31 de janeiro de 2019
OUTRAS PALAVRAS
Por Paulo Kliass
A criação da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi mais uma das muitas
decisões estratégicas adotadas por Getúlio Vargas. Com um projeto bastante
definido a respeito dos rumos de um desenvolvimento nacional autônomo, ele
deixou um legado fundamental para o futuro da sociedade brasileira. A
constituição de uma empresa pública federal para se ocupar da exploração da
riqueza do subsolo (em especial o minério de ferro) ocorreu mais de uma década
antes do lançamento da Petrobrás.
Em junho de 1942, Getúlio publica um Decreto Lei portando sobre a
criação dessa empresa estatal. Não terá sido por mera coincidência que dois
meses depois, em agosto, o País declararia oficialmente sua participação no
bloco militar dos aliados na Segunda Guerra, na luta contra o nazifascismo. A
constituição de um parque produtivo moderno à época tinha como pré requisito a
formação da indústria siderúrgica nacional e a implantação de uma sólida rede
de infraestrutura (energia, transportes, comunicações) de apoio às atividades
econômicas. O minério de ferro já se apresentava como matéria prima essencial
para tal empreitada.
Na verdade, o surgimento da CVRD veio no mesmo pacote da criação, um ano
antes, da primeira empresa brasileira em condições de produzir aço em grande
escala. Em abril de 1941 foi realizada a assembleia de fundação da Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN), também por iniciativa de Vargas. A atividade
produtiva da estatal federal foi inaugurada apenas em 1946. Ao longo da década
seguinte foram sendo constituídas outras empresas estatais federais do mesmo
ramo em outros estados. Esse foi o caso da Companhia Siderúrgica Paulista
(COSIPA, em 1953) e depois a Usiminas (1956), culminando mais tarde na montagem
da “holding” Siderbrás e sua rede de siderúrgicas controladas por quase todo o
território nacional.
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Criação e Privatização O interessante é que a CVRD sobreviveu a períodos
e processos políticos bastante distintos de nossa História. Sua natureza
pública e estatal acompanhou a vida da empresa na ditadura varguista pré 1945.
Se manteve assim no processo de democratização na Constituinte de 1946.
Atravessou a fase democrática do desenvolvimentismo até o golpe de 1964 e se
fortaleceu ainda mais no período da ditadura militar. A empresa se mantém assim
durante toda a transição democrática e o pacto da Constituição de 1988 confirma
que os recursos do subsolo são bens da União e que a exploração de minério
também é de exclusividade da União.
No entanto, a onda neoliberal da década de 1990 coloca esse modelo em
questão. Durante o governo de FHC um conjunto de setores estratégicos e
empresas estatais passam a ser objeto de privatização. Um dos exemplos mais
emblemáticos foi justamente o da CVRD. O controle acionário da empresa foi
transferido em uma única martelada no cenário teatral especialmente montado
pelo financismo no espaço da Bolsa de Valores. Com isso, foram-se embora pelo
ralo mais de 55 anos de vida da empresa no âmbito do setor público. Independentemente
das críticas que se possam oferecer ao percurso da empresa ao longo dessas
décadas, o fato é que ela estava respondendo de alguma maneira a interesses
estratégicos do Estado brasileiro.
A onda privatizante foi devastadora. Ao final, o valor pago pelo
consórcio vencedor foi irrisório. Foram contabilizados apenas R$ 3,3 bilhões,
quando várias avaliações independentes estimavam que os valores patrimoniais da
CVRD superavam os R$ 70 bi. Além disso, o modelo de privatização aceitava o
pagamento dos ativos com as chamadas “moedas podres”. Tratava-se de títulos do
Tesouro Nacional que eram negociados por alguns centavos no mercado secundário
e que foram aceitos por seu valor nominal de face na hora da privatização. Uma
verdadeira negociata em prol dos investidores. Um tremendo crime de lesa pátria
contra a maioria da população brasileira.
A Vale precisa ser pública! É bem verdade que as pessoas ficaram
bastante chocadas com as catástrofes mais recentes de Mariana e Brumadinho. E
esse sentimento generalizado de indignação e impotência é mais do que
justificado. Afinal, os prejuízos são incomensuráveis – humanos, ambientais,
materiais, financeiros. Ao contrário do que tentam passar os grandes meios de
comunicação e os próprios órgãos públicos envolvidos, estes eventos não podem
ser qualificados como “acidentes”. Na verdade, foram crimes cometidos em nome
da busca ensandecida pelo lucro. Eu sei que é duro apresentar uma análise com
esse tipo de frieza nesse momento de tanta dor e tristeza. No entanto, infelizmente,
é simples assim.
Mas não nos esqueçamos de que o primeiro grande crime foi até anterior.
Ele ocorreu com a decisão de promover a privatização. Ao vender a Vale para o
capital privado, o governo passou a sinalizar que a exploração do minério de
ferro (e outros minerais) entrava em nova fase. Ao transferir a propriedade e a
direção da empresa para uma articulação liderada pelo capital financeiro
nacional e internacional, nossa elite política rompeu com o modelo que
pressupunha a existência de um projeto nacional articulado para promover a
exploração do subsolo com alguma racionalidade que fosse um pouco além da
ganância pura e simples.
A Vale passou a orientar suas ações única e exclusivamente em busca da
chamada “maximização de seus resultados”. Traduzindo esse financês sofisticado,
isso significa que a empresa iria correr atrás de lucros e mais lucros a
qualquer preço. E ponto final! Sim, pois esse era exatamente o argumento usado
à época da negociata. Vivíamos sob o reinado supremo e absoluto dos ditames do
Consenso de Washington e de suas receitas liberal privatizantes. A grande
imprensa não cansava de repetir o eterno blá-blá-blá a respeito da suposta
ineficiência intrínseca do setor público e da suprema eficiência da gestão
privada das empresas. Os resultados estão por aí.
As pessoas se assustam com as revelações dos bastidores da vida da
empresa que agora passam a vir à tona. É doloroso e revoltante. Mas é
exatamente assim que funciona a lógica do capital privado. O interesse que
comanda é a busca do retorno financeiro dos investidores, em particular os
estrangeiros que operam na Bolsa de Valores de Nova Iorque. E para esse povo,
pouco importa o que, o como e onde a empresa esteja atuando. Eles querem lucro
e nada mais conta. Se alguém pensou em projeto nacional, esqueça. A Vale
exporta minério de ferro extraído das montanhas de Minas Gerais e ela mesma
importa – para construir suas estradas de ferro – os trilhos produzidos pelo
conglomerado em plantas industriais no exterior.
Capital privado e lucro a qualquer preço A Vale não incorpora em suas
ações nenhum tipo de compromisso com a sustentabilidade ambiental, social ou
econômica. O que já era sabido e denunciado pelo mundo afora, agora passou a
ser tragicamente comprovado pelos crimes de Mariana e Brumadinho. A partir da
privatização, a lógica de acumulação de capital obedece ao princípio de
obtenção do máximo potencial de lucro no menor intervalo de tempo possível.
Assim, sob tais condições, os aspectos relativos a segurança na operação, a
prudência nos processos, o respeito às populações locais, a preservação do meio
ambiente e outros se enquadram naquilo que o governo do capitão chama
genericamente de “marxismo cultural”.
Ora, não é mesmo verdade que boa parte das receitas da Vale advém da
exportação de minério de ferro? Pois então, a tarefa do suposto “gestor
eficiente” é aumentar o volume a ser extraído a qualquer preço. Sim, pois sobre
a cotação da tonelada da commodity no mercado internacional ela não consegue
atuar. Essa verdadeira sangria – literal e simbólica – a que a sociedade
brasileira está sendo submetida é convertida em bônus e ganhos exorbitantes
para os dirigentes da empresa, além dos dividendos bilionários religiosamente
pagos aos investidores nacionais e estrangeiros. A velha e conhecida ampliação
e reprodução das desigualdades de todos os tipos.
Ora, sob tais circunstâncias, não seria o caso de nos indagarmos qual o
ganho que a maioria da nossa população tem com a continuidade desse modelo
altamente espoliador? A realidade objetiva é que reproduzimos um sistema
baseado no pós-colonialismo, onde permanecemos especializados na exportação de
riquezas naturais de baixíssimo valor agregado e importamos produtos
manufaturados de alto valor agregado do resto do mundo. Ou seja, terminamos por
reforçar um modelo que nos eterniza na condição de subalternos e dependentes.
Exatamente o oposto do sonho de Getúlio e de qualquer projeto de
desenvolvimento social e econômico.
A Vale precisa ser pública! Esse tipo de atividade recolhe pouquíssimo
tributo e compromete de forma severa nosso meio ambiente e nosso tecido social.
No entanto, a Vale é uma das empresas que mais participa do financiamento de
campanhas eleitorais pelo Brasil afora. Com seu imenso poder econômico, ela
interfere nas eleições “colaborando” com chapas nos executivos federal,
estaduais e municipais, bem como na votação de candidatos aos legislativos dos
três níveis. Talvez essa seja uma característica essencial para compreendermos
a complacência e a passividade da administração pública em promover uma
regulação séria e punir esse tipo de atividade criminosa.
A crise está escancarada. Esse é o momento para se debater e reverter o
crime da privatização. O futuro da Vale em simbiose de respeito ao meio
ambiente e à maioria da sociedade exige uma mudança efetiva em seu comando. A
empresa precisa recuperar de forma urgente sua natureza pública, para evitar a
continuidade desse tipo de prática criminosa. Já passou da hora da União
retomar as rédeas de controle da empresa, evitando que a sanha avassaladora do
lucro a qualquer custo continue a orientar a gestão do grupo.
A Vale precisa voltar a ser uma organização pública e estatal. Uma
empresa preocupada com o futuro do Brasil e não com a satisfação dos interesses
mesquinhos dos investidores do capital especulativo. Basta!
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