Leonardo Silva
Andrada – militante do PCB de Juiz de Fora (MG)
Um fantasma ronda a
América Latina: o fantasma da intervenção imperialista. Aumento de tarifas,
deslocamento da marinha de guerra e declarações ameaçadoras foram algumas das
expressões recentes, na busca por encurtar a rédea que controla a região. Nas
últimas eleições presidenciais, o centro do império escolheu um CEO com postura
comercial agressiva, como opção tática no enfrentamento aos efeitos mais
sensíveis de sua debacle. Donald Trump executa a plataforma anunciada como
marca de seu governo, para tentar reverter os índices negativos que traduzem a
derrocada.
Circulam opiniões garantindo que testemunhamos o colapso do domínio estadunidense, mas a história do capitalismo – sua vertente yankee incluída – recomenda cautela, em face da comprovada capacidade para contornar crises com paliativos mais ou menos eficientes. Em qualquer caso, ainda que ajustes de grande impacto consigam postergar o colapso final, são inegáveis os sintomas de um período historicamente denso, que demanda operações de grande alcance para adequar-se às condições presentes.
Do tipo, pelo menos, que vimos em 1973, quando o
esgotamento do modelo gestado em Bretton Woods reclamou transformações
profundas na engenharia institucional que estruturou o capitalismo pós guerra,
visando se conformar às necessidades da fração financeira – modelo que pautou
um novo ciclo, em seguida chamado de neoliberalismo. Ou talvez o rearranjo de menor
escopo operado em 2001, ano que marca historicamente o início da hegemonia
estadunidense isolada que ora dá sinais de fadiga.
A guerra ao terror de
Bush Junior foi a síntese propagandística de uma gama de movimentos táticos
necessários à estruturação do poder imperialista no período de fim da história,
como peremptoriamente alardeavam seus ideólogos. Ao longo da década
transcorrida em seguida ao fim da União Soviética, os organismos multilaterais
a serviço da dominação financeira espraiaram o projeto neoliberal gestado em 73
por uma ampla parcela do planeta; a tarefa para a administração imperial, nesse
momento, foi reorganizar a política global de forma a garantir que o excedente
produzido em economias desregulamentadas continuasse fluindo em direção a Wall
Street, para seguir financiando os déficits fiscal e comercial que sustentam o
militarismo e o consumismo destrutivo do american way of life, além de
atualizar a secular prática colonialista de garantir o acesso a recursos e
mercados.
Continue lendo
A definitiva caracterização
do momento como desintegração da dominação global estadunidense ainda depende
de dois elementos fundamentais: tempo e estudo em profundidade, para além do
impressionismo. Se é prematuro vaticinar que testemunhamos o início do fim, é
razoável assumir que tais impressões derivam de sinais inequívocos da
conjuntura. As consequências associadas a tais sinais podem ser exageradas,
eventualmente wishful thinking, mas eles existem e merecem consideração. Os
índices da presença chinesa no Brasil desafiam, sem alarde, a efetividade de
dois séculos da política externa dos EUA para América Latina, desde a Doutrina
Monroe, as Diplomacias do Dólar e da Canhoneira, o Big Stick e suas variedades
conjunturais, sempre partindo do pressuposto de que do Rio Bravo del Norte à
Patagonia, tudo e todos se submetem a Washington.
A China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil: em 2024 suas importações atingiram 94 bilhões de dólares, mais do que o dobro dos 40 bilhões de importações dos EUA. No encontro dos BRICS realizado em julho passado, foram anunciados investimentos na infraestrutura para escoamento da produção. O mais significativo entre eles prevê a realização de estudos para a viabilidade econômica e ambiental de uma ferrovia ligando o litoral do Atlântico, na Bahia, ao litoral do Pacífico, no Peru, cortando cinco estados brasileiros e o sul do país vizinho. A concretização desse projeto teria um impacto considerável na trajetória histórica do capitalismo brasileiro, em diferentes níveis. Não só amplia o descolamento da área de influência de Washington, mas também diminui a centralidade do transporte rodoviário e toda a cadeia produtiva automobilística e do petróleo, característica marcante do nosso modelo econômico desde o período da substituição de importações de JK, subordinada ao capital estadunidense.
Na mesma reunião houve mais uma rodada de negociações para
substituição do meio de pagamento em transações internacionais. Manter o dólar
como moeda padrão do comércio exterior é engrenagem fundamental para a preservação
dos pilares da economia estadunidense. O fim dessa escora instituída em meio ao
butim da II Guerra expõe a economia interna dos EUA a todos os efeitos
deletérios de seu duplo déficit. Por essa razão, tentativas de se desvencilhar
da rédea monetária são combatidas de forma intransigente por qualquer
presidente estadunidense, seja ele burro ou elefante. Emblema dessa postura foi
o destino que coube a dois líderes que ousaram desafiar o dogma: Muammar
Khadafi e Saddam Hussein.
Diante de tamanhas afrontas ao ancestral controle da Casa Branca, o presidente-apresentador de reality show anunciou um pacote de tarifas especiais para os produtos brasileiros, cuidando para que fique clara a conexão com o julgamento de Bolsonaro e seus apoiadores. Acreditar que decisões dessa categoria podem ser tomadas por amizade e proximidade ideológica, é próprio de quem tem pouca afinidade com a dinâmica política. Os ataques endereçados ao Brasil têm como vetor o enfraquecimento de um governo que tem dado sinais de aproximação com a política internacional gestada no bloco que apresenta a principal concorrência à dominação global estadunidense na presente quadra histórica. Ao mesmo tempo em que incide sobre o elo mais fraco dos BRICS, buscando intervir de alguma forma nas articulações que almejam consolidar as novas posições de seus membros, camufla suas reais intenções ao escolher os Bolsonaro como aliados estratégicos no teatro de operações brasileiro.
Após insistentes tentativas
fracassadas, os agentes do neofascismo foram presenteados com declarações e
medidas favoráveis a seu pleito de premiação dos golpistas. Dado o histórico
dos personagens, bem como a circunstância do anúncio, é legítimo supor que algo
foi oferecido como espólio – e as especulações podem envolver interesses
ligados a frações hegemônicas no capitalismo financeiro e informacional
contemporâneo, como livre ação para as corporações de mídia online, ou o acesso
privilegiado às cobiçadas terras raras e seus valiosos recursos minerais.
O recorde de
movimento no porto de Santos, concomitante à implementação do pacote de tarifas
especiais, é mais um entre os sintomas que vêm se acumulando, de um momento de
transição profunda no caráter e nos traços definidores da nova fase histórica
do capitalismo, com a superação da hegemonia solitária e isolada dos EUA. Meio
século depois, talvez o Departamento de Estado já não se entusiasme tanto com
uma decisão de seu mais conhecido Secretário. Como parte de uma estratégia de
corrosão do poder e a influência da URSS, Henry Kissinger patrocinou a política
de reaproximação com a China, que se inicia com a visita de Nixon em 1972 e se
efetiva no final da década, com o restabelecimento das relações diplomáticas em
1979. Independente do juízo que se faça do socialismo de mercado chinês, sua
origem remonta ao estabelecimento das Zonas Econômicas Especiais, criação de
Deng Xiaoping em 1980, buscando dinamizar a economia chinesa a partir dos
recursos proporcionados pela reaproximação com o centro do sistema capitalista
ocidental.
Quanto ao que virá
dessa alteração no eixo geopolítico latino-americano, é necessária uma
interpretação acurada do caráter e do sentido do regime chinês. Entender como é
seu Estado, de que forma se relaciona com a sociedade e as organizações, como
as instituições operam, em que assenta sua economia. Enfim, em que sentido
aponta a luta de classes e como a atuação do Partido Comunista Chinês participa
dessa dinâmica. Que é uma forma desdobrada de buscar observar como se
apresenta, na história, o critério moral defendido por Lenin: bom é o que ajuda
a revolução. Maiores considerações sobre as virtudes e contradições do atual
modelo chinês merecem uma discussão própria, não sendo de grande utilidade
qualquer determinação apressada de um parágrafo ou dois.
O acúmulo histórico
da propaganda ideológica anticomunista oferece à ofensiva imperialista farto
material para dissimular seus ataques à China. Se o debate sobre o caráter do
regime chinês é intenso e nuançado, capturando o interesse e relevantes
esforços de intelectuais e militantes, as coisas são planas e simples no senso
comum, facilitado pela simbologia que não carrega legendas explicativas:
trata-se de comunismo, como o próprio nome do partido dirigente explicita.
Disso resulta que toda intervenção tática visando minar a atuação de setores
chineses na economia brasileira, tem farto apoio garantido de saída, graças ao
pânico diante da bandeira vermelha que ameaça as famílias, o cristianismo, a
liberdade e as posses. Pode ajudar a dissipar o efeito da propaganda ideológica
antichinesa, o muito concreto recorde de movimento no Porto de Santos já
mencionado, que faz relevante contrapeso às potenciais perdas econômicas que
adviriam do cancelamento de encomendas em razão da elevação tarifária.
Há uma possibilidade histórica de reorientação do capitalismo brasileiro, no sentido de romper com o ancestral papel dependente do centro do imperialismo, com vistas a participar em condições mais favoráveis no bloco que ora desafia a Terra da Liberdade. Para além da propaganda, é preciso lidar com a base material que determina as posições relativas no concerto das nações, ou minimamente na Orquestra de Câmara que se desenha. Em qualquer dos casos, a infraestrutura brasileira não faz frente à russa ou à chinesa, não há como discutir; mas dispõe de recursos estratégicos. Grãos, bovinos, minério de ferro, petróleo, e mais recentemente terras raras foram incluídas no portfólio.
Adicionalmente, o berço esplêndido é
posição geográfica estratégica no hemisfério, e conta com infraestrutura de
transportes de ligação continental. Em síntese, fornece commodities, logística
de escoamento e mercado consumidor em grande escala, além de reservas de
potencial desenvolvimento ulterior, como um parque industrial maduro e
estrutura acadêmica para pesquisa, potencialidades que dependem de
investimentos adequados para alcançar um outro patamar de contribuição para
desenvolvimento autônomo.
O teor do discurso de Donald Trump na Organização das Nações Unidas, acenando positivamente para Lula, não deve entusiasmar a ponto de induzir a equívocos de avaliação. Estes podem ser deixados ao ufanismo dos apoiadores mais devotos do presidente brasileiro, por um lado, ou ao servilismo de seus adversários mais entreguistas, por outro. Trump adota uma tática de negociante que se apresenta como movimentos aparentemente erráticos e contraditórios, e não seria a primeira vez que agride verbalmente um visitante cordialmente convidado à Casa Branca.
De resto, sua intervenção na balança comercial com o Brasil atingiu
também interesses de sua própria base, cuja pressão pode ter influenciado na
substância do discurso. Em síntese, qualquer tentativa de antecipação do que de
fato será negociado em uma eventual reunião entre os dois presidentes, a forma
como essa conversa se dará e, principalmente, seu impacto real nas tarifas e na
composição futura das transações entre os países, é do campo da especulação.
Em que direção apontará o leme do governo brasileiro, diante desse momento fáustico do desenvolvimento econômico? Há uma possibilidade concreta de reorientação da rota histórica do capitalismo dependente e esse é o roteiro mais avançado que se afigura no horizonte, por ora. Até o momento, a conjuntura não oferece quaisquer elementos para os exercícios nostradâmicos de antecipação da ruína final e superação desse modo de produção. Parece mais sensato esperar algo como completar a revolução burguesa, que a burguesia nativa nunca pôde nem quis realizar, no sentido que Florestan Fernandes deu a tal gesto: concluir a independência, estruturar uma efetiva comunidade política, forjar enfim uma nação.
Em verdade, um dos termos da equação continua oculto; o aprofundamento
democrático, por ancestral que seja sua reivindicação, ainda não consta
efetivamente do programa disponível – mas a menção é oportuna. Por sua
densidade e alcance, o significado do aprofundamento da relação com os BRICS
deve ser o eixo definidor das eleições de 2026. É imprescindível a organização
e impulsionamento de um grande movimento de massas que sirva de esteio para a reorientação
histórica que podemos operar – e que se adequadamente conduzida, pode criar
condições muito mais favoráveis a desdobramentos e transformações ainda mais
significativas; sempre observando a régua de Lenin.

Nenhum comentário:
Postar um comentário