domingo, 5 de janeiro de 2025

Ataque especulativo e a chantagem dos rentistas


(*) Por Edmilson Costa*

Na semana relativa ao período de 16 a 20.12.2024 a oligarquia financeira, especialmente os rentistas em geral, realizaram um violento ataque especulativo contra o real, cujo resultado foi a elevação do preço do dólar para R$ 6,30, num movimento artificial com o objetivo de chantagear o Congresso e o governo por mais austeridade fiscal e aumento dos juros. Esse ataque ocorreu justamente no momento em que o Congresso discutia o pacote econômico elaborado pelo ministro Fernando Haddad e visava fazer com que os congressistas fizessem mudanças no documento com vistas a cortar mais gastos, atingindo justamente os setores mais pobres da população, de forma a que a rapinagem financeira pudesse desviar ainda mais recursos do fundo público para os rentistas.

O Banco Central, dirigido pelo bolsonarista raiz Campos Neto poderia ter realizado intervenção no mercado mediante operações de swaps cambiais[1] ou venda de dólar para deter o ataque especulativo no nascedouro (o Brasil tem reserva de U$ 360 bilhões, suficientes para deter qualquer movimento especulativo), mas o BC apenas lavou as mãos e só começou a realizar os leilões cambiais quanto o estrago já estava feito. O mais grave nesse processo é o fato de que o novo presidente do Banco Central Gabriel Galípolo e o presidente Lula resolveram chancelar a chantagem do mercado. Galípolo encontrou uma desculpa rasa, ao negar que não houve um ataque especulativo contra o real porque o mercado não age de maneira coordenada, e Lula convocou uma entrevista para dizer que não vai interferir na política do Banco Central na nova administração.

O que se torna estranho é o fato de Galípolo, um homem do mercado financeiro, que conhece bem as tramas dessa gente, ter tirado da cartola um argumento que não se sustenta. Ora, em um movimento especulativo não existe uma ação coordenada de 100% dos atores, isto é apenas uma tautologia. Mas no mercado financeiro, dominado pelos dez maiores conglomerados, basta a ação do núcleo duro para que os outros atores sigam o exemplo. E foi exatamente o que aconteceu. Os capas pretas da rapinagem financeira se movimentaram e o resto acompanhou. Simples assim: o argumento de Galípolo apenas livra a cara dos rentistas. E o presidente Lula, ao dizer que não vai pressionar o Bacen, mesmo sabendo que estão programados mais dois cavalares aumentos de juros, deu carta branca de antemão à especulação financeira. As consequências disso veremos em breve.

Mas o que é um ataque especulativo? É um evento em que os agentes do mercado (grandes fundos de investimentos, investidores institucionais ou especuladores em geral) decidem realizar operações coordenadas para desvalorizar a moeda nacional em relação à moeda estrangeira. Estes agentes vendem no mercado de câmbio grandes quantidades de reais para adquirir moeda internacional, no caso brasileiro, o dólar. Esse movimento aumenta a oferta de reais no mercado, pressionando sua desvalorização. Esta ação também pode ocorrer mediante a realização de contratos futuros, por meio dos quais os agentes apostam na desvalorização do real, pressionando a moeda nacional e, consequentemente, levando à valorização do dólar.

Os ataques especulativos ocorrem quando os agentes especuladores percebem fragilidades no governo e na economia ou apostam que o Planalto não será capaz de defender a moeda. Nessa conjuntura, criam um clima artificial de pânico, ampliado pelos meios de comunicação alinhados ao mercado, sempre que medidas governamentais não lhe agradem plenamente, como o recente pacote fiscal. Esse clima de pânico pode gerar um efeito manada envolvendo também as empresas, que buscam se proteger da desvalorização, o que amplia ainda mais a pressão sobre a moeda nacional. Mas o importante a ressaltar é que, com o ataque especulativo, a rapinagem financeira ganha muito dinheiro num prazo curto e ainda pressiona pelo aumento dos juros, com o que irá ganhar novamente mais dinheiro, num ciclo vicioso de permanente assalto ao fundo público.

Consequências da desvalorização do real

Antes da implantação da política neoliberal no início dos anos 90 com o governo Collor, poderíamos considerar o Brasil como uma economia com efetiva proteção à indústria nacional, mediante a Lei do Similar. A Lei do Similar taxava muito fortemente a importação de produtos estrangeiros desde que existisse similar fabricado no Brasil. Mas a radical abertura comercial da economia no governo Collor expôs a indústria nacional à concorrência estrangeira, o que levou à desarticulação e à quebra de vários ramos industriais. O governo FHC aprofundou esse processo e isso significou um maior coeficiente de importação de produtos em geral, insumos industriais, componentes, o que tornou vulnerável a balança comercial em função da importação desses produtos e quebrou vários setores da indústria brasileira.

Quais os problemas da desvalorização do real (e do aumento do dólar)? Esse processo encarece a importação de insumos, combustível, componentes e produtos em geral, o que vai pressionar os preços internos, uma vez que os empresários repassam os custos para os consumidores, resultando num aumento da inflação. A desvalorização também impacta no aumento dos custos de máquinas, equipamentos, insumos industriais e tecnologias necessárias ao crescimento econômico, tendo em vista que o departamento de produção de máquinas nacional não é capaz de suprir a demanda por equipamentos mais sofisticados necessários à modernização do parque produtivo. Ou seja, a desvalorização do real torna também mais cara a modernização do parque industrial, desestimulando os investimentos produtivos.

O aumento da inflação decorrente da desvalorização cambial afeta diretamente o custo de vida da população e corrói o poder de compra das famílias, especialmente dos mais pobres, que gastam a maior parte de sua renda com o consumo e são os mais prejudicados com o aumento dos preços. Esta é uma dinâmica perversa: enquanto os abutres financeiros ganham rios de dinheiro com a especulação e a desvalorização cambial, o que aprofunda a concentração de renda, os trabalhadores são os principais perdedores, porque são obrigados a reduzir seu consumo e padrão de vida, ampliando a desigualdade social.

A desvalorização cambial também aumenta o custo da dívida pública denominada em moeda estrangeira, agravando o déficit fiscal, limitando a capacidade de o Estado realizar políticas sociais e desenvolver infraestrutura, abrindo espaço para que a oligarquia financeira reivindique novos ajustes fiscais para garantir o equilíbrio da dívida. Além disso, o clima volátil pode estimular a fuga de capitais, o que, por sua vez, pode agravar ainda mais a depreciação cambial. Em outros termos, a saída de capitais enfraquece a moeda nacional e gera mais instabilidade econômica. Alguém pode argumentar que a desvalorização cambial vai beneficiar os exportadores porque torna os produtos nacionais mais competitivos no exterior. Esta é uma falsa visão, uma vez que a maior parte dos setores exportadores dependem de insumos importados.

O aumento dos juros e o desastre econômico

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A política neoliberal é um coquetel de dinâmicas perversas: para conter a inflação o Banco Central tem como único remédio o aumento das taxas de juros. Como vimos em vários artigos anteriores, os juros mais altos não só não resolvem o aumento da inflação como aprofundam todos os problemas da economia, num ciclo vicioso que envolve queda na atividade econômica e mesmo recessão, redução do emprego e da renda dos trabalhadores e diminuição do consumo das famílias. Consequentemente, os empresários deixarão de investir porque não há demanda suficiente, o governo recolherá menos impostos porque as vendas diminuem, e o resultado desse processo é o desastre econômico e a instabilidade social.

Enquanto os especuladores fazem a festa com a desvalorização cambial e os preços tendem a aumentar internamente, o aumento das taxas de juros completa o quadro sombrio para a economia brasileira. Como o próprio Banco Central alertou em seu comunicado, os juros no Brasil não apenas se colocam entre os mais altos do mudo (Tabela 1), como ainda deverão subir mais dois pontos percentuais nas próximas reuniões do Copom, o que deverá levar o país à estagnação econômica ou ao baixíssimo crescimento, mantendo a mesma a lógica desses 34 anos de política neoliberal no Brasil, fato que ampliou a concentração da renda, as desigualdades sociais, a precarização dos serviços públicos, a pobreza e a miséria entre a grande maioria da população.

Tabela 1

Taxas de juro real de países selecionados com base na expectativa de inflação nos próximos 12 meses até o II trimestre – 2025[2]

Turquia                                             24

Rússia                                               12,3

Brasil                                                  7,3

México                                               7,2

África do Sul                                     3,6

Estados Unidos                                 2,7

Canadá                                              2,7

Índia                                                  2,1

Itália                                                  1,8

Alemanha                                         1,7

França                                              1,5

Fonte: Valor Data

A ganância da oligarquia financeira e dos rentistas em geral não tem limites e o governo não deverá fazer nenhum movimento no sentido de deter o aumento dos juros programados para as próximas reuniões do Copom. Isso significa que a taxa Selic deverá alcançar 14,25%, uma insanidade em termos de política econômica. O que poderá acontecer com a economia no próximo ano se as taxas aumentarem nesse patamar? A economia entrará num processo de estagnação econômica pelos seguintes motivos: a) o governo dificilmente intervirá para restabelecer a demanda agregada porque está preso à lógica neoliberal; b) os empresários, por sua vez, dificilmente investirão porque se tornará mais vantajoso aplicar em títulos públicos, sem nenhum risco, do que arriscar seu capital na produção, num ambiente de desaceleração econômica.

Os grandes empresários, mesmo deixando de investir na produção, terão seu capital preservado com grande margem de lucro, pois a dívida interna funciona como um colchão de segurança para o conjunto das classes dominantes. Mas as pequenas e médias empresas enfrentarão grandes obstáculos para desenvolver seus negócios. Como esses empresários têm acesso limitado às fontes de financiamento, como o mercado de capitais, terão de pagar juros mais altos e enfrentarão maiores restrições para acessar os empréstimos. Nesta conjuntura, aqueles que não tiverem condições de repassar para os preços os custos de financiamento, especialmente os menores, terão enormes dificuldades para se manter no mercado e milhares poderão ir à falência, com impactos negativos no emprego e na renda.

Os consumidores também serão afetados severamente pelo aumento dos juros, tendo em vista que os bancos no Brasil cobram um dos maiores spreads do mundo. A taxa Selic é apenas uma referência, pois no cartão de crédito os juros chegam a cerca de 200% ao ano e quase dobram nas compras a prazo. Dessa maneira, os custos do crédito direto ao consumidor, dos financiamentos imobiliários, dos financiamentos de veículos, entre outros, afastarão muitos consumidores do mercado. Deve-se levar em conta ainda que as famílias já endividadas poderão ver suas parcelas de financiamento subirem se contrataram as compras a juros flutuantes, o que vai agravar o problema da inadimplência, já bastante expressivo no país.

Neste ambiente, com a redução dos investimentos e do consumo das famílias, a economia despenca para a estagnação econômica ou mesmo para a recessão e o desemprego. Para a oligarquia financeira, isso não é problema. Aliás, a conjuntura atual é até mesmo favorável aos interesses dos rentistas porque há um desestímulo à ação do movimento sindical e à luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, mais preocupados em preservar seus empregos do que arriscá-los na luta por melhores salários. Isto significa que a rapinagem financeira pode realizar as políticas de austeridade sem resistência social. Para esses parasitas só interessa os lucros a qualquer custo – e que se dane a população.

A tabela abaixo (Tabela 2) revela o impressionante volume de recursos que o governo transfere anualmente para a oligarquia financeira. Por esses dados, em termos de percentuais do PIB em relação ao que o governo gasta com juros, poderemos observar a sangria cavalar de dinheiro do fundo público para os setores que dele estão se apropriando. O mais perverso é o fato de que a oligarquia realiza todo tipo de pressão para que o governo implemente o corte de gastos contra trabalhadores e trabalhadoras, pensionistas e a população miserável, mas não quer debater a questão do pagamento dos juros. Isto tornou-se um tema tabu, praticamente naturalizaram a rapinagem. Os noticiários só entrevistam os economistas do mercado, todos eles alinhados com a política neoliberal, que reforçam o mantra de que a questão da dívida e dos juros é intocável.



 






Mas o fato concreto é que, para sanear a economia, o ajuste deve ser feito exatamente na questão da dívida e dos juros. O pacote fiscal de um governo comprometido com os interesses populares deve ser feito para taxar os lucros, dividendos dos milionários e as heranças, suspender a isenção fiscal das empresas que não geram empregos e coibir a sonegação fiscal, porque são exatamente estes setores que devem pagar a conta da crise. Como vimos em artigo anterior, entre 2021 e outubro de 2024 o país gastou com juros cerca de 2,8 trilhões, uma quantia astronômica que daria para resolver grande parte dos problemas sociais brasileiros. Esta é a verdadeira sangria que deve ser detida e não o salário mínimo e os programas sociais dos mais pobres.

Somente a luta popular pode mudar esse quadro

O mais dramático de todo esse processo é constatar que o governo Lula, além de prejudicar os setores mais vulneráveis da população, abandonou a disputa ideológica com a extrema-direita e terceirizou para o Supremo Tribunal Federal a resolução dos problemas com os golpistas. Também abandonou a disputa nas ruas, abrindo espaço para que os fascistas voltem a ocupá-las com suas pautas conservadoras e o discurso antissistema, principalmente numa conjuntura em que o futuro presidente dos Estados Unidos é um aliado dos grupos de extrema-direita. Sob o pretexto de que é necessário garantir a governabilidade, o governo se finge de morto e prefere os acordos de gabinete com o Centrão, as oligarquias regionais e a burguesia. Para a classe trabalhadora e a população pobre restam apenas as migalhas das compensações sociais.

Aquela promessa de campanha de que era necessário colocar os ricos no imposto de renda e os pobres no orçamento se transformou em mais uma promessa típica da velha política, porque após a edição do arcabouço fiscal e do recente pacote econômico contra os pobres não se pode esperar nenhuma medida capaz de mudar a correlação de forças ou avançar no sentido de reconstruir o país na perspectiva dos interesses populares. Para as forças revolucionárias, esta é uma conjuntura difícil, mas estamos na luta exatamente para resolver problemas difíceis. Portanto, devemos contar apenas com a nossa capacidade de mobilização, para que nossas propostas se transformem em força política de massas, não apenas porque são justas, mas especialmente porque são necessárias para mudar o rumo da realidade, atuando para fortalecer as lutas populares, no caminho da construção do poder popular e do socialismo.

(*) Edmilson Costa é doutor em economia pela Unicamp e secretário-geral do PCB

[1] Swap cambial é um instrumento financeiro frequentemente utilizado pelo Banco Central para gerenciar riscos da variação cambial quando ocorre variações bruscas no câmbio.

[2] A taxa de juro real é encontrada mediante a relação entre taxa de juro nominal e a inflação do País.

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