Presidente Lula discursou, nesta terça-feira, na abertura 80º sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
Nova York (NY), 23/09/2025 - Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante a abertura do Debate Geral da 80.ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Por Paulo Emilio
247 - O presidente
Lula (PT) discursou, nesta terça-feira (23), na 80º sessão da Assembleia Geral
da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, nos Estados Unidos. O
presidente fez um discurso histórico em defesa da soberania nacional e do
multilateralismo, além de abordar temas como o combate à fome, regulação das
big techs, genocídio do povo palestino, além de outras questões ligadas à
geopolítica mundial.
Leia a íntegra do discurso do
presidente Lula na abertura da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas:
"Senhora Presidenta da
Assembleia Geral, Annalena Baerbock,
Senhor Secretário-Geral, António
Guterres,
Caros chefes de Estado e de Governo e
representantes dos Estados-Membros aqui reunidos.
Este deveria ser um momento de
celebração das Nações Unidas.
Criada no fim da Guerra, a ONU
simboliza a expressão mais elevada da aspiração pela paz e pela prosperidade.
Hoje, contudo, os ideais que
inspiraram seus fundadores em São Francisco estão ameaçados, como nunca
estiveram em toda a sua história.
O multilateralismo está diante de
nova encruzilhada.
A autoridade desta Organização está
em xeque.
Assistimos à consolidação de uma
desordem internacional marcada por seguidas concessões à política do poder.
Atentados à soberania, sanções
arbitrárias e intervenções unilaterais estão se tornando a regra.
Existe um evidente paralelo entre a
crise do multilateralismo e o enfraquecimento da democracia.
O autoritarismo se fortalece quando
nos omitimos frente a arbitrariedades.
Quando a sociedade internacional
vacila na defesa da paz, da soberania e do direito, as consequências são
trágicas.
Em todo o mundo, forças
antidemocráticas tentam subjugar as instituições e sufocar as liberdades.
Cultuam a violência, exaltam a
ignorância, atuam como milícias físicas e digitais, e cerceiam a imprensa.
Mesmo sob ataque sem precedentes, o
Brasil optou por resistir e defender sua democracia, reconquistada há quarenta
anos pelo seu povo, depois de duas décadas de governos ditatoriais.
Não há justificativa para as medidas
unilaterais e arbitrárias contra nossas instituições e nossa economia.
A agressão contra a independência do
Poder Judiciário é inaceitável.
Essa ingerência em assuntos internos
conta com o auxílio de uma extrema direita subserviente e saudosa de antigas
hegemonias.
Falsos patriotas arquitetam e
promovem publicamente ações contra o Brasil.
Não há pacificação com impunidade.
Há poucos dias, e pela primeira vez
em 525 anos de nossa história, um ex-chefe de Estado foi condenado por atentar
contra o Estado Democrático de Direito.
Foi investigado, indiciado, julgado e
responsabilizado pelos seus atos em um processo minucioso.
Teve amplo direito de defesa,
prerrogativa que as ditaduras negam às suas vítimas.
Diante dos olhos do mundo, o Brasil
deu um recado a todos os candidatos a autocratas e àqueles que os apoiam: nossa
democracia e nossa soberania são inegociáveis.
Seguiremos como nação independente e
como povo livre de qualquer tipo de tutela.
Democracias sólidas vão além do
ritual eleitoral.
Seu vigor pressupõe a redução das
desigualdades e a garantia dos direitos mais elementares: a alimentação, a
segurança, o trabalho, a moradia, a educação e a saúde.
A democracia falha quando as mulheres
ganham menos que os homens ou morrem pelas mãos de parceiros e familiares.
Ela perde quando fecha suas portas e
culpa migrantes pelas mazelas do mundo.
A pobreza é tão inimiga da democracia
quanto o extremismo.
Por isso, foi com orgulho que
recebemos da FAO a confirmação de que o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome
neste ano de 2025.
Mas no mundo, ainda há 670 milhões de
pessoas famintas. Cerca de 2,3 bilhões enfrentam insegurança alimentar.
A única guerra de que todos podem
sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza.
Esse é o objetivo da Aliança Global
que lançamos no G20, que já conta com o apoio de 103 países.
A comunidade internacional precisar
rever as suas prioridades:
- Reduzir os gastos com guerras e
aumentar a ajuda ao desenvolvimento;
- Aliviar o serviço da dívida externa
dos países mais pobres, sobretudo os africanos; e
- Definir padrões mínimos de
tributação global, para que os super-ricos paguem mais impostos que os
trabalhadores.
A democracia também se mede pela
capacidade de proteger as famílias e a infância.
As plataformas digitais trazem
possibilidades de nos aproximar como jamais havíamos imaginado.
Mas têm sido usadas para semear
intolerância, misoginia, xenofobia e desinformação.
A internet não pode ser uma “terra
sem lei”. Cabe ao poder público proteger os mais vulneráveis.
Regular não é restringir a liberdade
de expressão. É garantir que o que já é ilegal no mundo real seja tratado assim
no ambiente virtual.
Ataques à regulação servem para
encobrir interesses escusos e dar guarida a crimes, como fraudes, tráfico de
pessoas, pedofilia e investidas contra a democracia.
O Parlamento brasileiro corretamente
apressou-se em abordar esse problema.
Com orgulho, promulguei na última
semana uma das leis mais avançadas do mundo para a proteção de crianças e
adolescentes na esfera digital.
Também enviamos ao Congresso Nacional
projetos de lei para fomentar a concorrência nos mercados digitais e para
incentivar a instalação de datacenters sustentáveis.
Para mitigar os riscos da
inteligência artificial, apostamos na construção de uma governança multilateral
em linha com o Pacto Digital Global aprovado neste plenário no ano passado.
Senhoras e senhores,
Na América Latina e Caribe, vivemos
um momento de crescente polarização e instabilidade.
Manter a região como zona de paz é
nossa prioridade.
Somos um continente livre de armas de
destruição em massa, sem conflitos étnicos ou religiosos.
É preocupante a equiparação entre a
criminalidade e o terrorismo.
A forma mais eficaz de combater o
tráfico de drogas é a cooperação para reprimir a lavagem de dinheiro e limitar
o comércio de armas.
Usar força letal em situações que não
constituem conflitos armados equivale a executar pessoas sem julgamento.
Outras partes do planeta já
testemunharam intervenções que causaram danos maiores do que se pretendia
evitar, com graves consequências humanitárias.
A via do diálogo não deve estar
fechada na Venezuela.
O Haiti tem direito a um futuro livre
de violência.
E é inadmissível que Cuba seja
listada como país que patrocina o terrorismo.
No conflito na Ucrânia, todos já
sabemos que não haverá solução militar.
O recente encontro no Alaska
despertou a esperança de uma saída negociada.
É preciso pavimentar caminhos para
uma solução realista.
Isso implica levar em conta as
legítimas preocupações de segurança de todas as partes.
A Iniciativa Africana e o Grupo de
Amigos da Paz, criado por China e Brasil, podem contribuir para promover o
diálogo.
Nenhuma situação é mais emblemática
do uso desproporcional e ilegal da força do que a da Palestina.
Os atentados terroristas perpetrados
pelo Hamas são indefensáveis sob qualquer ângulo.
Mas nada, absolutamente nada,
justifica o genocídio em curso em Gaza.
Ali, sob toneladas de escombros,
estão enterradas dezenas de milhares de mulheres e crianças inocentes.
Ali também estão sepultados o Direito
Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente.
Esse massacre não aconteceria sem a
cumplicidade dos que poderiam evitá-lo.
Em Gaza a fome é usada como arma de
guerra e o deslocamento forçado de populações é praticado impunemente.
Expresso minha admiração aos judeus
que, dentro e fora de Israel, se opõem a essa punição coletiva.
O povo palestino corre o risco de
desaparecer.
Só sobreviverá com um Estado
independente e integrado à comunidade internacional.
Esta é a solução defendida por mais
de 150 membros da ONU, reafirmada ontem, aqui neste mesmo plenário, mas
obstruída por um único veto.
É lamentável que o presidente Mahmoud
Abbas tenha sido impedido pelo país anfitrião de ocupar a bancada da Palestina
nesse momento histórico.
O alastramento desse conflito para o
Líbano, a Síria, o Irã e o Catar fomenta escalada armamentista sem precedentes.
Senhora presidenta,
Bombas e armas nucleares não vão nos
proteger da crise climática.
O ano de 2024 foi o mais quente já
registrado.
A COP30, em Belém, será a COP da
verdade.
Será o momento de os líderes mundiais
provarem a seriedade de seu compromisso com o planeta.
Sem ter o quadro completo das
Contribuições Nacionalmente Determinadas (as NDCs), caminharemos de olhos
vendados para o abismo.
O Brasil se comprometeu a reduzir entre
59 e 67% suas emissões, abrangendo todos os gases de efeito estufa e todos os
setores da economia.
Nações em desenvolvimento enfrentam a
mudança do clima ao mesmo tempo em que lutam contra outros desafios.
Enquanto isso, países ricos usufruem
de padrão de vida obtido às custas de duzentos anos de emissões.
Exigir maior ambição e maior acesso a
recursos e tecnologias não é uma questão de caridade, mas de justiça.
A corrida por minerais críticos,
essenciais para a transição energética, não pode reproduzir a lógica predatória
que marcou os últimos séculos.
Em Belém, o mundo vai conhecer a
realidade da Amazônia.
O Brasil já reduziu pela metade o
desmatamento na região nos dois últimos anos.
Erradicá-lo requer garantir condições
dignas de vida para seus milhões de habitantes.
Fomentar o desenvolvimento
sustentável é o objetivo do Fundo Florestas Tropicais para Sempre, que o Brasil
pretende lançar para remunerar os países que mantêm suas florestas em pé.
É chegado o momento de passar da fase
de negociação para a etapa de implementação.
O mundo deve muito ao regime criado
pela Convenção do Clima.
Mas é necessário trazer o combate à
mudança do clima para o coração da ONU, para que ela tenha a atenção que
merece.
Um Conselho vinculado à Assembleia
Geral com força e legitimidade para monitorar compromissos dará coerência à
ação climática.
Trata-se de um passo fundamental na
direção de uma reforma mais abrangente da Organização, que contemple também um
Conselho de Segurança ampliado nas duas categorias de membros.
Poucas áreas retrocederam tanto como
o sistema multilateral de comércio.
Medidas unilaterais transformam em
letra morta princípios basilares como a cláusula de Nação Mais Favorecida.
Desorganizam cadeias de valor e
lançam a economia mundial em uma espiral perniciosa de preços altos e
estagnação.
É urgente refundar a OMC em bases
modernas e flexíveis.
Senhoras e senhores,
Este ano, o mundo perdeu duas
personalidades excepcionais: o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, e o Papa
Francisco.
Ambos encarnaram como ninguém os
melhores valores humanistas.
Suas vidas se entrelaçaram com as
oito décadas de existência da ONU.
Se ainda estivessem entre nós,
provavelmente usariam esta tribuna para lembrar:
- Que o autoritarismo, a degradação
ambiental e a desigualdade não são inexoráveis;
- Que os únicos derrotados são os que
cruzam os braços, resignados;
- Que podemos vencer os falsos
profetas e oligarcas que exploram o medo e monetizam o ódio; e
- Que o amanhã é feito de escolhas
diárias e é preciso coragem de agir para transformá-lo.
No futuro que o Brasil vislumbra não
há espaço para a reedição de rivalidades ideológicas ou esferas de influência.
A confrontação não é inevitável.
Precisamos de lideranças com clareza
de visão, que entendam que a ordem internacional não é um “jogo de soma zero”.
O século 21 será cada vez mais
multipolar. Para se manter pacífico, não pode deixar de ser multilateral.
O Brasil confere crescente importância
à União Europeia, à União Africana, à ASEAN, à CELAC, aos BRICS e ao G20.
A voz do Sul Global deve ser ouvida.
A ONU tem hoje quase quatro vezes
mais membros do que os 51 que estiveram na sua fundação.
Nossa missão histórica é a de
torná-la novamente portadora de esperança e promotora da igualdade, da paz, do
desenvolvimento sustentável, da diversidade e da tolerância.
Que Deus nos abençoe a todos."
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