31 de janeiro de 2019
por Prabhat Patnaik*
Cartoon de Polyp. |
À primeira vista
parece ser um enigma. A Índia tem registrado, segundo estatísticas oficiais,
uma das mais altas taxas de crescimento do PIB entre todos os países do mundo,
até ao ponto de que epítetos como “superpotência econômica emergente” e “um
motor global do crescimento” têm sido usados, sem pudor, para descrever o feito
da Índia. Comentadores burgueses manifestam muito orgulho com o fato de que a
Índia está em vias de ultrapassar até mesmo a China em termos de taxa de
crescimento. O FMI agora fala da Índia liderando o mundo no crescimento do PIB
em 2019. E ainda que se possam levantar questões acerca dos números exatos,
dificilmente se pode negar que, em termos convencionais do PIB, embora não em
termos de produção material, a taxa de crescimento da Índia tem sido muito
maior no período pós-liberalização do que antes.
No entanto,
precisamente durante o período em que o crescimento do PIB da Índia foi impulsionado,
houve um aumento da fome e da pobreza absoluta (a qual é definida em termos de
fome). A absorção per capita de cereais na Índia de hoje é nitidamente mais
baixa do que na véspera da liberalização econômica. Também é mais baixa do que
a média da África, a qual tem sido proverbialmente subnutrida por bastante
tempo, e do que a média do que a ONU chama de “os países menos desenvolvidos”.
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Não
surpreendentemente, a pobreza – a qual é oficialmente definida como a
incapacidade de ter acesso a 2200 calorias por pessoa por dia na Índia rural e
2100 calorias por pessoa por dia na Índia urbana – está em ascensão. A
percentagem da população rural abaixo desta referência calórica era de 58% em
1993-94, ela subiu para 68% em 2011-12 (ambos os períodos fizeram parte da
“grande pesquisa por amostra” da National Sample Survey Organisation). As
percentagens correspondentes da população na Índia urbana abaixo do nível de
referência de 2100 calorias foram de 57% e 65%, respectivamente. A conclusão
inescapável é que o aumento da taxa de crescimento do PIB foi acompanhado por
um aumento da fome. A pergunta levanta-se naturalmente: como se explica este
aparente enigma?
Vamos primeiro
descartar algumas explicações fáceis. Uma delas declara que quando o seu
rendimento aumenta a pessoa consome menos de cereais e mais de outras coisas,
de modo que o declínio na absorção per capita de cereais, ao invés de mostrar
uma piora econômica, mostra exatamente o oposto, nomeadamente uma melhoria no
padrão de vida. Este argumento está errado porque, embora não haja dúvida de
que as pessoas consomem menos cereais diretamente quando a sua situação
melhora, elas invariavelmente consomem mais cereais indiretamente, estes
últimos na forma de alimentos processados e produtos animais dentro dos quais
os cereais entram como um input. Uma vez que os números mencionados acima
informam a absorção per capita total (isto é, direta e indireta), explicar o
enigma aparente deste modo simplesmente não funcionará.
Uma segunda
explicação fácil aponta para a maior proporção de despesa agora gasta pelas
famílias em educação, saúde e outros serviços, para argumentar que os gostos
têm mudado, que o povo atualmente prefere gastar mais em tais serviços em
comparação com os cereais. Esta explicação poderia ter algum se não houvesse
ocorrido qualquer privatização destes serviços essenciais no período em
discussão. Com a privatização, entretanto, houve um aumento pronunciado nos
preços destes serviços (os quais não são tidos em conta no padrão dos índices
de preços no consumidor pois eles assumem que o lote de bens do período base,
incluindo serviços fornecidos publicamente, também estariam disponíveis no
período posterior). Por causa disto, agora para o acesso ao mesmo nível destes
serviços o povo tem de pagar mais, muitas vezes restringindo sua absorção de
cereais.
Incidentes de
famílias camponesas tendo de vender a terra a preço vil, ou incorrer em dívida,
só para atender as contas exorbitantes de hospitais privados onde forçosamente
levam parentes aflitos numa situação de facilidades públicas minguantes de
cuidados de saúde, são demasiado bem conhecidos para serem repetidos aqui. E em
tais casos elas são forçadas a restringir seu consumo de cereais. Portanto, as
maiores exigências da educação e cuidados de saúde sobre orçamentos familiares
longe de mostrarem mudanças de gostos a dados preços, as quais poderiam ser
interpretadas como não constituindo uma pioria econômica, sugerem um quadro
totalmente diferente, nomeadamente um aumento forçado da fome e da pobreza, efetivado
através de um aumento de preços de serviços essenciais. Isto mais uma vez
levanta a questão: por que tal crescimento da fome e da pobreza acompanha a
aceleração do crescimento do PIB? Por que este enigma aparente?
Contudo, de fato não
há enigma. Um enigma surgiria só se alguém esperasse que uma taxa de
crescimento mais alta por si mesmo reduzisse a pobreza. Mas assim fazer
constitui pensamento enviesado. A pobreza, apesar de medida em termos materiais
como calorias ou ingestão de cereais, é o resultado de um relacionamento
social. Que impacto o crescimento do PIB tem sobre a pobreza depende do
relacionamento social dentro do qual ocorre o crescimento do PIB. E o
relacionamento social dentro do qual cresce o PIB ocorre sob o capitalismo
neoliberal de um modo tal que há um aumento na fome e na pobreza mesmo quando o
crescimento se acelera.
O fato portanto não
deveria causar nem um mínimo de surpresa. Por outras palavras, o fato de a
pobreza crescente acompanhar a aceleração do crescimento do PIB apenas sublinha
a natureza do relacionamento social, caracterizada pelo capitalismo neoliberal,
dentro do qual está ocorrendo o crescimento do PIB. Na verdade, pretender que o
crescimento mais elevado do PIB per se reduziria a pobreza é desviar a atenção
da centralidade do relacionamento social; é obscurecer o assunto. Segue-se que
a algazarra acerca da taxa de crescimento do PIB da Índia que ultimamente
atraiu a atenção do público mostra apenas a atual hegemonia do discurso
neoliberal no nosso país, o qual procura precisamente obscurecer as questões.
Por que deveria o
relacionamento social do capitalismo neoliberal no interior do qual ocorre o
crescimento implicar um aumento da fome e da pobreza mesmo quando o crescimento
acelera? A resposta jaz no fato de que o regime neoliberal implica um ataque à
pequena produção. Isto não é uma ocorrência acidental. É endêmico ao regime
neoliberal: um tal regime está associado à hegemonia do capital financeiro
globalizado, a qual necessariamente significa, num mundo de Estados-nação, que
a política do governo deve estar de acordo com os caprichos da finança
globalizada. E isto implica uma retirada do governo do seu papel de proteger,
apoiar e financiar a pequena produção, incluindo a agricultura camponesa,
contra a invasão do grande capital.
Isto implica uma
retirada de subsídios do governo à agricultura camponesa e, portanto, custos
mais altos dos inputs; uma retirada dos suportes aos preços, pelo menos para as
culturas de rendimento, se não (mesmo) para as culturas alimentares; uma
exposição às flutuações dos preços do mercado mundial; e assim por diante, tudo
isso minando a viabilidade deste setor. O fato de que entre os censos de 1991 e
2011 o número de “cultivadores” diminuiu em 15 milhões (para não mencionar os
mais de 300 mil suicídios de camponeses nas últimas duas décadas e meia),
testemunha este fato. Muitos desses “cultivadores” ausentes teriam se juntado
às fileiras dos trabalhadores agrícolas; outros provavelmente migraram para
cidades em busca de emprego que não está se expandindo e, portanto, incharam as
fileiras do exército de trabalho de reserva, esmagando assim os ganhos per
capita reais de toda a população trabalhadora urbana (incluindo mesmo o pequeno
segmento de trabalhadores sindicalizados).
Temos portanto uma piora
do rendimento per capita real de toda a população trabalhadora, tanto urbana
quanto rural, como consequência do esmagamento do setor da pequena produção, a
ponto de acumularem-se estoques não vendidos de cereais (os quais são então
exportados) e há aumento da fome. O fato de que este esmagamento da pequena
produção, ou a acumulação primitiva de capital, é acompanhado por uma
aceleração do crescimento do PIB, não faz diferença para o fenômeno da fome e
da pobreza crescentes.
Pode-se pensar que um
crescimento ainda mais alto do PIB do que aquele que já temos pode, pelo
aumento do emprego, reduzir a dimensão do exército de reserva e dessa forma
reduzir a pobreza. Isto, contudo, não pode acontecer sob o capitalismo
neoliberal. O esmagamento da agricultura camponesa afeta tanto a oferta como a
procura de cereais e a acumulação de estoques de cereais não vendidos tem se
verificado apesar de a produção de cereais per capita não aumentar no período
da liberalização.
Agora, suponha-se que
o emprego aumente através de um novo aumento no crescimento do PIB sob o regime
neoliberal que a procura alimentar acrescida causada por tal aumento esgote os
estoques de cereais não vendidos. Então, qualquer novo aumento no emprego
causará inflação dos preços dos alimentos, a qual, para contê-la, o governo
tomará medidas políticas para reduzir os rendimentos dos trabalhadores
(incluindo o emprego). Nesse caso, uma vez que a produção per capita de cereais
alimentares ainda não teria aumentado em comparação com o ano base, não teria
havido redução da fome e da pobreza em comparação com o ano base, apesar do
crescimento acelerado do PIB.
Segue-se que uma
melhoria nos padrões de vida dos povo trabalhador e, portanto, uma redução da
fome e da pobreza, exige entre outras coisas um aumento na produção per capita
de cereais e, portanto, uma revitalização da agricultura camponesa. Uma vez que
isto vai contra as tendências imanentes do capitalismo neoliberal, uma redução
da pobreza é impossível sob o mesmo, não importa qual a taxa de crescimento do
PIB – pelo contrário, é provável que haja um aumento da pobreza, como vem
acontecendo.
Dito de modo
diferente, só uma aceleração do crescimento do PIB que se produzir através de
uma revitalização da agricultura camponesa e do setor da pequena produção em
geral (e sustentada ao longo do tempo através da sua transformação em
cooperativas e formas coletivas de propriedade) pode reduzir a pobreza – mas o
crescimento sob um regime de capitalismo neoliberal não é possível. Falar de
crescimento do PIB como uma panaceia para a pobreza sem qualquer referência ao
relacionamento social em que tal crescimento se verifica constitui absoluta
pobreza de pensamento. 27/Janeiro/2019 [*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original
encontra-se em peoplesdemocracy.in/2019/0127_pd/apparent-enigma-growth .
Tradução de JF.
Este artigo
encontra-se em https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_27jan19.html
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