Por Paulo Kliass
Outras Palavras
Nos anos 1980, surgiu
a ideia de que o mais importante, na gestão das contas públicas, era garantir o
pagamento de juros aos barões. O novo termo é fruto desta deformação.
É bem verdade que o
famigerado termo do economês caiu um pouco em desuso nos meios dos
“especialistas”, as figurinhas carimbadas sempre chamadas a fornecer suas
opiniões nas colunas de economia dos “grandes” meios de comunicação. Afinal,
não tem mesmo mais sentido ficar clamando pelo sacrossanto “superávit” quando
os resultados fiscais têm apresentado – de forma sistemática desde 2014 –
saldos negativos na abordagem do balanço dito “primário” das contas públicas.
Mas não nos deixemos
enganar. O fato de o resultado primário não ter sido superavitário depois de
2013 não significa que a essência da malandragem tenha sido abandonada. De modo
algum! Muito pelo contrário! Lembremo-nos todos que essa metodologia
“inovadora” no tratamento das contas públicas data ainda lá da década de 1980,
no período em que os países do chamado Terceiro Mundo estavam atolados em
dívidas externas e passaram a enfrentar dificuldades em honrar esses
compromissos em moeda norte-americana. A maior parte dos credores era composta
de bancos privados, que não queriam ficar sem receber sua parte no butim. Era o
início do período que ficou conhecido como o da crise da dívida.
Tendo em vista a
impossibilidade de pagamento das obrigações junto à banca estrangeira, entram
em cena os organismos multilaterais do financismo internacional. O Banco
Mundial (BM) e, especialmente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) se
oferecem, generosa e voluntariamente, como guardiães da liquidez. Se propõem a
honrar os compromissos dos países endividados para evitar perdas maiores e um
risco de colapso sistêmico no âmbito financeiro, mas exigem como contrapartida
que as tais nações “beneficiadas” passassem a assumir internamente a agenda de
liberalização e privatização.
Privilégios para o
financismo
E aqui entra a novidade
espoliadora. Para evitar que houvesse outra crise mais à frente, os defensores
do financismo apresentam, como um dos itens das “condicionalidades” da dita
“ajuda”, o compromisso dos governos com uma nova sistemática de condução da
política fiscal. Bingo! A partir de então não seria necessário buscar o
superávit nas contas públicas de forma geral. O pequeno “detalhe” era a
exigência de superávit nas contas primárias. E o que isso significa na prática?
Mais do que mero adjetivo, o sentido era de compromisso em buscar reduzir
despesas e ampliar receitas apenas nas contas não financeiras (as tais contas
“primárias”) dos orçamentos. Por meio de tal estratagema, sobrariam recursos
assegurados para o cumprimento das despesas financeiras dos governos. Entenda-se
aqui como o pagamento de juros e demais serviços da dívida pública.
Ao longo dessas
últimas três décadas a prática se generalizou e hoje em dia a grande imprensa
trata as duas metodologias como sinônimos. Uma grande falácia! Isso porque a
aplicação da regra do “resultado primário” confere um tratamento privilegiado
aos gastos públicos associados ao mundo financeiro. Essas rubricas são
intocáveis. Já as demais despesas – a exemplo de saúde, previdência, educação,
assistência, saneamento, ciência e tecnologia, investimento, pessoal, etc –
podem ser comprimidas para obtenção de um superávit que vai justamente para o
pagamento dos compromissos financeiros inquestionáveis.
Precisamos de algum
número para comprovar o que escrevo por aqui? Pois então, basta que consultemos
a página do BC e então poderemos identificar os valores que foram despendidos
com pagamento de juros ao longo de 2018. Uma loucura! Entre janeiro e dezembro
do ano passado, por exemplo, foram gastos exatamente R$ 379 bilhões para esse
fim. Ou seja, o país seguia quebrado, com mais de 13 milhões de desempregados,
quase 30 milhões de pessoas sub aproveitadas em suas atividades na
informalidade do mercado de trabalho, falências por todos os lados, cortes
orçamentários por todos os cantos. Mas os recursos para o setor financeiro não
poderiam faltar de maneira alguma.
Em 2018: país
quebrado e R$ 380 bi com juros O governo Temer passou seus longos e tenebrosos
dois anos reclamando por uma Reforma da Previdência, decretou a Emenda
Constitucional “do Fim do Mundo” congelando as despesas orçamentárias (não
financeiras, que fique bem claro) por longos 20 anos e provocou um verdadeiro
desmonte do Estado com o argumento de que não havia recursos. Uma grande
mentira! O dinheiro público existia, como ainda existe. O problema é que ele é
direcionado para outras prioridades. No caso, para o poderoso jogo de
interesses e de pressão do sistema financeiro.
O governo do capitão
e seu porta voz na economia vão pelo mesmo caminho. Para Paulo Guedes, a
“Reforma” da Previdência seria a mãe de todas as reformas. Sem ela, as contas
públicas ficariam inviabilizadas agora e no futuro. Em troca da destruição da
Previdência Social, ele acena com a economia de R$ 1 trilhão ao longo das duas
décadas à frente. Mentira! Está mais do que provado que basta que as atividades
econômicas voltem a crescer e os níveis de emprego sejam recuperados para que
as necessidades de financiamento atualmente existentes no Regime Geral da
Previdência Social (RGPS) sejam eliminadas.
O problema é outro.
Trata-se de saber quem terá a coragem política de propor a mudança desse modelo
perverso de transferência de recursos para o sistema financeiro e para a rede
que se alimenta do parasitismo em seu entorno. Afinal, desde que o Tesouro
Nacional começou a contabilizar uma série estatística de apuração de “resultado
primário” os dados são estarrecedores. Entre 1997 e 2018, por exemplo, foram
repassados ao sistema financeiro o equivalente a R$ 5,1 trilhões dos 22
Orçamentos Anuais da União do período. Não, você não se enganou na leitura. É
isso mesmo: R$ 5 tri!
Entre 1997 e 2018: R$
5 trilhões com juros E tem mais. Entre 1998 e 2013, foram superávits
religiosamente gerados e cumpridos. Eram valores que giravam em torno de 1,9%
do PIB na média anual. Com o recorde tendo ocorrido justamente durante o
primeiro mandato de Lula. Naquele momento, a duplinha dinâmica Antonio Palocci
(Ministério da Fazenda) e Henrique Meirelles (Banco Central) chegou ao absurdo
de alcançar uma média de 2,5% do Produto Interno entre 2003 e 2005. Um sistema
de extração de recursos de toda a sociedade, com a intenção de promover um
redirecionamento dos mesmos para uma reduzida casta de privilegiados.
A partir de 2014, a
economia começou a patinar e as contas públicas passaram a apresentar seus
primeiros problemas. Mas apesar dos déficits primários gerados desde então, a
cada exercício a conta de juros no orçamento federal era religiosamente
cumprida. No total foram pagos escandalosos R$ 1,8 trilhões ao longo dos 5 anos
de resultado fiscal deficitário em 5 anos. Pois é! Crise para quem, cara
pálida?
A mudança nessa
verdadeira eternização da perversidade e da injustiça social exige mais do quem
uma simples retomada do crescimento. É necessário que a sociedade brasileira
tome para si a responsabilidade de romper com esse pacto de privilégios do
financismo. Um modelo que aponte para o desenvolvimento e a redução das
desigualdades não pode conviver com tamanha fonte de disparidade. A agenda das
forças progressistas deve incorporar a redefinição dessa metodologia nas contas
públicas, que nos é apresentada como “natural”. Além disso, necessitamos uma
revisão das amarras da Lei de Responsabilidade Fiscal e a libertação do País
das condições draconianas de gestão da dívida pública sob o império de juros elevados.
Enfim, tudo isso passa pelo fim da ditadura do superávit primário.
Publicado
em 14 de fevereiro de 2019
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