento reacionário
porque, como eu escrevi, trata-se de um movimento para eliminar a esquerda do
processo político – seja ela socialista, comunista ou democrático-popular –
almejando uma organização ditatorial do Estado, mas, por ser de massa, esse
movimento contém elementos ideológicos não burgueses e superficialmente
críticos da economia e do Estado capitalista. No fascismo clássico, tratava-se
de elementos ideológicos pequeno-burgueses; no neofascismo, de elementos
ideológicos de classe média. Em conformidade com a sua base social
pequeno-burgesa, aquele criticava principalmente o nascente capitalismo dos
monopólios que agrava a situação do pequeno proprietário, o garrote dos bancos
sobre as pequenas propriedades etc; já o neofascismo, em conformidade com a sua
base social de classe média, critica principalmente a corrupção, a insegurança
pessoal diante da criminalidade e o jogo sujo da “velha política”.
Tanto no primeiro, como no segundo
caso, o discurso fascista pode extrapolar a sua base social de origem e
impactar outros segmentos populares, mesmo que tais elementos ideológicos
superficialmente críticos sejam percebidos de modos distintos de acordo com o
segmento social concernido. Por exemplo, no neofascismo os trabalhadores
assalariados manuais podem se revoltar contra a corrupção por vê-la como
parasitismo, enquanto os trabalhadores de classe média, além dessa motivação,
tendem a destacar a necessidade de “higienizar” as instituições do Estado
burguês, preservando-lhes a aparência de instituições públicas – o famigerado
“republicanismo”.
Esses elementos superficialmente
críticos, e vinculados ao discurso profundamente conservador de eliminação do
movimento democrático e popular, convergem para a ideia de reforçar o
autoritarismo do Estado brasileiro: o projeto dito de segurança de Sergio Moro
que suspende, arbitrariamente, garantias constitucionais; a prática da
ilegalidade no processo penal para a punição exemplar e espetacular da
corrupção – preferencialmente quando tal prática puder ser imputada às empresas
nacionais e à centro-esquerda representada pelo PT; desprezo pela atividade
política que é identificada apenas como a política praticada no Congresso Nacional,
mal disfarçado desprezo pela democracia e assim por diante. Um movimento de
massa contém, obrigatoriamente, elementos ideológicos não burgueses, que
interessam às massas e que podem mobilizá-las. No fascismo clássico, havia um
partido de massa; no neofascismo, como aventaram os professores Luiz Filgueiras
e Graça Druck, a mobilização pelas redes sociais pode vir a substituir esse
partido que falta ao bolsonarismo. E é justamente aí que residem as
dificuldades específicas da esquerda quando se trata de enfrentar um movimento
fascista. O discurso fascista obtém a adesão ativa de certos segmentos das
classes dominadas e pode neutralizar outros.
Tanto na ditadura militar, quanto na
ditadura fascista, os trabalhadores estão desprovidos de inúmeros direitos civis
– pensamento, expressão, manifestação, organização – e dos direitos políticos.
Porém, na ditadura militar, não tivemos o fenômeno da mobilização popular nem
antes do golpe de 1964 e nem durante a ditadura. As Forças Armadas não
mobilizaram os setores populares, não obtiveram e não procuraram obter a sua
adesão ativa. A chamada “Marcha com deus, pela família e pela liberdade” foi
algo muito breve, pontual, e em muitas cidades, a começar pelo Rio de Janeiro,
aconteceram apenas depois que os militares já tinham tomado o poder. É algo
muito diferente da situação atual na qual nasceu o bolsonarismo. Foram três ou
quatro anos de grandes manifestações de rua em centenas de cidades brasileiras
contra a esquerda e a centro-esquerda, pela deposição do governo Dilma e ditas
contra a corrupção e contra a “velha política”. O bolsonarismo nasceu aí. Hoje,
o MBL, o Vem pra Rua, o Revoltados Online e o Intervenção, para citar os grupos
mais importantes, estão todos firmes no apoio ao governo ou convergem com o
essencial de suas posições.
Diante desse movimento e desse
discurso, a esquerda encontra dificuldades. Basta lembrar como episódio maior e
fundador o Junho de 2013. Já tínhamos então grupos neofascistas, lutando contra
a PEC 37, mandando a esquerda embora para Cuba, proibindo manifestantes de
portarem bandeiras de partido político – partido de esquerda, claro. Mal se
sabia dizer se se tratava de grupos neoanarquistas, os horizontalistas, ou
neofascistas. Nada estava muito claro, salvo nos casos em que à proibição de portar
bandeiras seguiam-se agressões físicas violentas contra os manifestantes de
esquerda, como ocorreram, para citar apenas dois exemplos, nas cidades de São
Paulo e de Campinas. E, desde então, essa ambiguidade não desapareceu.
Os militantes socialistas, comunistas e
populares não podem ignorar as críticas que os neofascistas fazem à corrupção,
àquilo que denominam “velha política” e à insegurança pessoal nos bairros
populares. Veem-se na defensiva diante de tais discursos. É uma luta ideológica
difícil em que os fascistas estão presentes e minimamente organizados nas
escolas, nas ruas e em outros locais públicos e em que o seu discurso
superficialmente crítico e profundamente reacionário obtém algum impacto
popular. Esses militantes de esquerda não podem fazer tábula rasa desse
discurso. Mais que isso, têm de reconhecer que os governos da centro-esquerda
no Brasil não só não resolveram tais problemas denunciados pelos neofascistas –
corrupção, insegurança, política de favores – como passaram a fazer parte
deles, por exemplo, aperfeiçoando a política clientelista com os partidos de
patronagem e conservadores do Congresso Nacional.
É preciso dar o devido destaque à
crítica que fazem Olavo de Carvalho – principal ideólogo do neofascismo – e os
seus seguidores ao fato de a ditadura militar não ter assumido o que eles
denominam a guerra cultural contra o marxismo. Essa foi, segundo repetem os
olavetes, a grande “falha” do regime militar. Afirmam que o regime militar
realizou uma obra econômica meritória, mas, no plano político e cultural, teria
deixado o Brasil entregue à esquerda porque foi omisso na luta cultural. Aqui,
não há como não recordar dos artigos já clássicos de Roberto Schwarz
sustentando que, ao menos nos anos imediatamente posteriores ao golpe de 1964,
a hegemonia cultural na sociedade brasileira teria permanecido com a esquerda.
Pois bem, o que estão nos dizendo os olavetes e o mentor intelectual deles?
Exatamente isto: a ditadura militar não é a melhor fórmula, precisamos de uma
ditadura fascista – é ela que poderá fazer a luta ideológica contra o “marxismo
cultural”.
*Professor titular de Ciência Política
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Edição: Brasil de Fato
https://www.brasildefato.com.br/2019/04/12/artigo-or-as-dificuldades-da-luta-popular-diante-do-fascismo-por-armando-boito-jr/
Nenhum comentário:
Postar um comentário