Professor da USP foi alvo dos aparelhos ideológicos que ele sempre denunciou a partir de denúncias forjadas de fundo moral
21 de dezembro de 2025
Crítica do cancelamento, de Alysson Mascaro (Foto:
Brasil 247 / Contracorrente)
:
247 – A expressão “a
verdade está em marcha e nada a deterá”, do escritor francês Émile Zola,
sintetiza uma posição histórica e ética segundo a qual a verdade não é neutra,
não se limita a equilibrar versões e não se submete ao poder constituído. A
verdade avança quando confronta estruturas que dependem da mentira para se
manter.
É a partir dessa chave que se compreende a perseguição ao professor Alysson Mascaro: não como um episódio administrativo isolado da Universidade de São Paulo, mas como uma operação típica de lawfare e silenciamento ideológico, na qual acusações morais fabricadas pelo site estadunidense The Intercept cumprem a função de interditar uma crítica estrutural ao capitalismo.
Zola, Dreyfus e a verdade que enfrenta o Estado
O Caso Dreyfus permanece como um dos
exemplos mais claros do funcionamento do arbítrio moderno. Alfred Dreyfus,
capitão judeu do Exército francês, foi condenado injustamente por traição a
partir de provas forjadas, num contexto em que Estado, Forças Armadas,
Judiciário e preconceitos estruturais atuaram de forma coordenada para
preservar interesses corporativos. Émile Zola surge nesse cenário não apenas
como romancista consagrado, mas como intelectual público que compreendia a
escrita como instrumento de intervenção social.
Ao publicar o artigo “J’accuse…!” no
jornal L’Aurore, dirigido por Georges Clemenceau, em 13 de janeiro
de 1898, Zola rompeu deliberadamente com qualquer pretensão de neutralidade. O
texto, apresentado como carta aberta ao presidente da República, nomeou
autoridades, descreveu mecanismos de fraude institucional e acusou diretamente
o Estado de condenar um inocente para proteger a si mesmo.
É nesse contexto que se afirma a ideia da “verdade em marcha”. Zola foi condenado por difamação e forçado ao exílio, mas sua intervenção abriu fissuras irreversíveis no sistema de mentiras que sustentava a condenação de Dreyfus.
Por que o “J’accuse…!” se tornou um marco do jornalismo
O “J’accuse…!” redefiniu de forma
duradoura o papel da imprensa. Pela primeira vez, o jornalismo se afirmou como
instrumento direto de denúncia do Estado, acusando nominalmente autoridades
militares e judiciais de fabricar provas e ocultar documentos. A assinatura de
Zola não foi um detalhe formal, mas um compromisso público com a verdade, que
vinculava reputação, responsabilidade autoral e risco pessoal à denúncia.
O texto combinou rigor factual com força narrativa, demonstrando que o jornalismo pode ser preciso sem ser frio e engajado sem abandonar os fatos. Ao recusar a falsa equivalência entre verdade e mentira, estabeleceu um princípio central do jornalismo crítico: diante de uma injustiça comprovada, a neutralidade não é virtude, mas cumplicidade.
Por que a imprensa passou a mentir na modernidade
Com o avanço do capitalismo e da
integração entre mídia, finanças e poder político, a mentira jornalística
deixou de ser exceção para se tornar mecanismo estrutural. Em muitos países, a
grande imprensa deixou de atuar como contrapoder e passou a funcionar como
fração orgânica das elites econômicas, financeiras e geopolíticas. Inserida
nessas estruturas, ela não pode dizer a verdade integral sem colocar em risco o
sistema que a sustenta.
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A mentira contemporânea raramente é
grosseira ou explícita. Ela opera por meio da seleção de fatos, da ocultação de
contextos decisivos, da amplificação de versões convenientes e do silenciamento
de vozes dissidentes. A falsa neutralidade transforma-se em técnica sofisticada
de dominação, criando equivalências artificiais entre agressor e vítima e despolitizando
conflitos reais, como perseguições judiciais seletivas e processos de lawfare.
A dependência econômica da publicidade corporativa, do sistema financeiro, de fontes oficiais e de plataformas controladas por big techs cria linhas invisíveis de censura editorial. O resultado não é o silêncio absoluto, mas o deslocamento do sentido. A imprensa passa a produzir consenso, não verdade, criminalizando a dissidência e rotulando críticas estruturais como “radicais” ou “desinformação”. Assim, rompe-se o pacto ético original do jornalismo, ligado à fiscalização do poder e à defesa dos injustiçados, e a verdade volta a ser tratada como ameaça.
A imprensa como aparelho ideológico de Estado
Na teoria do intelectual francês
Louis Althusser, um dos grandes inspiradores do pensamento de Alysson Mascaro,
a dominação moderna não se sustenta apenas pela coerção direta dos aparelhos
repressivos, como polícia, Exército e tribunais, mas pela ação cotidiana dos
aparelhos ideológicos de Estado, entre eles a imprensa. Sua função central não
é informar de forma neutra, mas reproduzir as condições sociais que garantem a
continuidade da ordem vigente.
Nesse quadro, a mentira jornalística
não é falha moral individual, mas efeito estrutural. A ideologia funciona
tornando certas ideias naturais, evidentes e incontestáveis. Quando a imprensa
naturaliza desigualdades, trata interesses do mercado como interesses
universais ou apresenta decisões políticas como fatalidades técnicas, ela
organiza o sentido da realidade sem precisar negar os fatos.
A falsa neutralidade é a forma ideológica mais eficiente, justamente porque oculta seu caráter ideológico. Sempre que uma verdade ameaça expor a violência estrutural do Estado ou a lógica de classe do capitalismo, ela deixa de ser tolerável. Nesse momento, a imprensa silencia seus alvos.
Família, Pasolini e a ruptura do senso comum
A família ocupa posição central entre
os aparelhos ideológicos, pois antecede a escola e o trabalho, naturaliza
hierarquias e transmite valores de classe, gênero, sexualidade e propriedade.
Apresentada como espaço privado e afetivo, ela funciona como fábrica primária
de subjetividades ajustadas à ordem social.
Em Teorema, de Pier Paolo
Pasolini, essa engrenagem é deliberadamente desmontada. Uma família burguesa
aparentemente estável entra em colapso após a visita de um estranho que
estabelece relações íntimas com todos os seus membros. O visitante não ensina
nem moraliza; ele desorganiza. A sexualidade aparece como instrumento de
ruptura ideológica, desmontando a gramática simbólica que sustenta a família
burguesa.
O colapso do pai, que abandona a fábrica, renuncia à propriedade e termina nu no deserto, simboliza a falência da autoridade quando o aparelho ideológico deixa de funcionar. Pasolini foi perseguido porque atacou simultaneamente a família burguesa, a moral sexual normativa, a hipocrisia da classe média, a Igreja institucional e o capitalismo de consumo. Censura, processos, demonização e, por fim, seu assassinato se inserem na lógica de um sistema que reage quando sua base simbólica é exposta.
Universidade, direito e reprodução da dominação
As universidades, especialmente as
faculdades de direito, ocupam lugar central na reprodução da dominação
burguesa. Elas não apenas transmitem conhecimento técnico, mas formam elites
dirigentes e naturalizam o capitalismo como horizonte incontornável. O direito
é estratégico porque traduz relações de força em normas abstratas, convertendo
interesses de classe em legalidade e violência estrutural em procedimento
legítimo.
As faculdades de direito formam
sujeitos que confundem legalidade com justiça, tratam a propriedade privada
como direito natural e veem o Estado como árbitro neutro. O mito da
neutralidade jurídica encobre o fato de que a lei protege a propriedade antes
da vida e transforma desigualdade material em igualdade formal. O jurista,
formado nesse ambiente, torna-se operador inconsciente da dominação, aplicando
normas e legitimando a coerção estatal sob a aparência de cumprimento da lei.
A universidade tolera críticas desde que não questionem sua própria função ideológica. O marxismo abstrato e ritualizado é aceitável; a crítica que desmistifica a instituição como parte do problema não é. Quando a universidade se reconhece no espelho da crítica, ela reage.
O falso progressismo e a moralização da política
A substituição da política pela moral
é uma das marcas centrais do capitalismo contemporâneo. O chamado falso
progressismo, marcado pelo identitarismo, abandona a crítica às estruturas de
classe e concentra-se em linguagem, identidades e condutas individuais. O
conflito deixa de ser sistêmico e passa a ser moral.
Esse deslocamento é funcional ao
sistema. O moralismo individualiza problemas estruturais, substitui análise por
julgamento e produz culpa em vez de consciência. O capitalismo incorpora
identidades sem tocar em salários, precarização ou concentração de riqueza. A
política se converte em gestão de sensibilidades, enquanto o poder econômico
sai do centro da crítica.
Essa falsa radicalidade, baseada em cancelamentos e vigilância moral, fragmenta os dominados, enfraquece a solidariedade e impede a organização coletiva. Universidades, mídia corporativa, ONGs e fundações promovem esse progressismo seguro, que reorganiza o vocabulário da dominação sem ameaçar suas bases materiais.
ONGs, cancelamento e controle ideológico
O investimento do grande capital em
ONGs e veículos de comunicação associados a elas não é filantropia, mas sim
parte da estratégia de dominação. A repressão direta é cara e instável; o
consenso moralizado é mais eficiente. Essas organizações funcionam como
aparelhos ideológicos terceirizados, com aparência de independência, linguagem
humanitária e ausência de controle democrático.
O financiamento condiciona pautas e limites. Causas que não questionam propriedade privada, financeirização ou luta de classes são incentivadas; críticas estruturais são desestimuladas. O cancelamento torna-se tecnologia de poder, destruindo reputações sem debate, isolando críticos perigosos e produzindo autocensura difusa. A política se transforma em tribunal moral permanente, enquanto bancos, monopólios e desigualdades seguem intactos.
Moralismo progressista e fortalecimento da extrema-direita
Ao reduzir a política à guerra cultural,
o progressismo moralista produz ressentimento social. Para amplas maiorias
precarizadas, ele aparece como elitismo cultural e desprezo material. A
extrema-direita ocupa esse vazio, oferecendo pertencimento, linguagem simples e
falsa rebeldia contra “as elites culturais”.
Forma-se uma polarização barulhenta que substitui o conflito de classe por choques simbólicos. A extrema-direita provoca, o moralismo reage, a mídia amplifica, e o capital observa intacto. Ambos operam dentro de um campo permitido que não toca as estruturas reais de poder. O verdadeiro antagonismo permanece fora de cena.
Alysson Mascaro e a reação do sistema
É nesse quadro que se insere o
afastamento e a expulsão de Alysson Mascaro da Universidade de São Paulo, após
denúncias morais anônimas, que foram fabricadas e amplificadas pelo The
Intercept, um veículo de comunicação estadunidense que se apresenta ao público
brasileiro como progressista. A questão central não é o mérito
jurídico-administrativo das acusações, mas a função política que essa operação
cumpre.
Sistemas de dominação não reagem a
ideias inofensivas. O marxismo é tolerado enquanto permanece hermético,
acadêmico e restrito a nichos. Mascaro ultrapassou esse limite ao se tornar
intelectual público de amplo alcance, divulgador acessível do marxismo, crítico
do Estado, do direito, da universidade e do capitalismo como estrutura.
A crítica se torna intolerável quando
forma sujeitos, quando circula para além dos muros acadêmicos e passa a
produzir consciência. Nesses momentos, o ataque não é político, mas moral. A
acusação individual substitui o debate estrutural, despolitiza a discussão e
elimina a ideia sem precisar refutá-la.
A universidade de elite tolera o marxismo
decorativo, mas não tolera ser desmascarada como aparelho ideológico. E não se
trata apenas de Mascaro. O gesto da demissão sem provas cumpre função
pedagógica: intimida outros intelectuais, produz autocensura e delimita o campo
do aceitável. A mensagem é clara e conhecida: critique costumes, linguagem e
indivíduos, mas jamais critique o sistema de forma acessível e popular.

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