Terceirização da segurança pública abre caminho para governanças criminais e privatização do poder de polícia
18 de fevereiro de 2025
Viatura da Guarda Municipal do Rio de Janeiro (Foto: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL)
Em tempos de proposição de mais uma polícia ostensiva uniformizada municipal, um ser ainda indefinido, quase um “genérico de drogaria”, e já temos a GM-RIO armada, vale encaminhar alguns recados para as autoridades municipal e estadual do Rio, responsáveis pela segurança pública, queiram elas ou não.
Um alerta
histórico: o perigo da privatização do poder de polícia - O primeiro recado vem lá detrás, da época do
surgimento da democracia que inventou as polícias modernas. A história adverte
que o poder de polícia quando privatizado ou terceirizado na delimitação do seu
mandato, na sua composição institucional e na sua execução faz uma Força
Municipal de Segurança, por exemplo, já nascer milicializada, emancipada como
um governo autônomo ou confinada como uma guarda particular do governante.
Para impedir a emergência dos ‘xerifados’, guardas
pretorianas, capangagem, clientelização, emancipações predatórias e chantagens
corporativas das armas e, com tudo isso, a proliferação de golpismos com o uso
da espada e o conluio da pena, há uma regra de ouro da democracia que garante
estabilidade e previsibilidade no exercício do poder legal e legitimamente
eleito. A regra de ouro em democracias é blindar as burocracias armadas, desde
o seu nascimento, da manipulação político-partidária e da apropriação
privatista para poder exercer, de fato e de direito, o comando civil sobre
elas.
É desta forma que se impede e se enfrenta a criação
de governanças criminais vindas de dentro do Estado e, por sua vez, a
consequente transformação de mandatários municipais, estaduais e federais em
birutas de posto e ventríloquos da economia política da insegurança pública. Transvestidos
de garotos propaganda, este dirigentes, e já são muitos no Brasil de agora,
terminam por prestar serviços “forçados” para a alta bandidagem, governando com
o crime, sem tinta na sua caneta e, claro, prisioneiros em seus gabinetes pelos
alisadores de maçaneta. Quem terceiriza a segurança terceiriza o poder de
polícia em nome das supostas virtudes do gerencialismo privado na condução da
coerção. Terceiriza o próprio mando, a sua capacidade de governar e se torna
refém da insegurança pública que promove.
Uma advertência
cotidiana: o mercado ilegal da segurança no Rio de Janeiro - O segundo recado, que se traduz em mais uma grave
advertência, é diário e vem da lição político-econômica extraída da
consolidação dos domínios armados que já privatizaram, arrendaram ou
estabeleceram um regime contratual público-privado com uma parte do poder de
polícia no Estado do Rio.
Tem-se a polícia do BEM sendo sabotada diariamente
pelas polícias dos BENS. Tem-se, por dentro, o Estado brigando com ele mesmo em
um tipo de “junto e misturado” das várias bandidagens e dos agentes da lei com
poder de polícia autonomizado compondo os seus quadros como funcionários,
sócios ou patrões. O Peixão e muitos outros governantes criminais locais servem
como uma emblemática ilustração da partilha do poder de polícia no Rio. E, por
conta disso, exemplifica a conversão gradual do Estado em uma agência
neoliberal reguladora do crime organizado que rodizia traficantes, milicianos e
grupelhos estatais armados na distribuição de concessões do poder de polícia
para barganhar o monopólio político-econômico de tal ou qual grupo armado em
troca de vantagens político-eleitorais.
Assiste-se, como contrapartida das negociatas com o
poder de polícia, isto é, com o poder de governar concedido pelos eleitores, à
produção de monopólio nas seções eleitorais e de um fluxo contínuo do dinheiro
do crime para caixa 2 de campanha – uma rentável lavanderia do dinheiro sujo. A
isto se vincula a governança de territórios e de populações, em especial nas
periferias, entregue ao capital privado ilegal vivificado no empreendedorismo
do crime, fazendo retumbar o falso mantra de que a gestão privada é superior à
publica. E, até mesmo, paradoxalmente, no mandato do poder de polícia que
corresponde a uma carreira exclusiva de Estado pelas razões aqui expostas e
muitas outras.
Autarquia armada
sem tutela e autogoverno policial: Força de Segurança Municipal sob risco
político - Para não criar
autarquias armadas sem tutela com corporativismo pistoleiro, mais um bonde
policialesco ou para não por onça selvagem para tomar conta de quintal, é bom
não fazer gambiarra na segurança municipal com um arranjo institucional
meia-boca, ainda um lusco-fusco que aponta para a privatização disfarçada do
poder coercitivo de polícia. Este arranjo é traduzido de forma simplista em uma
espécie de Caravana Holiday Empistolada que sai em busca de roubos no asfalto
da Zona Nobre, no aquário da Zona Sul.
Cabe lembrar que todo carioca já assiste à
privatização da segurança. Esta tem se apresentado pervertida em arranjos
(i)legais de proteção excludentes, desiguais e discriminatórios pelos quais
pagamos caro, inclusive com a vida. Esta tem nos fidelizado por meio de ameaças
constantes e de seu marketing do terror que aparelham e manipulam o nosso
legítimo medo do crime por toda a cidade. Não dá para propor mais uma nova
polícia que corre o risco de milicialização desde a prancheta pelo fatiamento
político do poder de polícia.
Todo carioca tem, hoje, uma estória para contar
sobre como acumula prejuízos existenciais, materiais e simbólicos com os lucros
da política eleitoreira da insegurança pública, seu regime do medo e suas
práticas ostentatórias de exceção. Todo carioca está calejado de saber que o
CV, o TCP e as milícias, grupos privados ilegais, respondem pelo policiamento
público em regiões expressivas do Rio. Todo carioca aprende os procedimentos
operacionais do policiamento feito pelo crime e como agir nas suas abordagens.
As barricadas e as blitzes ilegais não mentem jamais!
Os policiamentos ilegais vêm ocupando o vazio
ostensivo da presença policial nas ruas. Enquanto isso, se observa o frenesi
operacional da síndrome do cabrito, do sobe e desce morro sem permanecer e
garantir alguma conquista substantiva sobre os domínios territoriais armados.
E, isto, por esgotamento prévio da capacidade repressiva da polícia com a
escolha politiqueira da banalização das operações policiais. O suposto cobertor
curto da presença policial para acuar ainda mais a cidadania amedrontada vai
sendo ainda mais encurtado com as sucessivas operações ostentatórias
enxuga-gelo, as quais sobre gastam efetivos policiais e desperdiçam recursos
repressivos nobres. Infelizmente, para o desespero do morador do Rio e o
dissabor dos profissionais das forças especiais e demais vocacionados que veem
sua expertise ir para o ralo e que também passam a se ver apenas como
mercadorias políticas.
Improvisos e
remendos com polícia: um barato que sai caro - Tudo isso retrata, no nosso dia a dia, a
terceirização ou a negociação com o mercado ilegal do poder de polícia já em
curso e que deveria ser monopólio do Estado para sustentar uma segurança de
sobrenome pública e democrática de verdade.
A esta altura, vale reforçar os recados dados. É melhor não improvisar
com meios de força que dobram vontades nas esquinas, cortam, ferem e podem
matar para atender apetites eleitoreiros, ambições mercadológicas, projetos
corporativistas e a simplismos políticos. Há que fazer o “certo pelo certo” com
os saberes e experiências acumulados no Rio que estão ao alcance das mãos dos
governantes. Há caminhos sérios que dispensam as cloroquinas na segurança que
tem custado precarizações, dores, vidas. Na política há que valorizar a ética
da responsabilidade para se ter resultados qualificados, especialmente quando
se lida com as espadas. Por isso, ainda se segue à espera de um projeto de
força municipal de segurança (Liberal? Conservador? Progressista?) que ao menos
venha com cabeça, tronco e membros.
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