Implementado na década de 1980, sistema de capitalização entrega
aposentadorias menores que salário mínimo no Chile
Rute Pina
Brasil de Fato
Há três anos, o Chile
vive um ciclo contínuo de manifestações que coloca milhões de pessoas nas ruas
em torno de um tema: o modelo da previdência vigente no país. Quase 40 anos
depois de implementada, a previdência chilena, que inspira o presidente de extrema
direita Jair Bolsonaro (PSL) a propor um sistema semelhante no Brasil, enfrenta
uma crise profunda.
Na década de 1980,
período em que o país era conhecido como “laboratório neoliberal” por conta de
uma série de políticas privatizantes em áreas como saúde e educação, o Chile
instaurou um modelo de previdência baseado em contas individuais, com
contribuição obrigatória. A mudança, nunca implementada em nenhum outro lugar
do mundo, foi feita por meio de um decreto de lei imposto pelo ditador Augusto
Pinochet em 1981.
Os fundos são
administrados pelas AFPs [Administradoras de Fundos de Pensão] e investidos em
aplicações financeiras. As primeiras gerações chilenas a se aposentar pelo
sistema se depararam com o valor de aposentadoria abaixo do salário mínimo.
O cientista político
Recaredo Gálvez, pesquisador da Fundación Sol, lembra que o sistema imposto em
um ambiente antidemocrático não possibilitou a disseminação de informações
corretas sobre o sistema e impediu o debate sobre as consequências que sua implementação
traria para o país.
“Não havia real
participação para discutir sobre essa transformação de política no Chile. E
isso significou que muito do que a ditadura informou a respeito da mudança de
sistema foi algo que não estava baseado em nenhum fato”, pontua.
No Chile, apesar de o
modelo ter sido implementado pelos militares, as forças armadas não têm o mesmo
sistema de aposentadoria porque se opuseram às contas individuais.
Quatro décadas
depois, efeitos nefastos
Nos modelos
solidários de repartição, como o brasileiro, os trabalhadores que estão no
mercado de trabalho financiam, com aporte dos empregadores e do Estado, quem
está se aposentando. No sistema de capitalização, lançado pelo Chile, cada
pessoa é responsável por sua aposentadoria por meio de uma conta individual.
Para o advogado da
Defensoria Popular dos Trabalhadores, Javier Piñeda, o modelo privatizado
representa um risco para os trabalhadores. “Esta lógica de capitalização
individual significa que cada pessoa tem que se salvar sozinha. E com as altas
taxas de desemprego e de informalidade, isso significa que as pessoas estão
condenadas a receber uma aposentadoria de miséria”, argumenta.
“O risco que existe é
que esses fundos vão parar nas grandes empresas que negociam no mercado de
valores. Portanto, a crise impacta nos trabalhadores. A crise do subprime de
2008 [nos EUA], por exemplo, provocou perdas milionárias para os trabalhadores
e levou, pelo menos, cinco anos para recuperar o fundo perdido neste período.”
A promessa da
ditadura de Pinochet era que os aposentados receberiam um valor que poderia
chegar a 80% do seu último salário antes de se aposentar. Mas o que acontece
hoje é que os chilenos recebem apenas 30% disso, explica o advogado.
“Ou seja, se um
trabalhador tinha um salário de US$ 500, ele deveria receber uma aposentadoria
de US$ 400. No entanto, a taxa de retorno está aproximadamente em 30%. Isso
significa que esse trabalhador só está recebendo US$ 150”.
Cerca de 90% dos
aposentados chilenos recebem menos de 147 mil pesos (R$ 833), aproximadamente
US$ 225. Esse valor equivale a quase metade do salário mínimo do país que, a
partir de março, será fixado em 301 mil pesos chilenos (R$ 1,7 mil), cerca de
US$ 450 dólares.
Recaredo Gálvez
destaca que outro efeito da privatização foi o aumento da desigualdade e uma
maior concentração de mercado controlado. Hoje as AFPs são compostas,
basicamente, por seis empresas — cinco delas estrangeiras.
Destas cinco empresas
com capital internacional, três são controladas por empresas estadunidenses: Principal
Financial Group, Prudential Financial e MetLife. Outra é controlada pela
seguradora brasileira BTG Pactual.
“É um tipo de
política que tem como motivação principal poder gerar uma fonte de absorção de
capital através do esquema financeiro. E que acaba com o direito social aos
trabalhadores e trabalhadoras”, diz o pesquisador.
Movimento “No + AFP”
Os movimentos
populares do Chile estão preparando uma marcha em defesa da Seguridade Social
no país para o dia 31 de março de 2019. “Esperamos que essa marcha também
consiga colocar essa problemática em nível regional. Por isso é necessário
falar da experiência chilena e o avanço que representa esse modelo no Brasil e
em outros países da região”, explica Gálvez.
Desde 2015, a
população chilena ocupa as ruas para lutar pela Previdência. A ex-presidente
Michelle Bachelet implementou, em 2008, o Pilar Solidário para auxiliar pessoas
que não contribuíram com o sistema, mas não mudou a estrutura do sistema atual.
Em resposta às mobilizações, o atual presidente, Sebastián Piñera, apresentou
há dois meses, em dezembro de 2018, uma medida para injetar ainda mais recursos
no setor privado.
A proposta de Piñera,
consiste, em resumo, em aumentar progressivamente a taxa de contribuição de 10%
para 14% para as administradoras. O irmão do atual presidente, José Piñera, é o
economista por trás da proposta do sistema de previdência privada do Chile que
vigora hoje. Ele era ministro do Trabalho e Segurança Social, e da Mineração,
no regime ditatorial de Pinochet. Ele é um dos famosos “Chicago boys”, como
ficaram conhecidos os economistas que adotaram a linha de pensamento neoliberal
disseminada pela Universidade de Chicago — da qual o ministro da Economia do
Brasil, Paulo Guedes, também faz parte.
Em 2016, no contexto
das manifestações, foi formado o movimento No + AFP (Chega de AFP, em
português). A entidade esboçou sua própria proposta de sistema de
aposentadoria. “A tática do movimento é colocar esse projeto de lei como uma
alternativa viável de construção de um novo sistema de previdência”, explica
Javier Piñeda. O advogado participou da comissão que criou a iniciativa.
A principal
reivindicação dos movimentos populares no Chile hoje é um sistema de repartição
solidária entre trabalhadores, empresa e Estado — o mesmo que vigora no Brasil.
Olhando para as
discussões no país vizinho, que quer copiar o modelo tão questionado em seu
país, o advogado chileno aconselha os brasileiros: “Nesse contexto de
privatizações, vocês têm que se opor de maneira contundente porque, uma vez implementado
esse sistema, vai ser difícil voltar atrás. Não só pelo governo, mas pelas
empresas do grande capital nacional e internacional que serão beneficiados com
esses recursos.”
Edição: Mauro Ramos.
Publicado em 11.02.2019
https://www.brasildefato.com.br/2019/02/08/por-que-os-chilenos-lutam-contra-o-modelo-de-previdencia-que-bolsonaro-quer-copiar/
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